Por Hamilton Varela, professor titular do Instituto de Química de São Carlos da Universidade de São Paulo
Há pouco mais de um ano diversos números e índices têm tido espaço garantido nas notícias sobre a pandemia em curso. Números absolutos de casos e óbitos, mortalidade, letalidade, incidência, taxa de contaminação, etc. são utilizados para informar sobre a crise sanitária e na comparação entre países, estados e cidades. A avaliação sobre o estágio atual e a previsão do desenvolvimento da pandemia são cruciais para a gestão da crise, planejamento e tomada de decisões de curto e médio prazos.
Nesse sentido, um problema crítico na avaliação da situação presente consiste na comparação entre diferentes populações. De fato, saber que a taxa de mortalidade, ou o número de mortes por 100 mil habitantes, no Brasil (131) é um pouco maior que na Polônia (123) e menor que na Espanha (155) (dados consultados em 14 de março de 2021) informa muito pouco sobre a dinâmica da infecção e os fatores associados à transmissão. As diferenças qualitativas e quantitativas entre as populações complicam a comparação. A dinâmica das pandemias se encaixa na classe dos chamados sistemas complexos, em que a interação entre muitas variáveis, frequentemente desconhecidas, dificulta sobremaneira a análise e a predição. Uma forma de tornar o problema um pouco mais, digamos, tratável, é comparar populações semelhantes, o que possibilita isolar algumas variáveis e estudar o seu efeito.
A cidade paulista de Araraquara chamou recentemente a atenção com o rápido aumento no número de infecções e óbitos associados à variante brasileira P.1., que se tornou predominante na cidade a partir de meados de fevereiro. Notadamente mais transmissível que a cepa original, a P.1. teve um efeito devastador e levou o sistema de saúde no município ao colapso. Como consequência, a prefeitura de Araraquara recrudesceu as restrições e decretou lockdown entre 21 de fevereiro e 2 de março. O efeito da medida está sendo sentido na diminuição no número de novos casos. Comparar as implicações do lockdown em Araraquara com uma população similar pode ser instrutivo.
São Carlos e Araraquara estão separadas por menos de 50 km e podem ser consideradas cidades irmãs, dadas as semelhanças em várias métricas. A população das duas cidades é de cerca de 245 mil habitantes e a densidade demográfica em São Carlos é de 223,8 hab./km² e a de Araraquara, 237,5 hab./km². As semelhanças vão além dos aspectos demográficos e geográficos. Fatores como grau de escolaridade, renda per capita e as condições de saúde e dos serviços de saneamento, entre outros, devem ser considerados, principalmente no contexto da pandemia. Esses parâmetros estão embutidos no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). São Carlos e Araraquara têm índices classificados como muito altos e estão entre os 30 municípios brasileiros com maior IDH. Finalmente, as pirâmides etárias das duas cidades são também muito semelhantes.
Como esperado, os efeitos da pandemia foram comparáveis em ambas as cidades até o início de 2021, quando as diferenças começaram com as infecções pelo P.1. em Araraquara. De fato, em 31 de dezembro de 2020, os óbitos acumulados em São Carlos e Araraquara somavam 75 e 90, respectivamente. Em 13 de março, as mortes causadas pela covid-19 em Araraquara chegaram a 251, e a 146 em São Carlos. Colocadas em perspectiva, as taxas de mortalidade em 13 de março foram de 105 e 57 por 100 mil habitantes em Araraquara e São Carlos, respectivamente. Números menores que a taxa paulista, de 139 por 100 mil (dados consultados em 14 de março de 2021).
A queda inequívoca no número de novos casos em Araraquara parece resultar diretamente dos dez dias de lockdown, a partir de 21/2. Em 27 de fevereiro, a média móvel de novos casos diários atingiu o máximo de 138, a partir de então essa média vem caindo e chegou a 68 em 13 de março. Em São Carlos, a média móvel era de 86 em 27 de fevereiro e atingiu 112 novos casos em 13 de março, maior valor desde o início da pandemia. O aumento dos casos em São Carlos parece refletir a disseminação da nova variante, como observado semanas antes em Araraquara. Os resultados do lockdown de Araraquara são alvissareiros e trazem um certo alento e esperança sobre os efeitos das restrições que estão sendo adotadas em todo o País.
Boas práticas como utilizar máscaras e álcool em gel, evitar aglomerações, lavar as mãos frequentemente vieram para ficar. O compromisso entre saúde e economia é ainda mais crítico em países em desenvolvimento como o Brasil, com poupança limitada e quase inexistência de reservas financeiras. A importância do binômio saúde/economia por aqui é enorme e a resistência à adoção de medidas mais restritivas como o lockdown é compreensível. Agrava a situação a desconfiança da população com relação ao governo. Essa desconfiança não é exclusividade do Brasil, por aqui, no entanto, esse sentimento é potencializado pela falta de lideranças. A única saída é a vacinação em massa. Sem vacinas, o que nos resta para desafogar o sistema de saúde é o isolamento social.
Os efeitos positivos do lockdown em Araraquara, justificadamente analisados em perspectiva com a cidade de São Carlos, parecem robustos. A análise comparativa dos dados dessas duas cidades pode ser reveladora e subsidiar decisões futuras. Por ora, fiquemos atentos aos dados das próximas duas semanas da fase emergencial decretada no Estado.