Eduardo Girão(Podemos/CE), Marcos do Val (Podemos/ES) e Flávio Bolsonaro (Patriota/RJ) foram os políticos que mais usaram o discurso religioso cristão na defesa dos medicamentos.
Por Vitória Régia da Silva
“E acredito que, do ponto de vista espiritual, essa pandemia veio nos trazer uma lição. Deus não deixaria absolutamente acontecer algo que está acontecendo no mundo inteiro – é uma provação global – se não tivesse uma razão de ser. No meu ponto de vista, respeito profundamente quem pensa diferente, mas vejo que tudo isso veio nos convidar a nos olharmos com mais humanidade, com mais fraternidade, com mais solidariedade uns com os outros, não é? É um crescimento, mas parece que a gente não aprendeu”, disse o senador Eduardo Girão (Podemos/CE), titular da CPI da Covid, durante a 17ª sessão da CPI.
Girão não foi o único senador a usar do discurso religioso cristão durante as primeiras 37 sessões da CPI da covid-19, segundo análise da Plataforma Religião e Poder. Senadores, médicos e outros depoentes usaram desse tipo de discurso em, pelo menos, 395 citações religiosas, sendo todas com linguagem cristã, tanto para defender o uso do tratamento precoce e as medidas do presidente da República quanto para se posicionar a favor da vacina e criticar as decisões do presidente. Na análise, só foram consideradas as citações religiosas que se relacionavam ao tema da pandemia e saúde pública, sendo desconsideradas interjeições religiosas soltas que estão presentes no vocabulário popular.
A CPI da covid-19 é a comissão parlamentar de inquérito que investiga as supostas omissões e irregularidades do Governo Federal durante a pandemia de covid-19 no Brasil. Para esta reportagem, foi analisado o conteúdo das falas dos participantes da CPI nas sessões realizadas entre 27 de abril e 15 de julho de 2021, até o recesso parlamentar.
Segundo o antropólogo Emerson José Sena da Silveira, doutor em Ciência da Religião e professor associado do Departamento de Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), as religiões cristãs, nesse momento histórico de prevalência do reacionarismo, e os conservadores adotam um viés extremamente fechado dos escritos religiosos. “A religião é aquilo que o uso político faz dela. A covid-19, eu chamo de sindemia, e não pandemia, porque é uma doença biopolítica, e mostra como o poder na modernidade passa pela gestão da vida. Nesse sentido, a sindemia de covid-19 mostrou uma faceta extremamente conservadora da religião, no aspecto de rejeição da modernidade, da idealização de um passado puro que nunca existiu e de um pensamento mágico, que é sustentado pela ideia de proteção divina e do imaginário popular de proteção de Deus nos âmbitos sociais, econômicos e agora também sanitários”.
O conceito de sindemia foi proposto no passado e relançado pela Revista The Lancet durante a pandemia. Este termo vem da antropologia e analisa como as dinâmicas de doenças estão profundamente intrínsecas às questões sociais, religiosas e não podem ser entendidas apenas nos seus fatores individuais; por isso, são necessárias múltiplas gestões e estratégias como sanitárias, econômicas e sociais. A partir disso, o antropólogo Emerson José Sena da Silveira criou o conceito de sindemônio. Enquanto sindemia seria essa trama indissociável de vários fios, sindemônio seria a trama de fios sociais, religiosos e políticos que promovem o negacionismo, o desprezo pela ciência e a valorização do pensamento mágico que espera o milagre em detrimento das indicações científicas.
O professor da UFJF ainda lembra que, nas últimas décadas, as alianças instrumentais entre lideranças religiosas e políticas levaram a um crescimento exponencial de políticos religiosos e criaram uma rede que veio à tona neste momento de uma forma complexa, devido a sua relação com o vírus. “Muitas vezes, o vírus é visto como algo do plano divino, não só para o cristianismo pentecostal, mas também para o espiritismo, a ideia de uma ‘purificação cósmica e/ou cármica’ vem crescendo no meio religioso por conta dessa combinação de fatores que impede que as pessoas entendam a dinâmica da covid-19”.
Para o antropólogo, as correntes religiosas, de modo geral, acabam sacralizando um tipo de visão de mundo que traz muitas dificuldades sociais e políticas por conta do reacionarismo que vão ao encontro da ideia de covid-19 como um “castigo de Deus”: “Ao mesmo tempo que a bancada religiosa utiliza a igreja e os púlpitos como plataforma política, também utiliza a tribuna política como plataforma religiosa. É uma relação complexa com a tradição religiosa, em que é enfatizado o Deus do Antigo Testamento. Essas imagens vão se relacionando com a dinâmica política, mais à direita ou à esquerda, mas sacralizando a hierarquia ou buscando a ideia de igualdade e justiça social”.
Em defesa do tratamento precoce
Apesar da comprovação científica de que medicamentos como hidroxicloroquina e ivermectina não são eficazes no tratamento da covid-19 e do avanço da vacinação no país, senadores e depoentes continuam fazendo a defesa do tratamento precoce durante a CPI. Além do senador Girão, já citado, Marcos do Val (Podemos/ES) e Flávio Bolsonaro (Patriota/RJ) foram os políticos que mais usaram o discurso religioso cristão na defesa dos medicamentos. Procurados pela reportagem, os senadores não retornaram contato.
“Então, vacinem-se, busquem a vacina. Essa é a principal solução que nós temos para sair dessa pandemia, mas isso não invalida o tratamento precoce”, afirmou o senador Marcos do Val durante a 15ª sessão da CPI. É importante destacar que grande parte dos senadores que defendem o tratamento precoce também defendem a vacina como soluções para a covid-19.
O pesquisador Waldney de Souza Rodrigues Costa, doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), professor e chefe do Departamento de Ciências da Religião da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), lembra que o alinhamento religioso com o atual governo vem de antes da pandemia. “Qualquer postura que o governo tomasse, se fosse por exemplo a favor de uma vacina X ou do tratamento precoce, uma parte dos líderes religiosos e consequentemente uma parte da população iriam acompanhá-lo. Nesse momento, o governo fez uma aposta no tratamento precoce em uma manobra muito maliciosa porque eles falam de uma maneira ambígua, mas todo mundo que ouve esse termo pensa em hidroxicloroquina e ivermectina.”
Outro senador que também defendeu o tratamento precoce da covid durante a CPI foi Carlos Portinho (PL/RJ), que garantiu ter tomado medicamentos com aprovação médica. “Como eu disse, Deus foi generoso. Não tive maiores sintomas [de covid-19]. Tive uma areia nos olhos – eu não vejo ninguém nem se referir muito a isso –, mas o exame confirmou, e passou. Não sei se passou por causa da ivermectina, que poderia ter contribuído até para a questão do que ela combate diretamente, ou a azitromicina. Eu não tomo muito antibiótico. Então, também não vi risco em tomar. (…) Eu dormi muito bem, posso dizer. Não sei se foi pela ivermectina ou pela azitromicina. Mas eu dormi muito bem. Deus foi generoso comigo e eu me senti bem com a minha decisão, porque foi fundada num aconselhamento médico, médico, médico, receitado por médico”, destacou o senador na 23ª sessão da CPI.
Para o doutor em Ciência da Religião Emerson José Sena da Silveira, o elemento do milagre, da mágica e a sensação de uma solução imediata e rápida que o tratamento precoce ofereceria não estão ligados só à religião, mas está dentro da estrutura de sociedade de produção capitalista do mundo atual. “Tudo isso faz parte, desde esse culto à cloroquina, o negacionismo e a defesa do tratamento precoce. Eu chamo esse movimento de biopolítica da devastação, que é alimentada por uma visão de mundo guerreira, em que Deus vai proteger quem tiver que proteger e vai salvar os verdadeiros cristão, o que também aparece nesses discursos”.
Dos dez senadores que mais usaram o discurso religioso durante a CPI, todos defendem a vacina, mas três também defendem o tratamento precoce. Segundo Waldney de Souza Rodrigues Costa, a população nunca trabalha com um discurso só, mas simultaneamente como uma uma grande gama deles, por isso, tanto a defesa da vacina quanto do tratamento precoce não são excludentes. “Não é porque ela está fazendo uma coisa que deixa de fazer outra. Uma pessoa que está fazendo tratamento médico não vai deixar de rezar, ir ao terreiro ou fazer uma determinada devoção porque está fazendo tratamento. Ela vai fazer as duas coisas, e os próprios líderes religiosos usam isso. Por isso, a população vai trabalhar com o recurso que tem em mão, e essa briga nunca foi científica, ela sempre foi política”.
Outra religiosidade: em defesa da vacina
Entre todos os senadores, a que mais usou do discurso religioso cristão durante as primeiras 37 sessões da CPI da covid-19 foi Eliziane Gama (Cidadania/MA), que defende a vacina e é crítica das medidas do governo Bolsonaro. Além disso, a senadora usa do próprio discurso religioso para criticar aqueles que defendem o tratamento precoce e a falta de gestão do governo federal para enfrentar a pandemia. “É claro que Jesus Cristo não é contra alguém que tem efetivamente algum recurso financeiro, mas Jesus Cristo é contra a concentração, a falta de olhar, da entrega, da solidariedade, para olhar pras pessoas de fato mais excluídas. E, naquele momento ali, a posição de Jesus era exatamente essa. E aí eu vou parafrasear para os dias atuais: se você está diante de uma pandemia e você tem acesso à vacina, dê acesso aos excluídos, dê essa vacina à população mais pobre, à população de fato que precisa”, disse a senadora na 29ª sessão da comissão.
Para Waldney de Souza Rodrigues Costa, a senadora mostra que é possível fazer um discurso baseado na fé que não seja equivocado do ponto de vista da saúde pública e das políticas públicas de saúde. Ela enfrenta o discurso conservador e negacionista a partir do discurso religioso. “Eu enxergo uma nova forma de encarar a religião no espaço público, menos pela polêmica do poder ou não falar e mais pela polêmica de um discurso religioso em oposição a outro. Vejo ela nesse lugar de dessacralizar o discurso religioso”, analisa o professor e chefe do Departamento de Ciências da Religião da UERN.
Ele ainda lembra que o discurso religioso crítico às forças mais conservadoras é sempre minoritário, visto que esta é a tendência da política no cenário atual, mas a composição da CPI acabou dando voz a algumas mulheres e especialmente a essa mulher que é religiosa e faz esse discurso religioso de oposição.
Outros senadores que também usam do discurso religioso para defender a vacina e criticar as ações do governo federal são: Omar Aziz (PSD/A), presidente da CPI Covid-19, Soraya Thronicke (PSL/MS), Randolfe Rodrigues (Rede/AP) , titular na CPI da Covid-19, Rogério Carvalho (PT/SE), suplente na CPI da Covid-19, Zenaide Maia (PROS/RN), Otto Alencar (PSD/BA), titular na CPI da Covid-19.
A CPI da covid originalmente não tinha qualquer mulher entre seus 18 senadores escolhidos (11 titulares e sete suplentes). Por pressão da bancada feminina, foi acordado que pelo menos uma mulher estaria presente na Comissão e poderia interrogar os depoentes tal qual fazem os titulares e suplentes.
República x Democracia
Existe uma distinção entre República e Democracia e, para os pesquisadores ouvidos pela reportagem, a presença do discurso religioso durante a CPI não é um problema para a democracia, mas sim para a República.
Para o pesquisador Waldney de Souza Rodrigues Costa, a democracia não tem problemas com discurso religioso. Inclusive, a tentativa de cerceamento da religião é considerada um ato antidemocrático. O discurso religioso é um problema para a República. O bem comum é uma questão republicana, por isso, é uma atitude republicana uma pessoa usar mais comedidamente o discurso religioso entendendo que pode haver pessoas de outras religiões ouvindo e, ainda, que pessoas da mesma religião podem interpretar de formas diferentes o que está sendo dito. “É importante para a convivência pública, esse princípio do republicanismo, e é tudo que nosso presidente não tem. Em minha visão, Bolsonaro não ataca a democracia, mas ele é muito duro com a República”, defende.
Emerson José Sena da Silveira concorda e acrescenta que esse tipo de discurso religioso que justifica a existência da ivermectina e outros remédios, por exemplo, cria um problema para a instituição República. “Estamos em um processo de minar a República, inclusive na sua característica laica. A República não pode ter uma crença oficial porque, se ela tem, suas minorias têm seus direitos cassados e a ideia de alteridade e do ‘outro’, que precisam ser levados em conta, são eliminados”. Por isso, o pesquisador destaca que é necessária responsabilização social, visto que os discursos negacionistas alimentam a visão ingênua de mundo que vai ter repercussão dentro das religiões, criando resistência à vacinação e fake news.
Nota metodológica:
Foram analisadas 37 sessões da Comissão Parlamentar de Inquérito da covid-19 (CPI da covid-19) ocorridas entre 27 de abril e 15 de julho de 2021. Para a análise das sessões da CPI, todas as falas foram transcritas e, em seguida, discursos com conteúdo religioso foram selecionados. Tal seleção se deu por meio da busca pelas palavras-chaves “Deus”, “Jesus”, “Cristo”, “Biblía”, “Judeus” e “Holocausto”, gerando um subconjunto de material a ser analisado, dessa vez apenas com as falas que mencionavam as palavras-chaves citadas, um total de 395 falas.
Em cima desse subconjunto do material, foi realizada análise de conteúdo com o auxílio de software de análise qualitativa. Todo o material foi codificado e analisado. Foram atribuídos doze códigos ou categorias ao conteúdo analisado. Como se tratou de uma análise exploratória, os códigos foram definidos a posteriori, isto é, com base no surgimento de categorias no decorrer da análise do material transcrito. Os códigos identificados no material foram palavras, sentenças ou expressões referentes a: ação divina, apelo ao divino, citação bíblica ou a bíblia, crítica ao argumento religioso, gratidão ao divino, interjeição/força de expressão, judaísmo e pedido de graça divina.
Após a análise de frequência da ocorrência de cada uma das categorias de análise, foi realizada uma análise de co-ocorrência dos códigos nas citações. A análise de co-ocorrência permite verificar a presença simultânea de códigos em uma mesma citação. O objetivo é entender com o que cada um dos códigos está mais associado. Nesta análise entende-se que o mais importante não é o número de vezes que temas aparecem em um conteúdo, mas sim como os temas se associam entre si. Assim, conforme vemos na visualização “Expressões cristãs usadas por senadores e depoentes na CPI da covid-19”, os números ressaltados não tratam do número de vezes que determinada categoria apareceu, mas sim, o número de vezes que ela apareceu relacionada ao posicionamento frente ao governo/presidente, tratamento precoce e vacinação.
A partir da análise realizada, foi possível perceber que palavras e expressões religiosas relacionadas à gratidão ao divino (ex.“Graças a Deus”) e apelo ao divino (ex. “Rogo a Deus que o proteja”) foram as mais usadas durante a defesa do tratamento precoce, termo usado para definir um protocolo com medicamentos ineficazes ou sem eficácia comprovada para a covid-19 defendido por Bolsonaro e alguns médicos, e das medidas e ações do governo Bolsonaro durante a pandemia. Enquanto, expressões religiosas ligadas à força de expressão (ex. “Pelo amor de Deus!”) e algumas de apelo ao divino (ex. “Peço a Deus”) foram usadas na defesa da vacina e durante críticas às medidas do Governo Federal.