UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO – AÇÕES AFIRMATIVAS PARA PESSOAS TRANSGÊNERAS – NECESSIDADE DE AÇÕES QUE GARANTAM A PERMANÊNCIA E O BEM-ESTAR DOS ESTUDANTES LGBTQIA+ – GARANTIA DA IGUALDADE E NÃO DISCRIMINAÇÃO.

​​​​Chegou ao conhecimento dessa Promotoria de Justiça, por meio de matéria jornalística, pesquisa inédita feita pela “Coletiva Xica Manicongo”, representante do movimento estudantil transgênero na Universidade de São Paulo, apontando que 52% dos 88 estudantes que se identificaram como transexuais, travestis e não binários, relataram ter sido vítimas de ações transfóbicas por parte da Instituição.

​​​​Ainda segundo a reportagem, ao ser procurada, a USP informou, por meio de sua assessoria de imprensa que, desde 2010, adota um programa de diversidade que visa garantir “a inclusão, a igualdade, a solidariedade, a promoção e o fortalecimento do respeito aos Direitos Humanos.” (…) Além disso, há muitos anos, a USP criou o Programa USO Diversidade, vinculado aos programas USP-Comunidade da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária (PRCEU)”.

​​​​A Coletiva Xica Manicongo, entretanto, afirma que essas medidas não estão sendo cumpridas. Entre as principais queixas dos alunos estão relatos de constrangimentos em razão da não utilização do nome social por parte dos professores e funcionários. Outra reclamação constante dos estudantes se refere à falta de uma campanha de conscientização para que se respeite as pessoas que queiram usar os banheiros de acordo com os gêneros com os quais se identificam.

​​​​Em 07 de junho de 2021, a Coletiva Xica Manicongo, juntamente com o Núcleo de Convivência Negra na USP e o Comitê AntiFraude, apresentaram à Reitoria, uma carta de Reinvindicações das Minorias de Gênero e Étnico-Raciais da USP, pleiteando uma série de ações e medidas que reputam necessárias para o enfrentamento e o combate ao Racismo e a LFBTfobia, dentro da universidade.

​​​​Nessa carta, especificamente em relação às pessoas LGBTQI+, pleiteiam:

1- a reserva de vagas de ingresso no SISU e/ou FUVEST, para pessoas trans e travestis, observado conjuntamente, critérios de classe socioeconômica e declaração racial; levando em conta o número extremamente baixo e inexpressivo de estudantes trans na Universidade, além dos diversos empecilhos para o ingresso da população trans e travesti no ensino superior, e que as políticas de ingresso de estudantes trans vêm se espalhando por diversas Universidades Federais do Brasil.

2- A reserva de vagas em alojamentos da USP, bem como a criação de protocolos de apoio pelo Serviço de Assistência Social da Universidade e a concessão de bolsa de permanência temporária aos estudantes LGBTQI+, expulsos e expulsas de casa; considerando a LGBTfobia latente em nossa sociedade, bem como o fato de que um grande número de estudantes gays, lésbicas, bissexuais e principalmente trans e travestis são expulsos e expulsas de casa devido às suas sexualidades e/ou identidade de gênero, e o fato de ser fundamental que a Universidade represente um espaço de acolhimento e amparo neste momento tão difícil, e não se torne um novo agente provocador de violências e exclusão, com vistas a diminuir a evasão escolar.

3- A criação de um órgão específico para denúncias de casos de racismo e transfobia dentro da Universidade e de um órgão específico para denúncias de casos de racismo e de transfobia dentro da Universidade, que deverá realizar diligências de investigação e reparação acompanhado dos coletivos e movimentos trans e negros que assinam a cara, bem como outros movimentos que atuem na apuração dos casos; como medidas necessárias para fazer frente à transfobia e ao racismo institucional e estrutural que permeia a Universidade, e diante da ineficácia dos instrumentos genéricos de denúncias oferecidos aos estudantes;

4- a criação de um plano de assistência psicológica efetivo e global na Universidade de São Paulo, visando dar apoio e garantir condições para que os estudantes que se encontram em vulnerabilidade social e que são vítimas do racismo e LGBTIfobia consigam concluir seus cursos;

5- a realização de campanha anual e/ou semestral de conscientização, sobre gênero, transgeneridade e raça a todo o corpo de funcionários e funcionárias da Universidade, visando à criação de uma cultura de respeito e fomento à diversidade, considerando o desconhecimento muitas vezes demonstrado tanto pelo corpo de professores, quanto pelo de trabalhadores e trabalhadoras técnico-administrativos;

6- a criação de um órgão colegiado vinculado à Reitoria, com o objetivo de analisar, estudar e acompanhar as ações afirmativas para minorias dentro da Universidade de São Paulo, que tenha em sua composição alunos/as/es, trabalhadores técnico-administrativos, professores e membros/as/es da sociedade civil e militância, de modo a obter uma composição, a mais diversa e democrática possível, e que seja responsável:

  • pelo mapeamento institucional de pessoas trans e negras na Universidade;
  • pela criação de mecanismos permanentes de acompanhamento desses grupos minoritários na Universidade;
  • pela divulgação de dados percentuais relativos ao perfil da comunidade universitária, considerando quantas pessoas trans e/ou negras compõem a Universidade de São Paulo nos três setores (discentes, técnicos-administrativos e docentes) em todas as unidades; e
  • pela criação de um conjunto de políticas de combate a práticas discriminatórias, decorrentes de preconceitos historicamente acumulados.

Segundo informações prestadas pelo Reitor da Universidade São Paulo, nos autos do Inquérito Civil MP 14.739.10616/2018-5, instaurado e em trâmite nesta Promotoria de Justiça para apurar irregularidades na política de cotas no concurso vestibular para ingresso na Universidade de São Paulo, em especial para apurar distorção no critério de inscrição para concorrer às vagas reservadas, a falta de clareza e transparência na destinação dessas vagas e a fiscalização dos critérios para concorrer às vagas destinadas à Ação Afirmativa PPI, existe um sistema de atendimento social que inclui benefícios e auxílios para promover condições de permanência com qualidade em seus campi – programa de Apoio à Permanência e Formação Estudantil (PAPFE), que é administrado pela Superintendência de Assistência Social (SAS) e voltado a alunos de graduação com dificuldades socioeconômicas para se manter na Universidade, que prevê, apoio a moradia, auxílio alimentação, auxílio-livros, auxílio manutenção – destinado apenas aos alunos da EACH/USP Leste e auxílio transporte – apenas para alunos dos Campi do Interior e apoio emergencial.

​Além disso, a Pró-reitoria de Graduação faz a gestão do Programa Unificado de Bolsas, com a atribuição de bolsas de permanência, de periodicidade anual, e seleção de estudantes priorizando indicadores socioeconômicos.

Em 2020 houve um aumento dos recursos destinados à permanência estudantil, bem como passaram a ter validade de dois anos. (fls. 152/171 do Inquérito Civil MP 14.739.10616/2018-5)

​Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), ser transexual no Brasil, hoje, é ter a sua expectativa de vida reduzida para os 35 anos de idade; ser expulso de casa cedo, por intolerância à sua identidade de gênero; não ter, em sua maioria, escolaridade maior do que o ensino fundamental e, pior, não ter acesso ao mercado de trabalho formal, os torna mais de 90% dessas pessoas alvo de exploração sexual e prostituição para manterem-se vivos.

​Recente pesquisa realizada pelo Centro de Estudo de Cultura Contemporânea (CEDEC, 2021), feito com 1.788 transexuais na cidade de São Paulo entre 2019/2020, demonstra que esses dados se confirmam ou estão mudando: houve a comprovação da baixa expectativa de vida, na medida em que 70% dos entrevistados não passavam dos 35 anos.

Não obstante, 51% dos entrevistados declararam ter completado o ensino médio e, desses, um número surpreendente, de 27,1%, declararam haver completado o ensino superior. Apesar disso, 78% saiu de casa até os 20 anos de idade, dos quais 52% o fizeram por vontade própria e 47% em decorrência de expulsão pelos familiares ou em decorrência de brigas com eles, passando a viver de maneira precária.

De outro lado, 26% das pessoas transgênero declararam ter percebido a sua identidade de gênero entre 6 e 10 anos, e 49% entre 16 e 20 anos. O mercado de trabalho é escasso para travestis e mulheres trans: na pesquisa acima referida constatou-se que 90% vivia da prostituição. Há também quem realize trabalho informal (“bico”), que alcança 72% desse segmento.

Não bastasse toda essa situação, essa comunidade vive em constante medo de ser morta, haja vista que o Brasil é o país que mais mata pessoas transgêneras no mundo; e o Dossiê de Assassinatos e Violência contra Travestis e Transexuais, relativo a 2020, não deixa dúvidas: nesse ano foram mortos 175 homens e mulheres transgênero, um número recorde entre os levantamentos feitos até então (BENEVIDES, NOGUEIRA, 2021).

​Como se vê, as estatísticas referidas não deixam dúvidas quanto ao baixo índice de desenvolvimento humano desse segmento da população, assim como a sua severa precariedade existencial, e a necessidade da adoção de ações afirmativas e políticas públicas para alterar essa realidade.

​Segundo reportagem da Folha, realizada no ano de 2019, há cotas específicas para pessoas trans em apenas 12 das 63 universidades públicas, equivalente a 19% do total, e não há nenhum estudo realizado pelo MEC para ampliação desse número, diante da autonomia das universidades para estabelecer suas políticas afirmativas.

Por todo o exposto e

CONSIDERANDO que a República Federativa do Brasil possui como seus objetivos: construir uma sociedade livre, justa e solidária (art.3º, I, CF), erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (art.3º, III, CF) e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art.3º, IV, CF);

CONSIDERANDO que a Constituição Federal reconhece que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (artigo 5º, caput, da Constituição Federal de 1988);

CONSIDERANDO que o combate à discriminação contra a orientação sexual pertence ao escopo de diversos diplomas internacionais ratificados pelo Estado Brasileiro:

  • Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948);
  • Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966);
  • o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966)
  • Protocolo de São Salvador (1988);
  • Declaração da Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (Durban, 2001);
  • O Parecer Consultivo OC-24/2017 da Corte Interamericana de Direitos Humanos também vem sendo invocado constantemente em decisões judiciais do STF e Resoluções do CNJ como fonte jurídica de direitos inerentes à igualdade de gênero e orientação sexual;

CONSIDERANDO que, à parte desses diplomas, existem outros, não ratificados pelo Estado Brasileiro, sendo os principais:

  • Princípios de Yogyakarta (2006) – elaborado por especialistas em direitos humanos e sexualidade, em nome próprio, sem vínculo com seus Estados de origem ou órgãos internacionais;
  • Convenção Interamericana contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância (2013);

CONSIDERANDO que o Princípio 12 dos Princípios de Yogyakarta estabelece que os Estados deverão tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras medidas necessárias para eliminar e proibir a discriminação com base na orientação sexual e identidade de gênero no emprego público e privado, inclusive em relação à educação profissional, recrutamento, promoção, demissão, condições de emprego e remuneração;

CONSIDERANDO que todas essas disposições se encontram em consonância com o princípio basilar do ordenamento jurídico brasileiro, qual seja, a dignidade da pessoa humana, previsto como fundamento da República no inciso III do artigo 1º da Constituição Federal;

CONSIDERANDO que a dimensão coletiva da política afirmativa de cotas também busca reforçar a autoestima dessa minoria política, e assegurar a seus membros o exercício da cidadania plena;

CONSIDERANDO que a política de cotas concretiza os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, previstos no art. 3º da Constituição, de “I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”; e representa a concretização de objetivos fundamentais da República;

CONSIDERANDO ainda, a Agenda 2030 da ONU, que constitui um plano de ação para as pessoas, o planeta e a prosperidade, busca fortalecer a paz universal e contempla 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que são desdobradas em 169 metas visando, entre os vários objetivos, promover uma vida digna a todos e promover ações voltadas para a equidade de gênero;

CONSIDERANDO que o ODS 10 previsto neste diploma, (Redução da Desigualdades), prevê como Metas: 10.2 Até 2030, empoderar e promover a inclusão social, econômica e política de todos, independentemente da idade, sexo, deficiência, raça, etnia, origem, religião, condição econômica ou outra; 10.3 Garantir a igualdade de oportunidades e reduzir as desigualdades de resultado, inclusive por meio da eliminação de leis, políticas e práticas discriminatórias e promover legislação, políticas e ações adequadas a este respeito. (ONU, 2021);

CONSIDERANDO que a Constituição Federal incumbe ao Ministério Público, instituição permanente essencial à função jurisdicional do Estado, a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127);

CONSIDERANDO que compete ao Ministério Público, dentro de sua missão constitucional, zelar para que os poderes públicos respeitem os direitos constitucionais, conforme o artigo 129, II, da Constituição Federal;

CONSIDERANDO que a área de Inclusão Social da Promotoria de Justiça de Direitos Humanos trata de casos em que houver configuração de violação ou risco iminente a direitos fundamentais ou básicos sociais, envolvendo o direito a não discriminação;

RESOLVE esta Promotoria de Justiça de Direitos Humanos, de acordo com o que dispõe o artigo 129, III e VI da Constituição Federal, combinado com o disposto no artigo 25, inciso IV da Lei Federal nº 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público) e o artigo 8º, §1º, da Lei nº 7.347/85 (Lei de Ação Civil Pública), e ante a existência da publicidade aqui mencionada, instaurar o presente INQUÉRITO CIVIL em face da UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP).

Para bem determinar seu objeto, destaca-se que o presente inquérito civil tem por finalidade investigar sobre a existência de políticas anti LGBTfóbicas adequadas e suficientes ao combate e enfrentamento da discriminação, de modo a garantir a permanência e o bem-estar das pessoas LGBTI+ até o término do curso de graduação, bem como sobre a possibilidade e conveniência de adotar providências para implementar política afirmativa de cotas para pessoas transgênero nos concursos vestibulares promovidos pela Universidade de São Paulo.

Neste sentido, peço à Secretaria desta Promotoria de Justiça de Direitos Humanos, Inclusão Social:

  1. Que autue, distribua e registre esta portaria.
  2. Que proceda às anotações devidas no SIS MP Difusos, estabeleça controle de prazos e disponibilize eletronicamente esta portaria no sistema eletrônico de informações do Ministério Público, consoante disposição do artigo 127, I, do Ato Normativo nº 484/06 – CPJ.
  3. Visando instruir os autos, que junte nesses autos cópia das notícias de jornal mencionadas na portaria, abaixo relacionadas, bem como das fls. 107 e 152/171 do IC n 14.739.10616/2018-5:

​​​​4. Que expeçam ofícios eletrônicos, instruídos com cópia desta portaria:

  1. a) à Reitoria da Universidade São Paulo solicitando:

1.A-) Esclarecimentos sobre as medidas adotadas pela Universidade, após os fatos mencionados, em especial sobre:

– a ampliação dos atendimentos no ESM (Escritório de Saúde Mental) e a criação de um plano de apoio psicológico aos alunos;

– a criação de uma espécie de CVV (Centro de Valorização da Vida) próprio, que também seja responsável pela realização de pesquisa e levantamento de dados sobre saúde mental dos alunos.

1.B-) A remessa de cópias:

– da resposta encaminhada ao Coletivo Xica Manicongo, em face da carta de reivindicações, por eles encaminhada.

​​​​b) à Superintendência de Assistência Social (SAS), responsável pela administração do Programa de Apoio à Permanência e Formação Estudantil (PAPFE) solicitando:

– informações sobre a realização de estudo de permanência dos alunos transgênero, que aborde e identifique as causas da não permanência desses alunos na Universidade.

​​​​Prazo para as respostas: 30 dias.

​​​

​​​​São Paulo, 31 de janeiro de 2022.

Anna Trotta Yaryd

1ª Promotora de Justiça de Direitos Humanos