Juliana Passos
Mutirões de limpeza das ruas, arrecadação de cestas básicas, cuidados de higiene, mobilização por acesso à água e atendimento à saúde. A organização dos moradores das favelas na cidade do Rio no combate ao avanço do coronavírus se deu de variadas formas e é um exemplo de boa gestão com recursos escassos. É o que defendem Rafael Soares Gonçalves, professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), e Glaucio Glei Maciel, pesquisador atualmente em Pós-Doutorado em Serviço Social na mesma instituição. “A ideia de que as favelas seriam locais promissores para a propagação do coronavírus não se confirmou. Ainda que haja variação de períodos de maior ou menor cuidado, relatórios da Fiocruz [Fundação Oswaldo Cruz] demonstram que as áreas de comunidade conseguiram boas estratégias de combate à Covid-19”, diz Maciel, contemplado no programa Pós-Doutorado Nota 10, da FAPERJ.
Em sua pesquisa, Maciel busca registrar as formas de resistências realizadas por moradores de diferentes favelas do Rio de Janeiro. Em artigo já aceito para publicação na revista Desigualdade e Diversidade, há um balanço das entrevistas realizadas em sete favelas da cidade do Rio e Região Metropolitana. A meta da pesquisa é chegar a 20 comunidades. “A observação da realidade atual indica que a chave de quase todas as respostas contemporâneas aos desafios elencados está no desenvolvimento de um planejamento participativo, que estimule a democratização das receitas e promova formas sustentáveis de lidar com os recursos escassos”, defendem no texto.
Maciel enfatiza a variedade das ações em cada local, uma vez que algumas favelas, como Maré e Manguinhos, têm uma maior facilidade de captação de recursos externos. Já em Final Feliz, favela do complexo da Pedreira, na Zona Oeste do Rio, os moradores custearam entre si a compra de materiais de higiene. “As formas de gestão da pandemia também se entrelaçam com a religiosidade. Em Mangueira e Serrinha, as igrejas evangélicas prestam assistência na distribuição de cestas básicas e na busca por emprego, mas muitas vezes colocam a cura como responsabilidade divina”, explica o pós-doutorando.
Nos depoimentos coletados por Maciel, moradores relataram a mobilização entre vizinhos para arrecadação de cestas básicas, a colocação de filhos para ajudar os moradores mais velhos nas compras, limpeza das vielas e contratação de moradora da área da Saúde para o levantamento do número de infectados e óbitos. Os pesquisadores também documentaram diversas iniciativas de comunicação local feitos em formatos variados, desde carros de som e faixas, até a anotação de óbitos por pintura nos muros.
Rafael Gonçalves estuda as formas de gestão da vida cotidiana nas favelas a partir da lente da História e do Direito, desde o Doutorado, realizado na França. Professor no Departamento de Serviço Social, Gonçalves defende que a informalidade da gestão comunitária está muito longe de ser marginal. “A informalidade é um conjunto de práticas e são arranjos. O conceito de informalidade vem dos anos 1970, bastante vinculado a uma perspectiva econômica. Esses espaços não são algo atípico, grande parte do subúrbio de Paris também foi construída por autoconstrução. O que é uma particularidade dos países do Sul e do Rio é o modus operandi de conviver com esses espaços. A informalidade não é um desvio ou uma falta de planejamento. Isso é mais complexo”, argumenta.
O professor critica a visão daqueles que veem a favela como um problema social e também a romantização em torno da criatividade para as artes. “A favela não é a solução nem tampouco o problema. As favelas são lugares que têm problemas como outros locais da cidade”. E em seus trabalhos, Gonçalves destaca as formas encontradas pelos moradores para a melhoria das condições de vida. Desde a criação das favelas como possibilidade de acesso a áreas centrais da cidade, a criação das cooperativas de água e acesso à saúde, como ocorre atualmente. Em outro artigo, Gonçalves traz exemplos interessantes sobre a busca por água. “No caso da favela da Formiga, como existiam inúmeras nascentes no morro, os moradores as procuravam na mata e quem as encontrasse em primeiro adquiria o direito de usá-la. Há inúmeras sociedades de água, com número variado de associados e com maior ou menor grau de organização interna. De forma coletiva, essas sociedades recolhem água na mata, constroem um reservatório e dali a água é distribuída para as diferentes casas dos associados”, relata.
Muitas das demandas destes moradores passaram pela necessidade de mudanças de leis que permitam construções de melhor qualidade nas favelas. “Inicialmente proibida, atualmente a laje é reconhecida juridicamente como direito subjetivo”, diz Gonçalves. Ele explica em artigo que “a permissão do Estado para a melhoria das construções só aconteceu nos anos 1980, quando finalmente se consolidaram as políticas de urbanização das favelas, e que construções mais sólidas se generalizaram, estimuladas pela garantia que seus moradores não seriam mais despejados”.
Em entrevista ao Boletim Faperj em 2012, ele destacou a histórico de mobilização, especialmente da União dos Moradores Favelados (UTF). Entre as legislações e a memória social, o pesquisador defende a importância de um maior registro de memória destes espaços, que acabam se perdendo. “As favelas fazem parte da história da cidade do Rio de Janeiro e certamente do seu futuro. E é preciso que políticas públicas, tão necessárias quanto urgentes, sejam pensadas em conjunto com seus moradores e levem em conta sua memória”, conclui.