por Caio Vinicius de Castro Gerbelli
O desmonte das políticas públicas de Educação de Jovens e Adultos (EJA) é um projeto que se encontra em vias de consolidação e esse plano é racista, pois expulsa e, por consequência, reitera a negação histórica do direito das populações negras e indígenas de buscarem uma vida mais justa através da educação
Há um processo em curso de destruição da Educação no Brasil, que atinge em cheio a de Jovens e Adultos. Essa frase pode parecer um tanto quanto catastrofista e alarmante, todavia ela é, e assim deve estar. O que estamos vendo e vivendo na atual conjuntura política e socioeconômica em nosso país é a reafirmação da negação do direito à educação para uma multidão de brasileiras e brasileiros que não puderam completar o ciclo da escolaridade. É a concretização de um projeto de exclusão e de expulsão de trabalhadoras e trabalhadores. O que temos é o total desprezo com a população brasileira.
Estamos vivenciando, desde o golpe de 2016, um avanço destrutivo das políticas neoliberais. Com as Reformas Trabalhista, da previdência e do ensino médio, com o Teto de Gastos e a Lei das Terceirizações, avançam o subfinanciamento de políticas públicas educacionais, o corte de investimentos, desarticulação e descumprimento dos planos decenais de educação, com queda acentuadas das matrículas, com o fechamento de salas, com o Parecer CNE/CEB 6/2020 e com a Resolução CNE/CEB nº 1 de 2021. A lista é longa e escabrosa, mas esses são alguns dos elementos chaves para compreendermos a real condição da EJA do precariado[1], que busca na modalidade um novo caminho por uma vida mais justa.
Com a consolidação do capitalismo flexível, da financeirização, da uberização e do consequente decurso da precarização total da vida dos sujeitos da EJA, o retrato que se constrói a cada dia é desalentador. Quanto mais a classe trabalhadora é precarizada, mais a EJA é precarizada. Isto é uma relação diretamente proporcional que impacta justamente na vida de uma multidão que está, ou poderia estar, em uma sala de aula. Tomamos como exemplo a perspectiva do tempo, pois com o avanço substancial da precarização do trabalho e com o dispêndio de 12, 14, 18 ou até 20 horas de vida para o trabalho, os sujeitos da EJA ficam, consequentemente, sem tempo para estudar. Há menos tempo para todos e quaisquer outros afazeres da vida, como o trabalho doméstico, reprodutivo e de cuidados, que, ressalta-se, recai mais fortemente sobre as mulheres.
Mundo do trabalho e educação
Para aprofundarmos um pouco mais sobre a realidade do precariado, é fundamental compreender a relação intrínseca entre as características atuais dos mundos do trabalho e da educação, sempre destacando a divisão sociossexual, étnico e racial. Desde que a EJA é EJA, a partir de sua própria história, são os trabalhadores e trabalhadoras jovens, adultos e idosos, que foram excluídos ou tiveram seus direitos negados ao acesso à educação, seu principal público.
O cenário sobre a realidade do trabalho no Brasil é tenebroso. Os últimos dados publicizados nos mostram que temos aproximadamente 11 milhões de pessoas desempregadas, 4,6 milhões de desalentadas e uma taxa absurda de 40% de informais ou, mais precisamente, 39 milhões de trabalhadoras e trabalhadores sem direitos. O número de subutilizados e subocupados por insuficiência de horas trabalhadas somam, aproximadamente, 33 milhões. Ao passo que há uma acentuada queda nos rendimentos salariais, que são gravados com o aumento estrondoso do custo de vida. Concomitante a tudo isso, temos um crescimento acentuado de sujeitos que estão sofrendo fortemente os impactos que a pandemia da Covid-19 desnudou. 33 milhões de pessoas passam fome neste rico país.
Na profunda desigualdade que alicerça ao Brasil, a população negra é a maioria entre os/as desempregados/as e os/as informais. São eles e elas que possuem rendimentos menores se compararmos com a população branca. São elas e eles que ocupam os empregos mais precarizados e que sofreram fortemente as consequências da pandemia em todas as esferas da vida cotidiana.
O retrato societal dos sujeitos da Educação de Jovens e Adultos nos mostram uma condição preocupante. Em 2019 tínhamos aproximadamente 11 milhões de pessoas não-alfabetizadas, dos quais 8 milhões eram negras, somados aos mais de 70 milhões de sujeitos que poderiam estar em uma escola de educação de jovens e adultos, cuja população negra é a ampla maioria, pois foram eles e elas que, historicamente, foram excluídas, expulsas ou tiveram seus direitos negados ao acesso à educação.
O cenário atual do financiamento da modalidade nos mostra que o desafio é imenso. Se em 2012 tivemos quase 1,8 bilhões de reais investidos pelo governo federal, após o golpe de 2016, esse número foi reduzido para 8 milhões em 2020. Uma queda (de 99,56%), que impacta diretamente na manutenção da EJA no território nacional e que empurra a responsabilidade para os entes estaduais e municipais que, por sua vez, reduzem, cada vez mais rápido, a oferta de vagas.
Pegando os últimos dados divulgados de matrícula do ano de 2021 estavam em sala de aula 2.962.322 milhões de pessoas, das quais 49,42% eram não-brancas, 16,75 brancas e 34,25% que não declararam cor/raça na matrícula. Ao analisarmos as informações provenientes do Exame Nacional para a Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) de 2019, notamos pontos semelhantes às questões acima referidas. Das 2.973.386 inscrições, aproximadamente 62% eram de pessoas não-brancas, 35% de brancas e 3% não declararam. Mesmo no ano de 2020, durante a pandemia, houve 1.608.135 milhões de inscrições mantendo os dados praticamente idênticos ao do Encceja do ano anterior.
O que temos é que, com a queda das matrículas, fechamento de salas, redução substancial do financiamento da modalidade e a acentuação da precarização do trabalho, está sendo ofertado uma alternativa rápida, precária, mais barata e de curto prazo. O que podemos chamar de fábrica de certificados, ou, Exame Nacional para a Certificação de Competências de Jovens e Adultos, que é o seu nome oficial, é a única política pública ofertada pela atual administração do governo federal.
O que observamos é um processo de “desescolarização”, que, através da política de certificação e das reformas educacionais, que abriram as portas para educação a distância, empurram progressivamente os trabalhadores e trabalhadoras negras e indígenas para fora da escola. Ou seja, nega-se mais uma vez o acesso ao direito à educação e tudo que a escola pode oferecer.
O desmonte das políticas públicas de Educação de Jovens e Adultos é um projeto que se encontra em vias de consolidação e esse plano é racista, pois expulsa e, por consequência, reitera a negação histórica do direito das populações negras e indígenas de buscarem uma vida mais justa através da educação.
Por fim, é imperativo que se coloque a EJA como política pública crucial para toda e qualquer perspectiva de mudança substantiva na nossa sociedade. Sem uma EJA forte, antirracista, anticapitalista, igualitária, inclusiva, laica e de qualidade, a roda que produz da desigualdade jamais será destruída.
Caio Vinicius de Castro Gerbelli é professor de História na Educação de Jovens e Adultos de Santo André – São Paulo. Mestre em história e especialista em Proeja. Militante do Fórum EJA de São Paulo e do ABCDMRR.
[1] GERBELLI, Caio Vinicius de Castro. A Educação de Jovens e Adultos do precariado e o paradigma da dignidade provisória. Revista Trabalho Necessário, 19(40), 124-147. https://doi.org/10.22409/tn.v19i40.50844
Fonte: https://diplomatique.org.br/a-destruicao-da-eja-e-um-projeto-racista/