Entrevista com Patrícia Daniela Maciel (IFPR) e Maria Manuela Alves Garcia (UFPel) “A lesbianidade como arte da produção de si e suas interfaces no currículo” | RBE V.23 | Abril de 2018
A Revista Brasileira de Educação (RBE), publicada em fluxo contínuo e digital desde outubro de 2017, traz em seu volume 23 no mês de abril de 2018 o artigo “A lesbianidade como arte da produção de si e suas interfaces no currículo”. Com base em relatos autobiográficos de um grupo de sete mulheres professoras da educação básica que em algum momento assumiram-se lésbicas, as autoras Patrícia Daniela Maciel (IFPR) e Maria Manuela Alves Garcia (UFPel) propõem reflexões sobre o modo com que estas entrevistadas produzem a docência e o currículo. Baseado em Tese de Maciel (2014) premiada pela Capes em 2015 e publicada em livro posteriormente, o artigo ecoa como as experiências das professoras como lésbicas nas escolas produzem uma pedagogia que atua não apenas como questionamento dos padrões heteronormativos, mas como uma produção de conhecimento próprio pela qual elas reinventam suas identidades como professoras.
Confira a entrevista:
O artigo se baseia numa tese de doutorado de uma das autoras, de 2014. O que motivou inicialmente tal pesquisa?
O artigo está baseado na tese de doutorado intitulada “Lésbicas e professoras: modos de viver o gênero na docência”[1], que surgiu do interesse em compreender como os professores gays, lésbicas e trans viviam as diferenças de gênero nas escolas. A pesquisa, inicialmente, previa analisar como os professores jovens, que estavam iniciando as suas trajetórias docentes se viam diante da diversidade das suas sexualidades. Contudo, ao perceber a ausência das mulheres lésbicas da educação básica nos estudos acadêmicos do campo da educação, do trabalho docente e do gênero, optou-se politicamente por uma investigação que pudesse dar visibilidade às lésbicas no magistério. No contexto educacional e dos estudos sobre trabalho docente, fala-se muito das mulheres, das professoras, de um modo universal, sem nos atentarmos para as diferenças e as singularidades entre essas mulheres. O foco da tese foi problematizar, a partir de narrativas biográficas, como as professoras lésbicas constroem as suas subjetividades e a própria docência diante das suas experiências com os discursos de gênero baseados em uma heteronormatividade não compulsória; analisar a potência dos discursos e das tecnologias de gênero, em especial das lesbianidades, na produção dos femininos e das feminilidades; e da relação da criação destes modos de vida na pedagogia, no currículo e na escola.
Como os estudos de gênero têm evidenciado estruturas heteronormativas nos currículos, contribuindo para que sejam entendidos, assim como a pedagogia, como algo circunstanciado e subjetivo?
Os estudos de gênero no campo educacional sem dúvida têm contribuído para evidenciar como o currículo e a pedagogia estão fortemente implicados na produção e reprodução das estruturas heteronormativas e sexistas de nossas sociedades. Os currículos e as práticas pedagógicas a que fomos e somos submetidos/as produzem o que somos e o que nos tornamos no interior das culturas. Os currículos e a pedagogia possibilitam, exaltam, e/ou desclassificam, certas formas de sensibilidade, pensamento e modos de vida. Nas sociedades modernas passamos crescentemente mais tempo de nossas existências em aparatos escolares e educacionais, no interior dos quais aprendemos o valor de certos discursos, conhecimentos e modos de existência, ao mesmo tempo em que também aprendemos o que não é tão bom assim, o que não devemos fazer e o que não devemos sentir e desejar. Os currículos são heteronormativos e sexistas porque nossas sociedades também o são. Vivemos em sociedades em que pessoas ocupam posições inferiores, são banidas, excluídas e mesmo mortas, por seu gênero, por sua orientação sexual ou pela cor de sua pele e etnia. A pedagogia e o currículo na medida em que selecionam conteúdos e valores considerados úteis e adequados a um certo tempo e cultura, educam nosso pensamento, nossas condutas e nossos sentimentos diante do outro. Por isso, o currículo e a pedagogia estão envolvidos com a produção de nossas subjetividades e estão diretamente implicadas com a construção de significados sobre o corpo, o feminino, o masculino, os sentimentos, as relações afetivas e sexuais, etc. A ideia de um currículo e de uma pedagogia baseadas na neutralidade e objetividade é muito empobrecedora do que efetivamente acontece na escola. As regras e as normas que pautam as condutas sobre essas questões no cotidiano escolar estimulam uma conduta heteronormativa, sexista e homofóbica.
Nesse sentido, qual a importância de pesquisas mais recentes, que enfatizam o poder dos discursos de gênero dos próprios/as professores/as?
As pesquisas que vêm enfatizando o poder dos discursos de gênero que professores e professoras professam e praticam na escolarização no trato com os alunos e as alunas e no trato com os conteúdos escolares têm uma importância fundamental. As pesquisas evidenciam que, ainda que não o saibam de modo consciente, os professores e as professoras estão sempre validando e reforçando, ou não, comportamentos, saberes, atitudes, sentimentos, modos de pensar e sentir acerca do gênero e do sexo. Os professores e as professoras são referências para os/as estudantes e o que dizem e o modo como agem em relação ao gênero e à sexualidade informa os significados que estudantes constroem sobre os seus, e de outros, corpos, desejos e afetos. A escola e os professores e as professoras nas suas práticas estimulam identificações, favorecem aceitações, exclusões, culpa, vergonha, etc. Os professores e as professoras têm responsabilidades na construção de seres humanos mais respeitosos e tolerantes com as diferenças. Os seres humanos, seus modos de viver, seus modos de amar e seus desejos são múltiplos e podem variar ao longo de uma existência. A pesquisa põe em evidência o quanto essas definições não são fixas e sempre as mesmas. O respeito para com a multiplicidade e a diferença não significa tudo aceitar e tolerar, pois a existência e o convívio em sociedade exigem normatizações e regras muitas vezes limitadoras de condutas destrutivas e de risco à própria existência individual e social. A tensão entre liberdade e autoridade, ou entre a norma e a regra, e aquilo que não pode ser explicado pela norma ou limitado pela regra, é um problema moral e político complexo, exigindo um esforço de atenção constante para os efeitos opressores das normas e convenções culturalmente e socialmente estabelecidas. Se queremos sociedades mais inclusivas e respeitosas com os direitos da multiplicidade dos seres humanos e seus modos de viverem e de se relacionarem afetivamente e sexualmente, é preciso que essas questões sejam debatidas na escola.
Como vocês colocam no texto, a “intenção ao recorrer às histórias dessas professoras não foi compreender como elas transformam suas experiências de vida em conhecimentos/conteúdos e/ou práticas pedagógicas”, mas sim “[…] problematizar como o gênero tornou-se um domínio subjetivo e material na vida das participantes da pesquisa”. O que foi possível observar nessa perspectiva? Com que tipos de histórias e depoimentos tomaram contato?
Uma questão importante a ser pensada é que o estar mulher e o estar lésbica não representa um modo de ser. As professoras lésbicas, assim como tantas outras professoras hétero, trans, bissexuais, são singulares nos modos como são professoras e como vivem o gênero. Seus depoimentos são marcados pela ambiguidade dos discursos de gênero, são contraditórios, ou seja, não podemos recorrer às suas histórias tentando encontrar um modo de ser lésbica, assim como não encontraremos um conjunto de conhecimentos ou práticas curriculares para acabar com a lesbofobia nas escolas, por exemplo. Elas próprias comentaram na pesquisa que conseguiram trabalhar o gênero nas salas de aula após cursos de formação para professores ou em pós-graduações na área. Algumas professoras não se assumem abertamente, o que não esconde os seus corpos ou posicionamentos. O que elas fazem é mudar as estratégias e as formas de se colocar, confundindo, ironizando, parodiando, fazendo re-arranjos e negociando seus modos de ser mulher na figura da docente. O que elas fazem é o que Lauretis[2] (1994) vem chamando de um paradoxo, um modo de viver as contradições e de colocar em questão a norma e a fixidez das posições de gênero. Logo, o que observamos nas entrevistas foi como as contingências de gênero transformam as suas feminilidades e suas formas de ver-se como docentes. Uma das frases que talvez melhor represente o domínio subjetivo das experiências das professoras lésbicas nas escolas é da professora Bruna, que diz: “[…]de repente o fato de tu ser gay, ser lésbica ou ser trans, o fato de tu não ser heterossexual te faça tu ter toda uma outra compreensão de mundo, que é uma compreensão de quem está sendo achacado, de quem não pode se beijar na esquina, de quem não pode, então, tu não vai fazer isso com os outros em outras fases da tua vida, teoricamente […]”.O que percebemos é que as professoras lésbicas, após os relatos de fatos de negações, privações e violências, expõem, em suma, como a problematização que elas fazem de si, enquanto lésbicas, constituem uma estratégia de autoformação e/ou uma estratégia de reelaboração delas sobre si (Foucault, 2009)[3].
Os relatos, no entanto, mostram que existe uma pedagogia viva, a partir do contato das professoras lésbicas com alunos, sobretudo, exercendo um “ponto de fuga e de divergência de códigos convencionais”. A partir disso, afirmam que “discursos de gênero demandam uma autorreflexividade do campo pedagógico, que a educação precisa pensar os discursos do sexo no campo pedagógico como uma via de transformação do arcabouço discursivo daquilo que nos prende como sujeitos”. Como isso poderia ser feito?
É importante ressaltar que as professoras lésbicas não estão paralisadas diante das circunstâncias e acontecimentos ligados as suas sexualidades nesses contextos. Mesmo não assumindo, percebemos que elas produzem modos de sobrevivência e resistência ativa nos contextos escolares. Reconhecemos que elas intermediam as situações de lesbofobia nas escolas, cada uma a sua maneira; que produzem experiências corporais e estéticas diferenciadas em relação às normas do feminino e da feminilidade hegemônicas; e que elas confundem os padrões de vida e existência vigentes, instituindo, mesmo que de modo marginal, um quadro de referências e autoridade que costuma gerar interesse e questionamentos nos ambientes escolares. O que precisamos pensar é como as tecnologias de gênero nos atingem, como reforçam estereótipos, criam repertórios de pensamentos e determinam nossas ações. Basicamente, a escola participa ativamente na formação de gênero. Mas a questão é: com qual arcabouço discursivo?
Apesar de não fazerem parte do escopo de tal pesquisa, de que forma temas atuais – a exemplo da ofensivo do “Escola sem Partido” e da retirada de questões de gênero da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) – se relacionam com os dilemas e perspectivas que vocês expõem no artigo?
É preocupante a perspectiva que atualmente conduz a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e o Movimento “Escola sem Partido” em relação às questões de gênero e sexualidade. Do ponto de vista das políticas educacionais e curriculares vivemos um retrocesso, se considerarmos o tratamento que essas questões tiveram em termos de representatividade nos currículos a partir da Constituição de 1988 e da LDBEN de 1996. As regulamentações educacionais e curriculares que seguiram a essas legislações maiores foram generosas em termos do reconhecimento de grupos sociais excluídos e seus modos de vida, ainda que críticas possam ser feitas. No último período, mais propriamente com o golpe que destituiu a presidente Dilma Rousseff, assistimos a um imenso retrocesso e o recrudescimento de forças sociais e políticas conservadoras que têm conseguido impor sua agenda na educação e nas políticas educacionais, mais especificamente. Diz-se que é preciso banir a ideologia da escola e dos conteúdos escolares e que o currículo não pode tratar do gênero e ainda menos da sexualidade, pois essas questões não são relevantes na escolarização. Essa posição é também ideológica e atende a interesses específicos, tanto quanto as de quem defende a presença desses temas na escola. O currículo escolar faz seleções arbitrárias no interior de um conjunto de culturas, modos de vida e conhecimentos muito amplos. São seleções que nada têm de inocentes e neutras, mas que resultam de processos históricos, sociais, econômicos e culturais em que determinados grupos conquistam autoridade para impor suas culturas e modos de vida como mais legítimos do que os dos que ficam excluídos. Historicamente temos visto que a escola tem, crescentemente, se afastado do debate das grandes questões da existência e da convivência humana, ocupando-se exclusivamente com as questões consideradas “úteis”, geralmente relacionadas a passar no próximo exame ou avaliação, ou então à economia e ao mundo do trabalho. É uma redução terrível da formação cultural que deveria ser o fundamento da instituição escolar, reduzir a tarefa da escola à transmissão de um conjunto de competências instrumentais para o mercado e o trabalho e para melhorar os índices nas estatísticas educacionais. É nessa direção que caminhamos largamente. Se pensarmos e fizermos da escola um lugar de adaptação ao mundo que está posto, que tem no mercado e na racionalidade econômica o seu principal fundamento, estamos desenhando um presente e um futuro terrível para a humanidade e as novas gerações. Pois, o mundo que ora vivemos, e o Brasil em particular, é terrível quando se pensa em injustiça social, em guerras e violência por todo o canto, em destruição do nosso próprio habitat. Apesar dos avanços científicos e tecnológicos de nosso tempo nunca se viu tanta precariedade da vida humana, tanta destruição de agrupamentos humanos e dos recursos naturais e tanta injustiça no acesso a bens culturais e materiais. A educação e o currículo são artefatos da política cultural de uma sociedade comprometidos com a construção do futuro. Se queremos um mundo mais justo e igualitário, em que diferentes grupos sociais e pessoas tenham garantias sociais, econômicas e culturais que as possam habilitar a terem mais qualidade de vida e a serem mais felizes e realizadas no conjunto de suas vidas, então o debate sobre o gênero e a sexualidade tem que estar, sim, no currículo e na escola. Isso significa uma escola mais engajada com a vida mesma, com o futuro das sociedades humanas e sua humanização.
[1] MACIEL, Patrícia Daniela. Lésbicas e professoras: modos de viver o gênero na docência. 2014. 178 p. Tese (Doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal de Pelotas.
[2] LAURETIS, Teresa De. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. (org.) Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
[3] FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal Ltda, 2009, 176p.
Fonte: ANPED