Juízes, promotores e especialistas exigem do MEC a abertura de amplo debate sobre mudanças em estudo. Eles temem que crianças e adolescentes com deficiência voltem a ser excluídos da escola regular
por Cida de Oliveira, da RBA
São Paulo – Vencedora do Prêmio Darcy Ribeiro de Educação em 2015 e autora do livro Débora conta Histórias, a professora Débora Seabra, 36 anos de idade e 13 de profissão, deu uma lição na desembargadora Marília Castro Neves, do Rio de Janeiro. Em resposta a um comentário preconceituoso da magistrada, em março passado, a professora auxiliar de uma escola em Natal (RN) foi direto ao ponto: “Tenho síndrome de Down e ensino muitas coisas para as crianças. A principal é que elas sejam educadas, tenham respeito pelas outras, aceitem as diferenças de cada uma, ajudem a quem mais precisa”. A formação profissional de Débora e a inserção no mercado de trabalho é uma conquista que só foi possível por meio da luta contra a segregação social e pelo direito à educação da pessoa com deficiência em escolas da rede regular.
Tamanha conquista, porém, sofre ameaça de retrocesso. Nesta quinta-feira (24), a Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (Amaerj) enviou ofício ao ministro da Educação, Rossieli Soares da Silva, manifestando preocupação com as mudanças em estudo na Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI). E pediu uma audiência com o ministro antes que seja aberta uma consulta pública anunciada pelo MEC.
O temor da entidade é com o teor das propostas apresentadas durante reunião realizada no último dia 16 de abril, para a qual foram convidados apenas representantes dos secretários municipais e estaduais de Educação, dos institutos Benjamin Constant e de Educação de Surdos (Ines), do Conselho Nacional de Pessoas com Deficiência (Conade), das organizações das Pessoas com Deficiência (Corde), da Federação das Associações das Pessoas com Síndrome de Down (Febasd), do Conselho Brasileiro para Superdotação (Combrasd), das Apaes, associações Pestalozzi e Organização Nacional de Cegos do Brasil (ONCB).
Para ela, as propostas apresentadas são “claramente inconstitucionais e restritivas dos direitos dos alunos da educação especial”, confrontando a atual legislação do setor, que contempla o Estatuto da Criança e do Adolescente, da Pessoa com Deficiência e a Convenção Internacional das Pessoas com Deficiência e amplia o conceito de educação especial, prevendo, entre outros pontos, a participação do aluno com deficiência na sala de aula comum da escola regular.
Outras entidades e movimentos, que a exemplo da Amaerj foram excluídas do debate, também enviaram ofício ao MEC. Entre eles, a Associação dos Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos dos Idosos e Pessoas com Deficiência (Ampid), Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Fórum Nacional Popular de Educação (FNPE), Grupo de Atuação Especial de Defesa da Educação (Geduc) do Ministério Público Estadual da Bahia, Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (Mieib), Departamento de Educação da USP de Ribeirão Preto, Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência da OAB de Campinas e Grupo de Estudos e Pesquisas em Aprendizagem e Inclusão da UnB, além de professores e coordenadores pedagógicos de redes estaduais e municipais.
Pesquisadores do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença (Leped), da Faculdade de Educação da Unicamp também se manifestaram junto ao MEC. E elaboraram una análise das propostas em discussão na pasta.
Em documento assinado pela coordenadora Maria Teresa Eglér Mantoan, o grupo afirma que o objetivo da reforma do MEC é permitir que a Educação Especial volte a ser de natureza substitutiva à escola comum. “Não é mero acaso. A educação especial como modalidade escolar substitutiva foi responsável, no passado, pela invisibilidade de pessoas com deficiência. Em 2018, é inadmissível que, a pretexto de ‘atualizar’ a Política, abra-se novamente a porta para retrocessos”, diz o documento.
Conforme a análise, a política atual supera o antigo modelo em que critérios como “incapacidade”, “limitação” ou “problema” definiam quais alunos poderiam estudar, que pode ser retomado conforme sugerido pelas propostas apresentadas. “Espera-se que o MEC não esteja novamente considerando a possibilidade da privação do direito à educação com base no inexistente direito da família de ‘escolha’ entre escola comum e escola ou sala especial. Na reunião organizada pelo MEC no dia 16 de abril, boa parte das instituições ali presentes sugeriu, abertamente, que a reforma da PNEEPEI considere o retorno dessa prática desumana e inconstitucional”, afirmam os autores.
Ressaltando ser a educação inclusiva uma política de Estado, compromisso reiterado com a ratificação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, os autores defendem que não cabem mudança de conceito e privação de direitos, com consequências gravíssimas no que diz respeito à vida independente e autonomia. E destacam ainda que a educação é direito indisponível e inalienável; que a criança deve estudar, com os pais e o Estado assumindo este compromisso. “Não cabe decisão contrária ao acesso e permanência na escola de todos e de cada um, sob risco de se violar gravemente a lei. Ao gestor que nega matrícula, a Lei Brasileira de Inclusão elevou a pena de reclusão para dois a cinco anos, ou seja, matéria pacificada, que não se discute. O acórdão da Ação Direta de Constitucionalidade 5357, do Supremo Tribunal Federal, é elucidativo para o slide em questão”, sublinham.
O documento lembra ainda que a inclusão escolar de pessoas com deficiência é um fato, porque a educação especial deixou de ser uma modalidade substitutiva do ensino comum para pessoas com deficiência, tornando-se uma modalidade transversal e complementar/suplementar da formação do aluno com deficiência. E que o Ministério da Educação não pode estar à frente de um retrocesso vergonhoso em relação ao direito à educação em um “sistema educacional inclusivo”.
Ao contrário dessas entidades que defendem o debate, a Apae defende a aprovação da reforma. E a colocação, em consulta pública, do texto-base a partir das propostas apresentadas na reunião, na qual eles tiveram participação. A reportagem teve acesso ao ofício encaminhado por uma dessas associações.
Procurado pela reportagem, o MEC se limitou a dizer que a Política Nacional de Educação Especial é de 1994 e que já passou por atualização em 2008, ainda no governo Lula. “Agora, depois de dez anos, o Ministério da Educação está iniciando um estudo para atualização da Política, uma vez que, assim como em 2008, é necessário adequá-la às novas legislações e terminologias decorrentes dos últimos 10 anos”, afirma a nota oficial. “Essa atualização contará com consultas a especialistas, entidades representativas da sociedade civil bem como representantes dos sistemas de ensino. Após essas consultas, será elaborado uma proposta inicial que ainda irá para consulta pública, para que a sociedade possa dar contribuição, buscando aperfeiçoa-la, de modo a atender, numa perspectiva plural, o interesse da sociedade.”
Fonte: Rede Brasil Atual