30 de outubro de 2017
Berenice Bento disse:
Minhas/meus amigas/os, estamos tristes. Acordar e levantar tem se tornado um ato heroico. Sabemos que nas horas que virão seremos tragados por notícias que nos dirão: desista, vá embora, este país acabou. Não falo em semana, meses, anos. Reduzo o tempo a dias porque tem sido assim. Um dia a exposição Queermuseu é proibida, no outro uma peça que coloca sabiamente Jesus reencarnado como uma travesti é censurada, no outro um deputado canta que “tudo está no seu lugar” para festejar a liberação do seu presidente mafioso de uma processo de impeachment e, no mesmo dia, você, meu/minha amigo/a, talvez tenha tido sua conta na rede social atacada por alguém que te deseja a morte.
Nós sabemos, eles/elas perderam o medo. E nós também. A luta de raças, de classe, de sexualidades e gêneros dissidentes virou manchete. Acabou aquela história de democracia racial, homofobia cordial, relações sociais pautadas na imagem de que aqui vivemos em paz. Acabou. Não tem mais como falar em uma Nova República. A farsa do contrato social, sexual, racial e de gênero está rasgada!
Eles/elas finalmente estão tendo que fazer política para disputar suas concepções de gênero e sexualidade. Querem deixar “tudo no seu lugar”? Querem. Mas agora estão tendo que argumentar que as mulheres nascem para morrer e os homens para matar. Foi assim e sempre será. A família deve ser preservada!
Eles/elas nunca tiveram que fazer nenhuma disputa. O mundo era deles/as. Eles/elas tinham a verdade. E agora ficam em pânico com a vida de uma filósofa estadunidense para o Brasil: Judith Butler. Vocês entendem o desespero deles/delas? O problema não é a filósofa, somos nós: feministas, trasviad@s, bichas, travestis, transexuais. Leiam o que os/as neoTFPistas [TFP – Tradição, Família e Propriedade] escrevem: inventam citações. Cometem todos os tipos de desonestidade intelectual. Elegeram como aliados a mentira e a produção do medo.
O debate agora não está mais exclusivamente na espera do Estado. Tornou-se rizomático. Quem são os responsáveis por isso? Nós, em nossas salas de aula, nos movimentos sociais, nas filas dos bancos, nas conversas no cotidiano, nas artes, em nossas pesquisas, em nossos eventos acadêmicos/ativistas. A disputa perdeu um centro. Jogamos pedras no rio e as ondas foram produzidas. Não, não sou ingênua. Sabemos que o Estado tem poder de veto de uma exposição, de uma peça de teatro. Sei também que estamos vivos/as e a censura eclodiu uma onda de unidade, de luta singular entre nós. Não podemos falar de identidade de gênero em sala de aula? Venham nos prender e terão que levar parte considerável de nossas turmas.
Nosso susto talvez seja resultado de algum tipo de credo na farsa da democracia representativa. Como é possível que se acredite que em uma nação construída tendo como fundamento a violência, pode se dar ao luxo de resolver seus dilemas pela via civilizatória do voto? Isso é pior que história da carochinha! Foram quase 400 anos de escravidão. Nada está resolvido. A ferida está aberta. Somos filhos e filhas da violência.
Nós, em nossas lutas minúsculas, quase invisíveis, não imaginávamos que estamos enfiando com tanta profundidade o dedo na ferida. Identidade de gênero não tem nada a ver com a biologia. Identidade (de qualquer ordem) vincula-se às relações de poder. Não nascemos homens. Não nascemos mulheres.
Vão continuar mentindo, afirmando que as meninas são naturalmente passivas, emotivas, portanto, corpos matáveis e que os homens são naturalmente violentos. Nada, portanto, se pode fazer para mudar esta natureza. Nada? Na verdade, se pode fazer algo brilhante: rigor com a punição. Mais direito penal!
Conseguimos entrar no coração do biopoder. O censo terá que ser repensado. A população não se reduz mais a mulheres-vagina e homens-pênis. A “espécie” explodiu. Onde estão os não-binários, ou seja, pessoas que não se identificam com a norma da diferença sexual, não são homens, não são mulheres? Quantos são? Estamos fazendo a disputa na esfera das mentalidades, na dimensão da cultura, nos termos de Gramsci.
Ânimo!
Politizamos a vida biológica. Esta obra nos pertence. Feministas, transfeministas, gays, bichas, lésbicas, com todas as nossas diferenças (felizmente) somos um exército à la Brancaleone, sem chefe, sem uma agenda centralizada, mas movidos/as por um desejo: tornar a vida vivível com justiça social para todos, para lembrar aqui um pensamento de Butler.
Nunca tivemos paz. Paz? Pura retórica do poder para fazer sua guerra continuada contra os/as considerados/as não-humanos.
Todos os dias entramos em nossas salas de aula e vemos jovens gays, lésbicas, trans, negros, negras. Eles/elas estão no Olimpo da elite deste país: a universidade pública. Falar em Centro Acadêmico (CA), Diretório Central dos Estudantes (DCE) e outras estruturas tradicionais do movimento estudantil é um escárnio com a proliferação de coletivos que existem nas universidades. O que esta gente da Escola Sem Partido vai fazer com estas/es jovens que, em pouco tempo, estarão em nosso, no seu lugar?
A guerra agora está declarada. Ou será que, em algum momento, se acreditou que a guerra não existia? Faça esta pergunta para uma mulher negra da periferia e provavelmente terá como resposta que a paz é um luxo.
Eles dizem que não vão deixar Judith Butler falar. O que faremos? Vamos, mais uma vez, potencializar este momento. Garantir a fala da Butler não é um culto ao personalismo, ou um tipo de rendição ao pensamento de uma filósofa gringa. Ela virá e vai embora. Serão alguns dias em solo brasileiro. Os que a atacam não têm como foco ela, mas nós. Da mesma forma como temos atuado nos últimos anos, independente do partido que estivesse no poder, das leis, vamos disputar cada centímetro da rua e se tiver que arrancar paralelepípedos o faremos.
Um psicólogo me disse: “Se aquele juiz soubesse o bem que nos fez ao assinar aquela liminar jamais a teria assinado. Os profissionais da psicologia agora precisam debater e se posicionar. Nunca tivemos um momento tão rico em nossa história de debate sobre as homossexualidades e direitos humanos que atualmente”.
Queremos que os juízes saiam enlouquecidos proferindo liminares contra os direitos humanos das pessoas LGBTTIQ+? Não. Apenas gostaríamos de ressaltar que a liminar é mais um capítulo do que estamos chamando de luta pela visibilização das existências periféricas.
Minhas/meus amigas/os, não estamos fazendo uma revolução, nos moldes marxistas. Afinal, quantas revoluções não foram feitas e os/as primeiros/as a irem para os campos de trabalho forçado foram as bichas e os sapatões, terapêutica para curá-los/as dos vícios pequenos burgueses. Não vamos mais esperar a grande revolução. Estamos disputando tudo. O banheiro, o aborto, o direito ao corpo, o short, não usar sutiã, o nome social para pessoas trans, a cirurgia de transgenitalização. O corpo é nosso campo de batalha e entendemos que há um ligação indissociável entre as marcas do corpo e o mercado. Onde estão as mulheres trans no mercado de trabalho? Não estamos disputando um projeto estratégico para o futuro. Queremos o presente e disputamos o passado, os sentidos conferidos pela história oficial aos sentidos para as normalidade e as anormalidade.
Já te mandaram embora do país? Você já pensou em arrumar as malas? E para onde você vai? Qual é o paraíso da justiça social e equidade de gênero e sexualidade que te acolheria? Cada um terá suas escolhas e poderá eleger um país com um referente. Nós, sem nenhum tipo de nacionalismo, esta maldição do mundo moderno, nós, sem orgulho de sermos brasileira/o, afirmamos: vamos continuar aqui. Avançamos pouco, mas avançamos. Obrigamos os teólogos de gênero a saírem do armário e vir ao mundo público disputar posições sobre masculinidades e feminilidades e ao fazer este gesto político, nos dão razão: gênero não é um assunto bíblico ou biológico, diz respeito a projetos políticos.
Agora que a luta está ficando boa, porque está mais clara, vamos desistir? Estamos apenas começando.
BERENICE BENTO é professora do departamento de Sociologia da UnB
Fonte: RevistaCult.uol