2003.

Explica o que motivou a escrever este trabalho foram as indicações cada vez mais freqüentes que o discurso sobre os direitos humanos vem sendo apropriado por diferentes atores políticos, às vezes com propósitos que aparecem como, para dizer o mínimo, contraditórios com relação ao campo semântico associado à luta pacífica pelas liberdades, pelo bem-estar das pessoas e coletividades. Quando uma superpotência inclui dentre os seus motivos para a invasão militar de um país a derrubada de um regime que desrespeita os direitos humanos, quando quadrilhas do crime organizado no Rio de Janeiro usam, para legitimar seus ataques violentos que mantêm a população carioca aflita, o desrespeito aos direitos humanos nas penitenciárias como parte de suas motivações, ficamos diante de evidências que revelam que “direitos humanos” são um campo de conflitos de interpretações. Pode-se admitir, assim, que os discursos utilizados para explicar ou para intervir em crises ou em situações extremadas que intersectam a reprodução não-problematizada da doxa, são fundamentais para a reprodução da ordem e do poder. Lembra que no mundo globalizado contemporâneo, cada vez mais deparamo-nos com categorias que pretendem universalidade para explicar a ordem planetária, hegemonizada pelo capitalismo flexível transnacional. Direitos humanos são uma dessas categorias. A análise dos “direitos humanos” enquanto um discurso destinado a pensar e intervir em crises e a classificar comportamentos e coletividades pode, potencialmente, levar-nos a desvendar quais mecanismos de (re)produção do poder estão sendo subsumidos por este discurso parece estar nos indicando: o desejo pelo convívio pacífico, democrático e igualitário, respeitadas as particularidades dos diversos grupamentos que convivem em sociedade desde quando nenhum exerça opressão sobre o outro. Esta é, sem dúvida, uma tarefa enorme que não pretendo desenvolver em sua totalidade aqui. Se a noção de cultura é altamente problemática em termos de sua definição, usos acadêmicos e políticos, as outras duas que compõem o título deste trabalho, direitos humanos e poder, não deixam de ser igualmente problemáticas. Após a próxima seção, explorarei brevemente aspectos vinculados aos termos “poder” e “direitos humanos” para depois relacioná-los ao que, acho, são dilemas que se encontram Assim, quem sabe, através de um exercício antropológico de estranhamento de uma categoria que não apenas nos é familiar, mas querida, poderemos avançar para formulações mais próximas ao que ela embutidos originalmente na discussão sobre “cultura” e que se encontram também reverberando no interior das discussões sobre “poder” e “direitos humanos”. Estes dilemas relacionam-se (a) à tensão entre particularismos e universalismos; (b) às relações existentes entre diversos formuladores de interpretações sobre cada um destes termos e (c) às posições políticas que eventualmente esposem. Antes também é preciso dizer que este exercício é necessário diante do quadro onde se postula a existência de uma “cultura global”. De minha parte prefiro falar, como Appadurai (1990) de “ideopanoramas”, ou de “condições ideológicas e culturais” da transnacionalidade (Ribeiro 2000), internamente à qual a noção de “direitos humanos” destaca-se e desempenha um papel cada vez maior. O que, contudo, chama a atenção, em especial ao que diz respeito a algumas discussões antropológicas, é, curiosamente, a baixa sensibilidade que se tem, neste campo, à relação direitos humanos e poder. O eterno retorno de temas e problemáticas parece ser uma marca que acompanha as ciências sociais, em geral, e a antropologia, em particular. O conceito, ou noção, de cultura, que nunca foi nenhum consenso entre os antropólogos, tornou-se, talvez em consonância com a sua própria origem histórica, um objeto de disputa do interesse de diferentes grupos internamente ao mundo acadêmico e externamente a este. De fato, no interior da academia, cultura desde há muito, ao menos desde o começo dos chamados estudos culturais na década de 60, na Inglaterra, deixou de ser “propriedade” exclusiva dos antropólogos. Por ele se interessaram historiadores, sociólogos, cientistas políticos, literatos, psicanalistas, educadores, etc. Nas mãos de tantos, cultura certamente se enriqueceu, mas também, certamente, popularizou-se de tal forma que, na direção de grandes transformações causadas por movimentos sociais anti-homogenização promovida pelos Estado-nações, se transformou em arma para atores coletivos tipicamente envolvidos em lutas políticas identitárias. Em sua generalidade, entretanto, ela não aponta para os diferentes meios e modos através dos quais o poder se exerce nem para o fato de que a diferenciação do acesso ao poder é um processo histórico. Estamos refere-se, de fato, a um universo extremamente heterogêneo. Sua variabilidade inclui desde a sofisticação da reprodução da doxa cuja eficácia reside praticamente em sua invisibilidade, até o puro exercício da força física de um indivíduo sobre o outro ou a esmagadora superioridade militar de um Estado-nação, ancorada fortemente em seu papel econômico global e na enorme disparidade do controle de tecnologia bélica (como vimos várias vezes, recentemente, quando a máquina de guerra do império se moveu contra países mulçumanos). Porém, como antropólogo, interessa-me, sobretudo quando o poder se reproduz através de matrizes discursivas cuja eficácia muitas vezes vale mais do que a de muitos canhões e mísseis. Ideologias e utopias são relacionadas intimamente com o exercício do poder. Elas expressam disputas de interpretações sobre o passado (ideologia) ou sobre o futuro (utopia) e lutam para instituir hegemonias através do estabelecimento de certas visões restropectivas ou prospectivas enquanto verdades, enquanto a ordem natural do mundo (Manheim, 1976; Ricoeur, 1986). Desde a Segunda Guerra Mundial, desenvolvimento como um sistema de crenças esteve sempre envolvido com leituras particulares do passado e do futuro em escala global (Ribeiro 1991). Além disso, é óbvia a função classificatória de “desenvolvimento” pois existem países desenvolvidos, subdesenvolvidos, em desenvolvimento, etc. Contudo, dada à hegemonia da Europa e dos EUA na configuração do sistema mundial, a disseminação global de ideopanoramas carrega consigo as marcas do Ocidente. Aliás, a própria, definição de ideopanoramas dada por Appadurai aponta para isso: “elementos da visão de mundo do Iluminismo que consistem na concatenação de idéias, termos e imagens, incluindo ‘liberdade’, ‘bem-estar’, ‘direitos’, ‘soberania’, ‘representação’e o termo matriz ‘democracia’(1990: 9-10). Considera que o apelo particularista na questão dos direitos humanos pode ter diferentes implicações. Quando evocado como nos exemplos dados no âmbito internacional pode significar tanto: hegemonia global, nossa definição é universal”; desde a posição chinesa – “direitos humanos variam de acordo com contexto sócio-político cultural, portanto não podem ser impostos universalmente”. Vê-se que a evocação particularista tanto poder ser feita para exercer hegemonia quanto para contrapor-se a ela. A diferença é que no caso norte-americano, o particularismo claramente pretende ser um universalismo (daí a sua transformação em instrumento de hegemonia), enquanto no caso chinês, o particularismo desemboca em uma postura relativista onde, ao menos no cenário internacional de hoje – internamente ao Estado-nação chinês o assunto é diferente – não se pretende, ou não se pode pretender transformar um particular em universal. A resolução da contradição entre a pretensão universalista da matriz discursiva dos direitos humanos e o seu uso particularista perverso não se dará pela culturalização das formas de encarar a violência, a discriminação e a dor. Isto porque, para inserirmo-nos diretamente em um cenário limite, a atribuição de valor negativo ou positivo à violência e ao extermínio de pessoas depende dos complexos entrelaçamentos entre cultura e poder como se depreende do último livro de Eric R. Wolf, Envisioning Power (1999). Depende, assim, do entrelaçamento entre cosmologias, ideologias, posição de poder, capacidade de arrebanhar recursos e de reproduzir o status quo. Ernesto Laclau (2000) argumenta corretamente que a relação entre particularismo e universalismo está atravessada pelo estabelecimento de hegemonias específicas. Na verdade, quando o Estado norte-americano estabelece um viés próprio sobre o que são os direitos humanos universalmente está fazendo uma afirmação altamente embebida da sua posição hegemônica no mundo de hoje. A mesma coisa acontece quando membros da classe média brasileira postulam direitos humanos apenas para os humanos direitos. A disputa por hegemonia torna-se mais clara ainda quando membros de organizações criminosas tentam convencer a população do Rio de Janeiro de que os seus ataques às instituições e à segurança pública se dá em resposta ao desrespeito aos direitos humanos nas prisões. Em todos estes cenários, o que se vê é uma categoria que se pretende universal ser transformada, pelos campos de poder político na qual ela se insere, em perspectiva particular de atores sociais e políticos lutando por reproduzir ou por impor hegemonia. Não é fácil a resolução do problema aqui levantado. Afinal, ao tratar-se de uma noção necessariamente relacionada à distribuição desigual de poder e, mais ainda, direcionada a regular o abuso dos poderosos, seria de se esperar que direitos humanos fossem altamente marcados por essas dinâmicas. Como se sabe, as categorias universais são, com freqüência, objeto de contestação, pois que elas são altamente instrumentais para estabelecer a ordem das coisas. Contudo, quando se trata de uma categoria como a de direitos humanos cujos universos típicos de atuação implicam a proteção dos indefesos, vários absolutos podem (e devem) ser estabelecidos independentemente da variação cultural ou de posição de classe, como, por exemplo, o repúdio radical ao genocídio, etnocídio, à tortura, ao desaparecimento de opositores do Estado, etc