Por Vladimir Safatle, blog da Comissão Arns
A fragilidade institucional do Brasil não é algo que possa, nessa altura, ser objeto de dúvida.
Como um trem em direção ao choque e que nada parece conseguir parar, o país descobre a cada dia situações que apenas explicitam como seu processo eleitoral e sua possível transferência de poder não será algo “normal”, independente do que esse termo possa realmente significar.
Durante os anos Bolsonaro, não foram poucas as ocasiões nas quais vimos tentativas de desestabilização e de criação de condições para algo próximo a um golpe.
A última delas ocorreu em 7 de setembro do ano passado. Depois disso, Bolsonaro soltou uma carta à nação assinando-a com o lema integralista. Alguns de seus apoiadores mais entusiastas receberam mandados de prisão.
Boa parte dos analistas disse que essa era a expressão de que ele fora obrigado a recuar, demonstrando sua fraqueza. Quem disse à ocasião que o golpe já havia começado parecia ter se equivocado.
No entanto, o país voltou nesses últimos dias ao mesmo ponto, agora graças às Forças Armadas atuarem de forma explícita como agente desestabilizador, questionando junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) procedimentos eleitorais.
Como se às Forças Armadas fosse dada alguma forma estranha de legitimidade para se colocar como instituição que pode exigir de outras instituições da República explicação, “sugerir” modificações de procedimentos, mesmo em se tratando de assunto que em nada concerne aos militares.
Ou seja, as Forças Armadas assumiram claramente o que hoje são, ou seja, o governo. Concretamente, esse é um governo militar, como não poderia deixar de ser um governo que tem 7 mil militares em postos do primeiro e do segundo escalão.
Sendo governo, os militares mostraram como estão completamente alinhados aos desejos do sr. Bolsonaro.
Há mais ou menos um ano, ele havia trocado o comando das Forças Armadas e houve analistas que entenderam, mais uma vez, que se tratava de expressão de fraqueza e desespero do governo em sua tentativa de submeter os quarteis a seus interesses.
Um ano depois, está evidente que não havia fraqueza alguma, que o processo de alinhamento transcorreu de forma consistente. Ou seja, o Brasil se prepara para uma crise institucional.
Um golpe clássico é apenas um dos cenários possíveis, sempre ao alcance da mão, caso seus atores entendam que as condições estão dadas para tanto.
Mas, entre um golpe e o respeito ao resultado das eleições, há múltiplos cenários possíveis. O Brasil sabe muito bem fazer remendos institucionais quando suas elites julgam isso necessário, haja vista a invenção prêt-à-porter do parlamentarismo nos anos 1960.
A verdade é que muitos de nós insistimos que não havia outra coisa a fazer do que lutar e exigir o impeachment de Bolsonaro o mais rápido possível, antes do processo eleitoral, pois justificativas não faltavam, seus desejos de ruptura institucional nunca precisaram ser escondidos.
No entanto, em nome do respeito institucional e da recusa em fazer o país para por mais outro “trauma”, estamos agora diante de um trauma que chega até nós em câmera lenta.
Insistiria que esse comportamento dos atores políticos governistas é fundamentado, entre outros, na compreensão de que haverá apoio popular relativo a tudo que Bolsonaro tentar.
Depois de uma gestão criminosa da pandemia, com suas mais de 700 mil mortes, depois de uma gestão econômica de pauperização e depois de ser o primeiro governo em décadas a entregar a nação à diminuição do poder de compra do salário mínimo, o ocupante atual da presidência detém algo em torno de 30% das intenções de voto.
Se levarmos em conta que sequer começamos a campanha eleitoral e que, em campanha, ocupantes do governo que tentam reeleições têm a tendência natural de subir, uma vez que contam com o apoio da máquina governamental, podemos perceber uma impressionante resiliência que mereceria ser estudada mais a fundo e de forma mais analítica.
“Mais analítica” não está aí de maneira gratuita.
Seria o caso de salientar que de nada adianta afirmar que a luta contra Bolsonaro é uma luta “da civilização contra a barbárie”, “da ciência contra o obscurantismo”, “da alegria contra o ódio” e coisas dessa natureza.
A afirmação de nossa pretensa superioridade moral e intelectual nunca serviu de nada, apenas para compensar nossa dificuldade em compreender como a extrema direita e governos proto-fascistas se consolidam.
Fascistas se viam como os reais representantes da grande cultura ocidental pretensamente degradada devido à sua instrumentalização pelo “bolchevismo cultural”.
Os livros didáticos da Alemanha nazista tinham citações de Platão para justificar o racismo, pareceres a favor da eutanásia vinham com citações de Sêneca.
Isso serve, entre outras coisas, para nos lembrar de que nossa civilização não é garantia alguma contra a barbárie. Ela a porta em seu coração como uma de suas potencialidades. Estaremos mais aptos a lidar com regressões sociais e políticas se compreendermos o quanto de sombra há em nossas luzes.
Da mesma forma, seria o caso de dizer que “ódio” é uma categoria teológico-moral. É a figura sucedânea do “mal”, do “irracional”, do “diabólico”. E não está nítida qual pode ser a função de categorias teológico-morais dessa natureza dentro de um embate político. Bolsonaristas também nos descrevem como seres impulsionados pelo ódio.
Por isso, seria mais útil nesse momento se perguntar como a extrema direita cresce a partir de nossas próprias contradições e silêncios, como ela captura desejos reais de mudança e ruptura.
Bolsonaro mobilizou seus eleitores durante toda a pandemia utilizando o discurso da liberdade como propriedade que cada indivíduo teria sobre seu próprio corpo. Ele falou a todo momento da capacidade de assumir riscos e não esperar alguma forma “paternalista” de segurança em relação ao Estado. Bem, quantas vezes discursos dessa natureza foram usados por quem se diz progressista? Continuamos a acreditar neles?
De fato, o discurso político da oposição ao governo tem um movimento pendular que oscila entre os chamados a “dialogar” com setores da população fiéis a Bolsonaro e a descrição de que nossa luta é contra a “barbárie”.
Essa polaridade não tem como funcionar. Melhor seria lembrar que mobilizações políticas que se organizam de forma eminentemente negativa, a partir da recusa a um candidato (“agora, somos todos contra Bolsonaro”), tem fôlego curto. Quebrar a força popular do bolsonarismo exige mais, exige impedir que a imaginação política passe pela atrofia.
Em várias partes do mundo, vemos o exercício de construir novos horizontes de luta através da produção de inovações políticas e criações institucionais. O Chile discute a implantação do Estado Paritário e do estado Plurinacional, Berlim luta por aprovar uma lei que tabela e diminui o preço dos aluguéis, a França discute a criação de um salário máximo e de uma limitação da diferença salarial no interior das empresas (como forma de forçar subir os menores salários), os Estados Unidos, através de Bernie Sanders, discutiram a implementação de uma cota obrigatória de trabalhadoras e trabalhadores no conselho de gestão de todas as empresas.
E nós? Estamos a criar unidade a partir do quê? A partir do medo a Bolsonaro? O quanto isso pode efetivamente funcionar e por quanto tempo?
Lutar contra o golpe passa por fazer a política operar no que ela tem de mais forte, a saber, sua capacidade de nos fazer criar futuros, ampliando o horizonte dos possíveis.