Por Stela Guedes Caputo

Juliana Ferreira, de 33 anos, foi denunciada pelo Ministério Público de São Paulo porque sua filha, de 11, se iniciou no candomblé. A história surge um ano depois de Kate Belintani, 41 anos, também ter perdido a guarda de sua filha Beatriz Belintani, de 13, devido à iniciação da menina. Iniciação, aliás, interrompida por policiais que invadiram o terreiro e levaram Beatriz. No caso de Juliana, as escarificações (pequenas e leves incisões no braço da filha) foram tidas como lesão corporal. No caso de Kate, a raspagem da cabeça de Beatriz foi apontada como maus-tratos pelo Conselho Tutelar de Araçatuba (SP).

As mães travaram uma batalha jurídica, com o advogado Hédio Silva. Kate recuperou a guarda depois de 15 dias afastada de Beatriz. Juliana foi absolvida no dia 14 de julho, após seis meses proibida de ver sua filha. Os dois casos não são “apenas” aberrações jurídicas. Trata-se de racismo religioso, uma das muitas dimensões do racismo de nossa sociedade.

A violência cometida contra essas famílias fere inúmeras legislações. A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, adotada pela ONU em 1989, determina que os signatários reconheçam os direitos da criança à liberdade de pensamento e de crença religiosa. Nossa Constituição Federal diz ser inviolável a liberdade de consciência e de crença e assegura o livre exercício dos cultos religiosos, garantindo a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. O Estatuto da Criança e do Adolescente mantém o direito do pai e da mãe de transmissão familiar de suas crenças. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional exige o respeito pela diversidade étnico-racial. O que faz, então, com que todo esse amparo legal não impeça mães de perderem a guarda de suas filhas e filhos por vivenciarem religiões de matriz africana? O racismo religioso impede.

O filósofo Silvio Almeida já reafirmou que o racismo é uma decorrência da própria estrutura social. Como coordenadora do grupo de pesquisa Kékeré (que significa miúdo, em iorubá), do Programa de Pós-Graduação em Educação da Uerj, pesquiso há três décadas crianças de terreiros em todo o Brasil. Temos realizado estudos e campanhas defendendo o terreiro como um direito delas.

Aprendemos muito com as crianças de terreiros, inclusive sobre racismo religioso. “Sou discriminada por ser do candomblé e por ser negra”, me disse Joyce dos Santos, aos 13 anos, ainda em 1996. Após ser arrancada de sua iniciação e de sua mãe por policiais, Beatriz Belintani voltou ao seu terreiro e concluiu o ritual. “Me machuca é saber que tem pessoas que não sabem respeitar a escolha de outras pessoas. Independentemente de religião, cor, raça, todos somos iguais”, disse-me recentemente.

O racismo é um sistema que discrimina, persegue e mata pessoas negras. Mas também busca destruir um patrimônio ancestral negro preservado e ressignificado pelas religiões de matriz africana. As crianças e jovens de terreiros vivem, desde cedo, várias dimensões do racismo, entre elas o racismo religioso.

As perseguições aos terreiros não começaram agora, mas há uma nova dinâmica nos ataques terroristas contra as casas de axé, legitimada pelo que o advogado Hédio Silva chama de “ocupação do Estado por facções religiosas”. Facções “terrivelmente evangélicas” que se sentem mais autorizadas no governo Bolsonaro. Ardiloso e sempre capaz de inventar modos de desumanizar, o racismo também persegue mães, seus filhos e filhas do candomblé. A escola e os Conselhos Tutelares certamente não são os únicos, mas são espaços centrais para racismo e obscurantismos. Disputa de projetos que os setores laicos e antirracistas precisam enfrentar coletiva, política e cotidianamente.

*Coordenadora do grupo de pesquisa Kékeré, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Uerj

Fonte: https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/o-terreiro-e-um-direito-da-crianca.html