Vídeos com violência, estímulos a transtornos alimentares, teor sexual e uso de substâncias ilícitas são alguns que podem ser encontrados, embora proibidos pela plataforma

Quem tem um filho menor de idade dificilmente nunca ouviu falar do TikTok. A rede de vídeos curtos, com edições geralmente aceleradas, cheias de estímulos e com entrega personalizada para o gosto do usuário tem crescido em ritmo impressionante – criada em 2016, já conta com um bilhão de usuários ativos, mais do que o Twitter. E esse sucesso deve-se especialmente à popularização entre os mais novos.

Segundo um levantamento realizado pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), a plataforma é a mais utilizada por crianças e adolescentes de 9 a 17 anos. De 11 a 12 anos, ela chega a ser a preferida de quase metade (48%), enquanto Instagram e Facebook juntos são mencionados por apenas 30%. Isso ocorre ainda que o aplicativo, em tese, seja proibido para menores de 13 anos.

Um levantamento da Qustodio, plataforma de controle parental, identificou ainda que a faixa etária de 4 a 18 anos passa cerca de 107 minutos por dia na rede, quase duas horas. O cenário preocupa os pais devido à disseminação de conteúdos nocivos que podem escapar do filtro da plataforma, como os que abordam desafios arriscados, teor sexual, incentivo de substâncias ilícitas, entre outros.

Um experimento feito pelo Centro de Combate ao Ódio Digital dos Estados Unidos (CCDH, da sigla em inglês), que simulou um perfil de um jovem de 13 anos, identificou que em apenas 30 minutos a página “For You” – seção que recomenda algoritmicamente o conteúdo aos usuários – sugeriu vídeos que encorajavam automutilação, suicídio e transtornos alimentares.

– O jovem encontra conteúdos altamente inadequados para ele porque o algoritmo pode favorecer o que é mais atrativo, mas que não é bom para a criança e o adolescente. Uma criança preocupada com o peso aos 10 anos pode começar a receber conteúdos normalizando transtorno alimentar, de dismorfia corporal, e se engajar em atividades com riscos à saúde para buscar esse ideal de emagrecimento – exemplifica o pediatra Daniel Becker, médico sanitarista do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e colunista do GLOBO.
Mas, se todas as redes têm um algoritmo de perfilização do conteúdo, o que está por trás do “boom” do TikTok? Paulo Faltay, professor da UFRJ e pesquisador do MediaLab.UFRJ, explica que outras plataformas faziam a seleção do conteúdo a partir de redes de amigos ou páginas que o usuário deliberadamente escolhia. Porém, no TikTok, a “For You” amplia esse universo e passa a sugerir todo tipo de conteúdo partindo do que a rede conclui ser do interesse do jovem, com base na forma pela qual o usuário utiliza a rede.

– A ponderação não é mais do que ou de quem você escolheu seguir, mas de toda a rede TikTok. Essa variabilidade também faz com que as pessoas passem mais tempo no aplicativo. Outras redes perceberam isso e estão copiando o TikTok, adotando essas sugestões mais amplas de conteúdo – diz o especialista.

Um dos problemas são os desafios, espécies de competições online que podem envolver comportamentos de risco e que ganham tração no TikTok. Um dos casos que repercutiu no ano passado foi o “Desafio do Apagão”. De acordo com um levantamento da Bloomberg Businessweek, do meio de 2021 até novembro de 2022, ao menos 15 crianças com 12 anos ou menos, e cinco adolescentes entre 13 e 14 anos, morreram envolvidas na trend que envolvia induzir a si mesmo ao sufocamento por alguns segundos.
– Crianças e adolescentes funcionam na base da emoção e do prazer, eles não têm capacitação mental para avaliar o risco desses desafios. Eles querem “aparecer” uns para os outros e acabam por transgredir a linha de segurança – avalia o pediatra Marco Antônio Chaves Gama, do Grupo de Trabalho sobre Saúde na Era Digital da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).

Isso acontece porque durante a infância e a adolescência o cérebro ainda está em desenvolvimento, pontua o professor de pediatria da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) Eduardo Jorge Custódio, presidente do grupo de trabalho de mídias digitais da Sociedade de Pediatria do Estado do Rio de Janeiro (Soperj).

– No adolescente, o desenvolvimento do córtex pré- frontal, que é muito ligado a juízo de valores, capacidade de concentração, de julgar riscos, só ocorre no final. Então é um cérebro que tem muito motor e pouco freio. E quando você dá estímulos inadequados isso atrapalha essa formação de critérios para a tomada de decisão – diz o especialista.
E o papel dos pais na mediação do uso da plataforma é imprescindível, afirmam os especialistas, pois a questão não é apenas a exposição aos conteúdos, como também a interação com os usuários presentes na rede.

– Hoje existem práticas mais perigosas, como o grooming, em que pessoas se passam por gente mais nova e cria um contato íntimo com adolescentes. Na novela (“Travessia”, da TV Globo) nós estamos vendo isso porque é real. E existe o cyberbullying, o sexting, que envolve enviar nudes (imagens íntimas) que podem virar uma chantagem contra a própria pessoa – diz a psicóloga Carla Cavalheiro, do Ambulatório de Dependências Tecnológicas do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP).

Para proteger os menores de idade, o TikTok tem diretrizes que proíbem a veiculação de desafios perigosos, estímulos a transtornos de saúde mental e alimentares, vídeos com nudez e teor sexual, bullying, assédio, violência e discurso de ódio, imagens explícitas, entre outros. No entanto, como mostrou o estudo do CCDH, é comum publicações escaparem do monitoramento.

Além disso, embora o acesso ao aplicativo seja permitido apenas para maiores de 13 anos, crianças com idades inferiores à exigida criam perfis com informações falsas. Somente no ano passado, a empresa removeu cerca de 78,3 milhões de contas por suspeita de terem burlado o critério etário – cerca de 8% do total de usuários ativos.

Em nota enviada ao GLOBO, o TikTok afirma que “está empenhado em garantir uma experiência segura e positiva para todos os usuários e, principalmente, os mais jovens, entre 13 e 18 anos de idade”, mas não respondeu quais medidas são tomadas para intensificar a fiscalização do conteúdo.

– É muito opaca essa forma de mediação que eles fazem, não existe uma auditoria para saber o que de fato tem sido feito (em relação ao filtro de conteúdos que ferem as diretrizes). E isso não se refere apenas ao TikTok, o Youtube também tem muito conteúdo nocivo. Ficamos à mercê do que essas empresas e plataformas informam* – afirma Faltay.

A rede acrescenta que disponibiliza um guia para os pais “elaborado para oferecer uma visão geral do TikTok e das várias ferramentas e controles para preservar a segurança de nossa comunidade”. (Veja as funcionalidades abaixo).

Para lidar com o cenário, os especialistas orientam que o primeiro passo é respeitar o limite etário, e apenas permitir o uso a partir dos 13 anos. Já entre os mais velhos, as palavras de ordem são supervisão e educação. Carla pontua que é importante que os pais saibam utilizar a plataforma para implementar ferramentas disponíveis nela que auxiliam nesse sentido.

Recentemente, o TikTok instituiu a Sincronização Familiar, em que os pais podem vincular sua conta no TikTok à do filho para acessar o conteúdo que está sendo exibido. A rede também anunciou a limitação tempo de tela de usuários com menos de 18 anos para 60 minutos diários, que pode ser desbloqueado com a senha.

Mas, outros limites de tempo também podem ser definidos pelos pais. Há ainda como tornar a conta privada, para que apenas perfis autorizados possam acessar o que está sendo publicado pelos jovens. (Todas as funcionalidades para os pais podem ser acessadas pelo Guia do TikTok clicando aqui)

As medidas, avaliam os especialistas, são boas e devem ser utilizadas. Porém, para além dessa supervisão com as ferramentas, o mais efetivo é entrar na rede ao lado do filho para que ele possa ser educado sobre o que está sendo exibido durante o uso e, assim, desenvolver um senso crítico. Nesse momento, é importante priorizar uma postura acolhedora, e não reativa, mesmo ao se deparar com conteúdos nocivos ou algum uso inadequado pelo adolescente.

– O que acontece é que muitos pais tiram as redes, castigam, brigam, e aí você não ensina, não acolhe. E o problema vai continuar acontecendo, porque o jovem não vai se sentir confortável para falar sobre e vai acessar pelo celular de amigos. Nós não vamos voltar para trás, então é preciso fazer uma orientação engajada e falar em educação digital. Não é para demonizar ou fazer uma postura alarmista, mas precisamos estar mais atentos – afirma a psicóloga.

Becker destaca ainda que, embora os pais sejam os principais quando se fala sobre o assunto, a dimensão que as redes tomaram na sociedade demanda um esforço de escolas e de formulação de políticas públicas capazes de obrigar as plataformas a monitorarem o conteúdo de forma mais eficaz. Ele destaca ainda os casos recentes de ataques em escolas, e como há grupos que estimulam a violência crescendo hoje nas redes sem grandes obstáculos.

– Antes falava-se em ‘deep web’ (parte da internet mais difícil de ser acessada), mas hoje está bem mais acessível a exposição de crianças e adolescentes a comunidades de extrema direita que estimulam ofensas, violência, fake news, racismo, machismo. E jovens que muitas vezes tendem a ser mais introspectivos, que sofrem rejeição, acabam esbarrando nesses grupos que são extremamente acolhedores para eles – afirma.

Fonte: Uerj.br