O famoso escritor publicou um artigo no Washington Post em 2019 que descreve tudo que foi vivido na época
INGREDI BRUNATO
“Fui torturado pela ditadura do Brasil. É isso que Jair Bolsonaro quer celebrar”, dizia o título impactante do artigo escrito por Paulo Coelho no jornal Washington Post em maio do ano passado. Seu relato era uma resposta direta ao fato do presidente do Brasil ter dito que o aniversário de 55 anos do período militar deveria ser “celebrado”.
O bem-sucedido escritor está por trás de, entre outras obras, O Alquimista, livro brasileiro mais vendido da história, além de já ter participado da produção de músicas cantadas pelo Raul Seixas e pela Rita Lee. Em 2002, ainda, ele foi eleito para a Academia Brasileira de Letras.
Outra parte da vida de Coelho, evidentemente marcante, compreendem as semanas em que passou no DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), ou o órgão responsável por realizar interrogatórios com aqueles que eram ‘percebidos’ como uma ameaça ao regime. Foi em nome desses interrogatórios que ocorreram as horríveis torturas do período militar.
Truque
Segundo o escritor, era apenas um dia comum quando “um grupo de homens armados” invadiu seu apartamento e passaram a revirar seus pertencentes. O episódio, embora desesperador, não era nenhum enigma – naquela época, as pessoas já sabiam o que algo assim significava. A única dúvida era porque “apenas um compositor de rock”, como o brasileiro se descreve, seria considerado uma ameaça ao governo.
Não demorou para que ele fosse tirado de sua casa sob os olhares de vizinhos amedrontados, e levado para o DOPS, onde foi fichado e interrogado de forma breve. Porém, então veio um truque cruel: Coelho foi liberado ‘de mentirinha’.
Ele teve a chance de sair do órgão, pegar um táxi, pensar sobre a necessidade de ver sua família, torcendo para que eles ainda não tenham ficado sabendo do que lhe ocorreu. Então, a surpresa – dois carros fecharam o táxi, e o compositor foi arrancado do carro.
“Caio no chão, sinto o cano da arma na minha nuca. Olho um hotel diante de mim e penso: ‘não posso morrer tão cedo.’ Entro em uma espécie de catatonia: não sinto medo, não sinto nada. Conheço as histórias de outros amigos que desapareceram; sou um desaparecido, e minha última visão será a de um hotel. Ele me levanta, me coloca no chão do seu carro, e pede que eu coloque um capuz”, contou em seu relato vívido.
O inferno
Assim, Paulo Coelho foi levado para o prédio onde seria torturado. Ainda nos corredores, antes de chegar a sala propriamente, o então jovem foi espancado por oficiais do governo que lhe chamavam de “terrorista” aos berros.
“O carro para. Sou retirado e espancado enquanto ando por aquilo que parece ser um corredor. Grito, mas sei que ninguém está ouvindo, porque eles também estão gritando. Terrorista, dizem. Merece morrer. Está lutando contra seu país. Vai morrer devagar, mas antes vai sofrer muito”, lembrou o artista na publicação do ano passado.
No interrogatório oficial, os torturadores perguntaram de pessoas que o escritor nunca havia ouvido falar, e diante de sua incapacidade de responder, prenderam uma máquina de choque em seus órgãos genitais.
Nunca tendo passado por uma experiência tão extrema antes, Coelho implorou pela misericórdia de seus captores, dizendo que assinava a confissão que eles quisessem, era só falarem o que ele precisava confessar.
Ao não ser ouvido, o jovem tomou uma medida desesperada: começou a arrancar pedaços de si mesmo, ficando rapidamente ensanguentado. Sua atitude, justamente por ser inesperada, funciona de alguma forma: a sessão de tortura é encerrada. Porém a pausa não dura muito.
“Depois de não sei quanto tempo e quantas sessões (o tempo no inferno não se conta em horas), sou levado para uma sala pequena, toda pintada de negro, com um ar-condicionado fortíssimo. Apagam a luz. Só escuridão, frio, e uma sirene que toca sem parar. Começo a enlouquecer, a ter visões de cavalos. Bato na porta da “geladeira” (descobri mais tarde que esse era o nome), mas ninguém abre. Desmaio. Acordo e desmaio várias vezes, e em uma delas penso: melhor apanhar do que ficar aqui dentro.”, relatou ainda Coelho.
De volta à vida real
Quando foi afinal liberado, depois de todas as horas de tortura e dias de solitária, o jovem retornou para uma realidade modificada. Seus pais estavam abalados e seus amigos o tinham abandonado, porque a notícia de sua prisão se espalhara de alguma forma, e era perigoso andar com alguém com passagem pelo DOPS.
Paulo Coelho ainda contou que descobriu décadas depois que havia sido preso por uma denúncia, mas preferiu não saber quem o denunciou. “Não vai mudar o passado.”, concluiu ele.