O Brasil durante mais de três séculos passou por um processo de escravização que gerou diversas questões de exclusão social e alienação cultural da população negra. Sofrer séculos sem a garantia de direitos básicos até hoje não deslanchou políticas de reparação.

No período pós-abolição, os negros continuaram a ser subjugados e sistemicamente excluídos, às margens da sociedade. Abandonados à própria sorte, tinham como obrigação legal de ter emprego, caso contrário podiam ser presos por vadiagem. Contudo raramente conseguiam empregos formais devido às políticas de embranquecimento, em que se importava mão-de-obra barata de imigrantes brancos italianos e alemães para habitar a terra e ocupar os postos de trabalho antes ocupados por pessoas escravizadas.

Todo esse quadro secular de opressão levou ao surgimento dos movimentos abolicionistas e, posteriormente, do Movimento Negro. Inicialmente, o movimento de resistência visava reivindicar o mínimo para sobrevivência e para contemplar e lembrar sua cultura que por anos passou esquecida devido ao apagamento e estigmatização da cultura negra, uma das ferramentas da escravidão e do racismo estrutural no Brasil. Com isso surgiram, como forma de resistência, as rodas de capoeira e de samba que são essencialmente a história oral e corporal da cultura e da história do povo negro na diáspora africana no Brasil. Criticados, perseguidos e criminalizados pela sociedade, a sobrevivência do samba e da capoeira é uma das manifestações mais clássicas da resistência cultural negra.

A luta do Movimento Negro se empenha em reivindicar e a batalhar pelo básico, como a presença nos espaços de poder e de decisão, bons postos de trabalho com igualdade de salário e oportunidades iguais de estudo ou ações afirmativas. Porém, nenhuma dessas questões têm solução rápida. Tudo esbarra no racismo estrutural.

E o que é o racismo estrutural? São práticas sociais coletivas, muitas vezes inconscientes ou vistas como politicamente neutras. Subjazendo tudo o que compõe a sociabilidade da nossa sociedade de raiz escravocrata, sempre tocando modulando a todos, o racismo estrutural é histórico, cultural e institucional. Os dispositivos de poder do racismo estrutural elegem a cor, a cultura, e a religião a serem consideradas padrão, criando portanto o ‘outro’, criando a categoria do desviante, cujo único traço característico é ser não-branco. Soma-se a isso o colorismo como ferramenta colonial de hierarquização, de determinação de acesso e de governo da mestiçagem no Brasil. Com o advento da mestiçagem em massa, confere-se acessos diferenciais aos indivíduos de acordo com suas características fenotípicas: quanto mais clara a pele e menos crespo o cabelo, menores são as barreiras sociais a serem enfrentadas e vencidas pelos corpos negros (pretos e pardos).

Essa estrutura racista é onde se dá a reprodução das práticas e mentalidades sociais típicas de uma sociedade escravocrata, arraigadas até hoje. É nela que os negros veem limitadas suas possibilidades de trabalho, renda, educação, sobrevivência, direito à moradia, ao meio ambiente e etc. O racismo estrutural cria, mantém e aprofunda disparidades que se desenvolvem entre os grupos ao longo do tempo. Efeitos de séculos de opressão passando de geração em geração, inclusive através da língua.

Com anos de naturalização de estigmas, de inferiorização e ridicularização do povo negro, o uso de palavras, frases e brincadeiras racistas passa a ser tido como normal, natural. Exemplos são os verbos “denegrir”, etimologicamente vinda da palavra “negro”, que significa “fazer ficar mais negro, tornar escuro, obscurecer, manchar a reputação, difamar alguém ou alguma coisa” e “esclarecer” ou “clarificar”, que vêm da palavra “claro”, significando “iluminar, fazer ficar claro, disseminar luminosidade, compreender, tornar elucidativo, distinguir, fazer com que haja relevância, tornar importante, explicar, dar ou receber certas informações ou esclarecimentos, instruir, fazer com que haja maior instrução, dar explicações ou fundamentos”. Essas palavras surgem do pressuposto de que o negro ou escuro é algo ruim e de que o branco ou claro é algo bom, a ser almejado. Portanto, quando se quer diminuir algo ou alguém, basta apontar sua proximidade ao negro.

De forma bem mais evidente, há o próprio uso da palavra negro em sua corruptela “nego” sendo usada como sujeito para interjeições acusatórias, como em “nego é fod*!”. Além de frases como “quando preto não caga na entrada, caga na saída” que já virou até processo criminal, também pressupondo a culpa do negro e sua inclinação para o erro, e de “brincadeiras” racistas baseadas no imaginário social esterotipado sobre a aparência do negro: “nariz de batata”, “cabelo de xaxim” ou “cabelo de pixaim”, “boca de bueiro” (graças a lábios negros carnudos) e etc., críticas a um fenótipo específico, desvelando o racismo biológico da sociedade brasileira. Essas e outras “brincadeiras” racistas foram naturalizadas ao longo dos anos, propagandeadas pela grande mídia e por personalidades do humor nacional.

Uma das facetas menos consensuais e combatidas do racismo, mas uma das mais socialmente disseminadas é a do racismo recreativo. Subjuga-se o negro através de supostas brincadeiras, sem a necessidade do peso da chibata. Mesmo em relações familiares ou de amizade, o racismo recreativo impera e ainda não é amplamente visto como um problema. Mas será que são brincadeiras ou são uma forma de repercutir e atualizar práticas racistas e preconceituosas?

Evidência deste tipo de racismo, de repercussão nacional, pôde ser vista, recentemente, em um reality show de grande audiência da TV aberta brasileira, onde um participante comparou o cabelo black power de um participante negro a uma peruca de uma fantasia que vestia de homem das cavernas, o que gerou uma forte reação do participante negro e provocou um debate público sobre o racismo recreativo.

O racismo em forma de piada sobre o fenótipo de pessoas negras ainda dá audiência e ainda é posto em dúvida enquanto violência. Não entendem que ridiculizar um black power é uma afronta a vivências subalternizadas que, durante quatro séculos de sequestro, exílio e escravidão floresceram, se encresparam, e não vão retroceder. Riem do terror afro-brasileiro e reforçam a seletividade policial, penal e o genocídio negro. O caso do reality show repercutiu nas redes.

Para melhor entender o que sentem as pessoas negras vítimas dessas “brincadeiras” racistas, duas pessoas negras, Laura e Daniel, foram entrevistadas. As mesmas perguntas foram feitas a ambos os entrevistados. Esses relatos dão uma pequena dimensão do que ocorreu e ainda ocorre com a população negra no Brasil.

Entrevista com Laura de Souza

Laura de Souza, 21, estudante de jornalismo, cria de Nilópolis, cidade na Baixada Fluminense, e atual moradora da Barra da TijucaZona Oeste, sempre se percebeu como não-branca, mas só recentemente passou a se ver como uma pessoa negra. Os outros sempre diziam que ela não era negra por não ser negra retinta, o que a mesma desconstrói logo em sua primeira resposta. Vinda de uma família mestiça, na qual faltava o debate racial, ela já adotou alguns procedimentos embranquecedores—como alisar o cabelo—para se sentir mais inserida.

RioOnWatch: Como é ser uma pessoa negra para você?

Laura: Então, entender-me como uma pessoa negra é relativamente novo, para mim. Sempre soube que não era branca, mas também sempre entendi que não era [preta] retinta, porque ninguém, na família ou na rua, nunca usava os termos “preta” ou “neguinha” para se referir a mim. Sempre fui “morena”, “café com leite” ou “desbotada”.

Por essa introdução, você pode inferir que eu sou mestiça: meu pai é branco e minha mãe é negra. Embora a família dele seja toda branca, a família dela tem brancos e pretos, então eu não cresci em um ambiente de educação racial, e nem tive alguém que conversasse comigo sobre o “ser negra”. Não que a parte negra da família de minha mãe não tivesse suas próprias considerações sobre o assunto, como vim a descobrir depois, mas o assunto não existia abertamente. A discussão nunca acontecia em almoços de família, por exemplo.

No ensino médio, a maioria dos meus amigos eram negros. Todos eles tinham consciência disso. Mas uma das minhas melhores amigas, porque a irmã fazia jornalismo, começava a ter contato com o pensamento de teóricos negros e levava isso tudo para a escola, onde nós usávamos as ideias para debater, o tanto quanto conseguíamos, sobre as nuances que existem em “ser negro” e “ser negro no Brasil”.

Esse momento, que considero recente na minha história, foi crucial para eu entender que “pardos” também são negros, e que, por isso, eu também era negra. ‘O que é ser uma pessoa negra?’ É uma pergunta para a qual eu, particularmente, ainda não tenho resposta, e desconfio que poucas pessoas tenham, na verdade. O que tenho aprendido, no entanto, é que tem a ver com uma forma muito particular de ver, sentir e experimentar o mundo. É um jeito negro de estar no mundo, que não necessariamente tem a ver com tristeza ou tragédia, mas com uma forma particular de ser feliz, de amar, de compartilhar e de viver em comunidade.

RioOnWatch: Ser uma pessoa negra já fez com que você passasse por ‘brincadeiras’ de cunho racista?

Laura: Bom, como você usa aspas, imagino que você se refira a situações de racismo disfarçadas de piada, né?! Bem, como eu disse antes: eu não sou retinta e, durante muito tempo, minha mãe alisou meu cabelo porque eu chorava, querendo ter o cabelo liso, como o dela e o das minhas coleguinhas da escola. Isso fez com que a infância e o início da adolescência fossem mais “leves” nesse sentido.

Com 13 anos, eu cortei meu cabelo todo para tirar o alisamento, mas começaram a me chamar de “sapatão” na escola, o que fez com que eu começasse a deixar ele crescer de novo. Os problemas com as “brincadeiras” começaram aí. Antes, também, eu tinha outras características que forneciam mais motivos para piadas: era gorda, usava óculos e aparelho, sempre fui caladona e meio nerd. O combo completo. Então essas “brincadeiras” só começaram mesmo depois que passei a usar meu cabelo natural.

RioOnWatch: Qual era o teor dessas ‘brincadeiras’ de cunho racista? Envolviam questões de fenótipo (cabelo, cor da pele e formato de rosto por exemplo)?

Laura: Ah, era sempre alguém falando do meu cabelo, fazendo comparações sem sentido, pedindo, em meio a risadas, para eu sair da frente porque não dava para ver o quadro ou tacando bolinha de papel babada para que elas ficassem grudadas nos cachos… Já tiraram foto minha na rua: eu e outro amigo, também com o cabelo crespo, estávamos esperando o ônibus quando duas senhoras, em outro coletivo, olhando para gente, riram, apontaram e tiraram foto nossa. Já me mandaram cortar o cabelo na rua… várias coisas.

RioOnWatch: Em quais espaços essas “brincadeiras” racistas ocorrem?

Laura: Geralmente, na escola. Em casa eu também já ouvi muita gracinha, principalmente da minha avó materna e do meu pai. Na escola, eu sempre respondia: sempre parava na direção da escola, fazendo reclamação contra aluno racista. Mas em casa, só depois de um tempo, passei a dizer que os comentários me incomodavam e a explicar o porquê de ser errado. Meu pai parou, mas minha avó ainda solta uns comentários meio sem noção de vez em quando.

RioOnWatch: Esta forma na qual as pessoas falam do seu biotipo já te afetou ou ainda afeta psicologicamente? Como você lida com essa questão?

Laura: No início, eu ficava com muita raiva. Brigava o tempo todo, andava sempre com a guarda alta. Obviamente, isso não fazia nada bem para o meu psicológico, e eu fui ficando cansada. Muito cansada mesmo.

Depois, no entanto, eu entendi que a questão não era pessoal: as pessoas não me sacaneavam por não gostar de mim. Às vezes, sim, mas era uma coisa maior, como a gente diz: é estrutural. Então, eu me organizei para ficar calma, explicar o motivo de ser errado e, se a pessoa insistir, eu saio de perto: levanto da mesa, deixo o recinto, faço o que for para mostrar, de forma pacífica, que esse tipo de “comentário” não é aceitável.

A religião me ajuda muito com isso também. Eu comecei a ser mais calma, de forma geral, depois que me tornei cristã. Então, nesse tipo de situação, eu sempre oro para que Deus me dê sabedoria para falar e calma para agir, porque eu sei que sou maior do que isso. Ele me faz maior do que isso tudo.

RioOnWatch: E a sua família como se posiciona e te orienta com relação a essa questões?

Laura: Quando eu era mais nova, no início, minha mãe me dizia para comprar as brigas que eu pudesse comprar, mas ela percebeu que isso me fazia mal, então começou a sugerir que eu só deixasse para lá. Meu irmão também, sempre me orientou dizendo algo parecido com “Você não se sente bem com seu cabelo assim?! Você gosta dele assim, né?! Então precisa ter peito pra bancar”.

Eles eram as únicas pessoas da família com quem eu conversava sobre isso. Por fim, eu decidi o seguinte: se eles dois estiverem comigo, me apoiando e me dando força, eu consigo vencer o resto. Deu certo.

RioOnWatch: Seus familiares já passaram por esse tipo de racismo, em forma de brincadeira? Como eles lidam ou lidaram com a situação?

Laura: Não que eu saiba. A coisa com eles sempre foi bem mais explícita, porque eles são retintos.

RioOnWatch: E afinal, segundo a sua concepção, é racismo ou brincadeira e por quê?

Laura: O racismo se manifesta de várias formas. Não só o racismo, mas muitos outros preconceitos… As pessoas sempre pressupõem que brincadeiras são inofensivas, mas minha experiência me mostrou que, ao menos no Brasil, muito do que nos faz rir está atrelado ao sentimento de superioridade que nós sentimos em relação ao outro. Eu sempre entendi que poder rir, poder achar graça, sempre foi uma forma de se mostrar melhor do que o outro, indiferente aos sentimentos dessa pessoa que está servindo de chacota.

Eu entendo que podem existir outras formas de brincar, de rir, de provocar o riso, mas eu, particularmente, já não consigo desassociar uma coisa da outra. No fim, as duas estão ali juntas, amalgamadas.

RioOnWatch: Na sua opinião, esse tema ainda é um tabu para a sociedade? Você acha que a sociedade ainda tem muito o que refletir e mudar?

Laura: Sempre tem, né? Se eu disser que o Brasil já virou o melhor lugar do mundo para ser negro, estarei mentindo. Mas acho que as coisas já estiveram piores…

RioOnWatch: Qual a mensagem que você deixa para quem faz esse tipo de brincadeira de mal gosto?

Laura: “Todo mundo é babaca em algum aspecto e o que te faz ser uma pessoa boa é o quanto você se esforça para deixar de ser um babaca. Nunca é tarde demais para começar a tentar, se você realmente quiser.”

Entrevista com Daniel Costa

Já Daniel Costa, 21, estudante de Defesa e Gestão Estratégica Internacional na UFRJ, cria da Ilha do Governador e atual morador de São Gonçalo, cidade na região metropolitana de Niterói, desde a infância se entendeu como nem branco nem negro. Quando pequeno, sentiu que as pessoas não gostavam dele. Só depois de muito tempo passou a perceber que era preconceito que eles estavam sentindo, da cor da sua pele e de seu cabelo.

RioOnWatch: Como é ser uma pessoa negra para você? Ser uma pessoa negra já fez com que você passasse por ‘brincadeiras’ de cunho racista?

Daniel: Sim! Desde criança, quando eu era a pessoa “nem tão preta, nem tão branca”, “cor de papelão”, além dos comentários sobre meu cabelo. Em tons de brincadeira, mas sempre bem direcionados, sempre ouvi que era uma das pessoas mais feias da sala, que meu cabelo não podia crescer “senão fazia ninho”, ou “virava esconderijo”. [As ‘brincadeiras’ eram] principalmente [pelo] meu cabelo. Mas também sobre o tom de pele e o formato do rosto ou do corpo.

RioOnWatch: Em quais espaços essas ‘brincadeiras’ racistas ocorrem?

Daniel: Principalmente na escola, mas também na igreja. Dificilmente em casa.

RioOnWatch: Esta forma na qual as pessoas falam do seu biotipo já te afetou ou ainda afeta psicologicamente? Como você lida com essa questão?

Daniel: Acredito que sim. Quando criança, eu falava que queria usar ácidos para ficar com a pele mais clara e fazer diversas plásticas. Já usei, inclusive, ácidos de maneira autônoma e perigosa. Sem mencionar os outros problemas menos explícitos que também são resultado dessas “brincadeiras”, como o de autoestima.

RioOnWatch: E a sua família como se posiciona e te orienta com relação a essa questões?

Daniel: Nunca me orientaram muito, exceto uma parte da família da minha mãe, parte negra da família. Tentavam principalmente me elogiar, mas não eram orientações ou conselhos muito profundos. Acho que, criando consciência, eu mesmo que acabei orientando e conversando mais sobre isso com minha mãe.

RioOnWatch: Seus familiares já passaram por esse tipo de racismo, em forma de brincadeira? Como eles lidam ou lidaram com a situação?

Daniel: Sim, muito assédio moral no trabalho, sempre ficando triste, mas teve que seguir normalmente.

RioOnWatch: E afinal, segundo a sua concepção, é racismo ou brincadeira e por quê?

Daniel: Racismo. Obviamente, há relações em que, com certa intimidade, essas “brincadeiras” podem acabar soando menos pesadas e mais brincadeira de fato. Isso acontece principalmente entre pessoas negras, mas, no geral, é uma forma sutil de naturalização e externalização do racismo.

RioOnWatch: Na sua opinião esse tema ainda é um tabu para a sociedade? Você acha que a sociedade ainda tem muito o que refletir e mudar?

Daniel: Sim, mas o mito da democracia racial e a ideia de que “hoje tudo é racismo” ou “não dá mais pra brincar com nada” fazem com que até mesmo propor esse debate seja difícil. Tem um processo de conscientização envolvido. Muitas pessoas não veem maldade nessas “brincadeiras” e acham que a intenção de quem fez a brincadeira vale mais do que o sentimento causado pela brincadeira no outro, na vítima. Lidar com isso é muito complexo, não se pode ser só paciente e didático, mas também não se pode agir só pelo “escracho” ou pela repreensão.

RioOnWatch: Qual a mensagem que você deixa para quem faz esse tipo de brincadeira de mal gosto?

Daniel: Procure mudar. Pense que não é só você que “brinca” com isso. E ouvir as mesmas piadas, sobre os mesmos traços todos os dias, faz com que a gente comece a acreditar nas brincadeiras. Mexe com o nosso subconsciente, nossa autoestima, nossa forma de se ver no mundo.

Conclusão

É evidente que tanto Laura, mulher negra, quanto Daniel, homem negro, concordam que o racismo disfarçado de brincadeiras ainda é tratado como se fosse algo normal, até mesmo em relações de afeto, entre amigos e família. Como forma de tentar se livrar destas supostas brincadeiras, pessoas socialmente entendidas como desviantes buscam se inserir em padrões, mesmo que eles desconsiderem as existências desses desviantes como legítimas. Brincadeiras que deprimem, machucam e mutilam física ou mentalmente não são brincadeiras. Para as pessoas que fazem essas “brincadeiras” racistas, coloristas, homofóbicas, sexistas e etc. é necessário que fique entendido: não se pode continuar alegando que o racismo recreativo é uma forma de inserção social, quando, na verdade, é um instrumento de hierarquização racial e de opressão disfarçada de riso. O racismo recreativo é uma causa importante de baixa autoestima e de sofrimento psicológico desde a infância.

Um caso emblemático e polêmico aconteceu no ano passado no interior de São Paulo. Um vídeo mostrando um rapaz proferindo ofensas em tom de brincadeira à faxineira que trabalha em sua casa, enquanto ela cantava, chocou a todos com seus comentários racistas e gordofóbicos, resumido em matéria da BBC Brasil: “’A menina que faz faxina aqui em casa vem aqui e fica cantando alto pra caralh*. E ainda fala que quer ser cantora. É gorda, preta de cabelo duro…’, diz o rapaz, pouco antes de filmar a jovem lavando louças e cantando.”

O vídeo viralizou e indignou muitas pessoas. Então, a dupla que gravou o vídeo veio a público e alegou que tudo foi apenas uma cena montada para chamar atenção contra o racismo: um vídeo sobre as vivências reais de empregadas domésticas, em sua maioria mulheres negras, que sofrem racismo rotineiramente em seus espaços de trabalho. Mas terá sido mesmo só uma cena ou esta é apenas uma desculpa para se redimir de um crime? Para os que se perguntam se é racismo ou brincadeira, que não haja dúvidas: se algum envolvido não se diverte e pode se machucar física ou psicologicamente, não é brincadeira, é racismo! É violência com um sorriso jocoso.

Sobre a autora: Andreia Meireles, 23, é graduanda em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo, atualmente no 6° período. Hoje é moradora da Zona Oeste, do Mato Alto, em Guaratiba, mas morou seus primeiros anos no Vidigal, na Zona Sul. Atualmente é militante do Movimento Juntos e da Rede Emancipa Rio.

Sobre a artista: Raquel Batista, 19, graduanda em educação artística pela UFRJ, é artista visual, cria de Campo Grande e atual moradora de Engenho de Dentro, na Zona Norte. Trabalha como ilustradora, desenhista e fotógrafa. Ela define que seu objetivo é através da arte, representar pessoas que, como ela, uma jovem negra e periférica, nem sempre são vistas.

Esta matéria faz parte da série de matérias do projeto antirracista do RioOnWatch. Conheça o nosso projeto que traz conteúdos midiáticos semanais ao longo de 2021: Enraizando o Antirracismo nas Favelas. Para contribuir com essa pauta, clique aqui.

 

Fonte: https://rioonwatch.org.br/?p=55152