A pandemia nos alerta sobre a urgência de jogar luz sobre a precariedade de quilombolas no acesso à saúde. Iniciativas de comunidades, universidades e sociedade civil mapeiam cenário da covid-19 entre esses grupos
A subnotificação tornou-se um tema central na abordagem da pandemia da covid-19 no Brasil. Mas, se a situação de subnotificação é grave nas grandes metrópoles e agravada nas suas periferias, o que pensar das comunidades rurais? E, se somarmos a esse plano de subnotificação o efeito de vulnerabilidade e invisibilidade da população negra, como já demonstrado na resistência governamental em introduzir as informações de raça e cor nas atualizações do Ministério da Saúde? Aliás, mesmo depois de introduzidas nas ferramentas de coleta, elas continuam inacessíveis no portal do governo que divulga os dados sobre o avanço da doença.
Adicione-se a essas variáveis o racismo histórico-estrutural que manteve a maior parte das comunidades negras rurais fora do campo de investimentos e expansão das políticas públicas estaduais e municipais de saúde. Assim entenderemos por que as comunidades quilombolas situam-se em uma situação extrema com relação ao tema da subnotificação e, muito provavelmente, em termos de vulnerabilidade ao avanço da pandemia. A situação de precariedade dessas comunidades com relação às políticas fundiárias e educacionais tem sido bastante abordada pela bibliografia especializada. Mas a pandemia veio nos alertar sobre a necessidade e a urgência de jogar luz sobre esta terceira precariedade, relativa ao acesso às políticas de saúde. Nesse contexto, a noção de precariedade confunde-se com a de necropolítica, essa variação colonial e pós-escravista da biopolítica: um modo de governar a vida que normaliza a morte de alguns em favor da segurança de outros.
O total desconhecimento sobre a situação de impacto da covid-19 nos territórios quilombolas só começa a ser dissipado por iniciativa das próprias organizações políticas quilombolas em parceria com universidades ou organizações da sociedade civil. Como acontece nas periferias metropolitanas, trata-se de recorrer à lógica do “nós por nós mesmos”.
A principal iniciativa nesse sentido surgiu da parceria entre a Conaq (Coordenação Nacional de Comunidades Negras Rurais Quilombolas) e o ISA (Instituto Socioambiental) na criação da plataforma Observatório da Covid-19 nos Quilombos. Essa iniciativa é uma denúncia da invisibilidade da pandemia nessas comunidades, ao mesmo tempo que toma a frente no seu monitoramento. A plataforma realiza a contagem atualizada do número de casos monitorados, dos casos confirmados e dos óbitos de quilombolas, assim como a projeção dessas informações sobre um mapa interativo, no qual é possível localizar as comunidades com casos e os hospitais públicos próximos com UTI. Ela oferece também uma lista atualizada das notícias sobre o tema.
O total desconhecimento sobre a situação de impacto da covid-19 nos territórios quilombolas só começa a ser dissipado por iniciativa das próprias organizações políticas quilombolas em parceria com universidades ou organizações da sociedade civil
Em 11 de agosto, a plataforma registrava 1.117 casos monitorados, 4.017 casos confirmados e 149 óbitos por covid-19 nos quilombos. Em 20 de junho, esses números eram de 190 casos monitorados, 723 casos confirmados e 84 óbitos. Houve crescimento de aproximadamente 455% no número de casos confirmados em um mês e meio. Mesmo essas informações, porém, são apenas uma aproximação da situação real, na medida em que nelas o efetivo avanço da doença mistura-se com o progressivo aperfeiçoamento da própria plataforma na sua capacidade de registrar os casos. Assim, talvez a curva de crescimento não seja tão acentuada, mas, muito provavelmente, os números absolutos ainda subestimam a realidade.
Outras iniciativas estão menos focadas no monitoramento da pandemia e mais voltadas para um diagnóstico da situação de vulnerabilidade dos territórios quilombolas frente a ela. Esse é o caso do levantamento realizado pelo Ceaq-BA (Conselho Estadual das Comunidades e Associações Quilombolas do Estado da Bahia), em parceria com pesquisadores de três universidades públicas: a Universidade do Estado da Bahia, a Universidade Federal do Oeste da Bahia e a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Realizada entre março e abril, por meio de entrevistas on-line (por WhatsApp) roteirizadas com lideranças de 35 das 45 comunidades quilombolas do Território Velho Chico, a pesquisa cobriu mais de 100 localidades, 7.599 famílias, 4.114 domicílios e 15.527 pessoas. O Território Velho Chico é um dos 27 “territórios de identidade” em que o estado da Bahia está dividido para efeitos de planejamento de políticas públicas. Ele inclui 16 municípios, dos quais 11 têm comunidades quilombolas.
A pesquisa mostra que, nessas 35 comunidades, os domicílios contam com uma média simples de 3,7 pessoas, e a proporção de idosos (acima de 60 anos) varia de 4 a 17%, chegando a uma média de 10%do total de moradores. Em apenas 20 comunidades a população conta com atendimento por agentes comunitários de saúde, e em apenas seis delas o atendimento é realizado em um posto de saúde localizado no próprio território.
Mesmo nesses seis territórios beneficiados com a presença de um posto de saúde, o atendimento, que antes da pandemia já era precário em termos de infraestrutura e de regularidade, sofreu muito com as mudanças de orientação das políticas municipais e estaduais de saúde. Houve redução tanto do número das equipes do Programa Saúde da Família em atividade quanto na frequência daquelas que continuaram atendendo às comunidades. Na comunidade de Rio das Rãs (em Bom Jesus da Lapa), por exemplo, depois da pandemia, uma das duas equipes do PSF parou de atender, enquanto a outra equipe reduziu o atendimento a duas vezes por semana. Na comunidade de Jatobá (em Muquém do São Francisco) o atendimento passou a estar restrito às mulheres gestantes, em regime reduzido, enquanto na comunidade de Agreste (em Riacho de Santana), na época da pesquisa, o médico já estava ausente havia 60 dias.
A situação das outras 29 comunidades que não contam com posto de saúde nos seus territórios varia entre aquelas nas quais os moradores estão cadastrado no PSF situado em outra comunidade próxima, e aquelas nas quais os moradores só têm acesso à saúde por meio do deslocamento até a sede do município. É nesse contexto que ganha dramaticidade o segundo problema decorrente da discriminação histórica sofrida por tais comunidades na distribuição de políticas e recursos públicos: a precariedade das estradas e do transporte.
Das 35 comunidades entrevistadas, 18 declararam que a situação das suas estradas é péssima, e outras nove as classificaram como ruins. Além disso, os moradores dessas comunidades precisam deslocar-se por meio de transporte ilegal, de frequência irregular ou fretado, e quase sempre sem manutenção adequada. Nesse contexto, além de o próprio transporte constituir um fator de risco constante, ele pode inviabilizar o atendimento aos casos de urgência.
A pesquisa acrescenta que as ações de assistência e o auxílio governamental anunciados durante a pandemia, como doação de cestas básicas e apoio médico hospitalar, são medidas que atingem quase que exclusivamente a população da capital, Salvador. No interior, em especial nos territórios abordados, as políticas emergenciais (federais, estaduais e mesmo as municipais) ainda não haviam alcançado, em abril, as comunidades quilombolas. O auxílio emergencial de R$ 600, por exemplo, não tem contemplado todas as pessoas cadastradas nas comunidades. Isso deixa a descoberto tanto as comunidades com predominância de produtores agrícolas quanto aquelas onde predominam os trabalhadores diaristas. Com as barreiras levantadas em torno das sedes municipais e a drástica redução do transporte público, os quilombolas já não podem vender a sua produção doméstica nas feiras das cidades próximas, nem seus dias de trabalho na cidade.
Em abril havia o registro de apenas dois casos confirmados de covid-19 no Território Velho Chico, ambos em Curralinho, uma das cinco comunidades quilombolas do município da Barra, que conta com um total de 958 residências. Curralinho foi certificada como quilombola em dezembro de 2018, mas continua sem a titulação das suas terras. A média de pessoas por domicílio ali é de 4,4, e a proporção de idosos (acima de 60 anos) é a mais alta registrada na região: 17,2%.
A comunidade não tem acesso à cobertura plena de rede elétrica, não tem posto de saúde e depende do acesso ao hospital do município, que fica a 18 km por rio e 80 km por terra. O acesso à cidade pela estrada, por sua vez, é interrompido constantemente pelas chuvas, impondo desvios na terra e obrigando os moradores a usar barcos improvisados. Diante da ausência de suporte do município, seus habitantes vêm mediando o problema por meio de mutirões.
O relatório relata ainda e existência de problemas psicológicos em Curralinho depois da pandemia, em função da total mudança de rotina dos moradores, do medo, da ansiedade e do sentimento de privação de liberdade. Os estabelecimentos existentes na própria comunidade estão fechados, e quando os moradores vão à cidade para retirar seus benefícios (basicamente Bolsa Família e aposentadorias) ou fazer compras, têm de enfrentar transportes cheios e filas maiores que o normal.
A pesquisa da Ceaq-BA é reveladora não tanto em função do número de pessoas contaminadas que apura, mas justo ao contrário, pelo quanto nos permite estimar a subnotificação desses casos. Ela oferece um retrato das condições sociossanitárias dessas comunidades, que revela uma espécie de subnotificação estrutural, que talvez nunca permita uma noção clara do quanto as comunidades quilombolas foram afetadas por esta pandemia. Neste caso, de um lado, a subnotificação corresponde diretamente ao sub-acesso à saúde, ou seja, a uma subcidadania. De outro lado, pensada como estratégia de governo, a subnotificação qualifica a inação governamental, retirando-a do campo da pura incompetência para caracterizá-la como uma política deliberada.
Finalmente, vale registrar a fala de Sandra Andrade, uma das mulheres quilombolas que hoje dirigem a Conaq, no seminário de apresentação da plataforma Observatório da Covid-19 nos Quilombos:
“Eles juraram de nos matar e nós não vamos morrer […] As 30 mil mortes que o nosso dirigente falou [em 1999] que têm que acontecer no país […], acho que é isso, que é os negros e os povos tradicionais têm que ir, [que] estão nessa fila. É esse racismo institucional que a gente luta há bastante tempo […] Nós vamos resistir, sim, a esta pandemia. Nós estamos obtendo ajuda de apoiadores, doações que estão chegando até essas comunidades, não pelos órgãos federais ou federados, mas pelas organizações, pelas pessoas que são sensíveis à causa, [que] estão socorrendo essas comunidades. […] A gente quer que isso passe e que este governo passe junto também, que vá junto com o covid, que a gente vença estas duas batalhas”
Sandra Andrade
coordenadora-executiva da Conaq, em live de lançamento do Observatório da Covid-19 nos Quilombos em maio de 2020
José Maurício Arruti é historiador, antropólogo, professor da Unicamp e pesquisador do CEBRAP.
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