Jacqueline Muniz avalia o programa Cidade Integrada, alfineta a esquerda e refuta a tese de que falta preparo e inteligência às polícias brasileiras.
Carol Castro
JACQUELINE MUNIZ não se prende aos chavões da segurança pública – nem da esquerda, muito menos da direita. “Eu sou a pessoa que talvez tenha dado mais aulas para as polícias no Brasil e na América Latina e sou tida por elas como uma rebelde”, brincou. Mas suas críticas são muito sérias: “o estado funciona como uma grande agência reguladora do crime, terceiriza e territórios, aluga territórios para o crime”, acredita.
Muniz conviveu – e ainda convive, por conta das aulas no curso de Tecnólogo em Segurança Pública da UFF, a Universidade Federal Fluminense – tão de perto com policiais que sabe que falhas apontar: faltam protocolos claros de ação e responsabilização. Se não há métricas de análise de desempenho, para além dos relatórios de apreensões e prisões, não há como avaliar o trabalho policial, ela analisa. Se não há como avaliá-lo, não há como controlá-lo. E polícia precisa de controle.
Mas qual governante se importa? Uma operação teatral, a qual ela chama de “polícia de ostentação”, com policiais do Bope armados entrando em áreas dominadas por grupos criminosos, faz a população acreditar em alguma solução. Como se aquela ação significasse um movimento para frente – a ideia de que algo pelo menos está sendo feito. Se sai mal, basta lavar as mãos e questionar de onde partiu a ordem. “Mandatos de polícia são cheques em branco, procuração em aberto no Brasil, que você preenche nos gabinetes conforme convivência, conivência e conveniência”. Só tem um problema: uma polícia forte demais e sem controle e fiscalização externas pode tomar o poder de assalto. Já uma fraca pode se render à corrupção.
Cientista social, mestre em antropologia e doutora em segurança pública, Muniz bateu um papo comigo no dia em que a polícia ocupou as comunidades do Jacarezinho e de Muzema, respectivamente nas zonas Norte e Oeste da cidade do Rio de Janeiro. E, logo de cara, avaliou negativamente a primeira ação do programa Cidade Integrada, que, segundo o governo, pretende retomar os territórios dominados pela milícia e pelo tráfico: “não questiono a intenção em si, e sim a possibilidade concreta, a factibilidade, plausibilidade da sua execução em um ano eleitoral. Isso nos permite questionar se não tem aí uma vestimenta eleitoreira publicitária”.
Muniz, que coordenou o setorial de Segurança Pública, Justiça e Direitos Humanos em 2002 e dirigiu a Secretaria de Segurança Pública do estado do Rio de Janeiro em 1999, ainda destacou as inverdades em discursos repetidos exaustivamente por políticos. Veja os principais pontos da entrevista:
Intercept – Qual a sua visão sobre o projeto Cidade Integrada, do governo do Rio de Janeiro, que começou hoje cedo [20 de janeiro] com a ocupação do Jacarezinho e Muzema? Parece uma releitura das UPPs?
Jacqueline Muniz – Retomar iniciativas não é um problema. Revisar e repensar programas e ações governamentais de segurança pública exitosos, mas que tiveram vida curta ou não foram bem implementados, oferece um horizonte mais qualificado para enfrentar os problemas concretos da segurança pública. Políticas de estado precisam ter continuidade.
O problema todo é que você faz isso em um ano eleitoral. É a primeira iniciativa do Cláudio Castro, um projeto ambicioso demais. Como gestora pública, eu diria que é impossível colocar em prática tudo que está sendo pensado no intervalo de 10 meses, quando termina o governo. E não há provisão orçamentária. Porque parte das iniciativas são de médio e de longo prazo, exceto a polícia na sua lógica de ocupação, porém o seu efeito é curto. E, em julho, você já não pode seguir empenhando recursos, porque não pode caracterizar o uso da máquina para fins eleitorais. Então, ano eleitoral limita muito a aplicação de recursos e investimentos. Não questiono a intenção em si, e sim a possibilidade concreta, a factibilidade, plausibilidade da sua execução. Isso nos permite questionar se não tem aí uma vestimenta eleitoreira publicitária.
‘Quem administra a morte é o estado’.
Uma política tem de ser traduzida pelo planejamento, execução, baseamento [local da base dos policiais], alocação orçamentária, previsão orçamentária para o ano seguinte numa rubrica orçamentária específica para esse projeto. A população está cansada de frase de para-choque de caminhão como promessa. O que a sociedade fluminense mais viu foram experimentos em segurança pública que tiveram um prazo de validade, que não se caracterizaram como políticas públicas efetivas. Talvez os únicos projetos que tenham permanecido produzindo resultados nos governos tenham sido o Disque-Denúncia e o Instituto de Segurança Pública.
Moradores já relatam casos de abuso policial, como invasão das casas, furtos. Já parece para eles uma repetição…
A primeira coisa é que entraram pisando duro e com pé esquerdo no Jacarezinho, mais uma vez. Não se pisa no chão dos outros sem pedir licença. A ideia não é pegar a população no susto. Se é para capturar ou deter criminosos, tem de ser feito trabalho de inteligência. Ainda mais diante de uma memória recente, e também histórica de dor, ressentimento de perdas por conta de ações policiais. Essa operação deveria inaugurar o resgate da confiança e da credibilidade pública que são condição para o exercício eficaz de qualquer policiamento. Então, deveria ser uma ação com alto padrão de disciplina operacional tática exatamente para mostrar que fazer polícia é diferente de produzir opressão. Numa ação qualificada com foco, com planejamento, e alvo definido para garantir a rotina dos cidadãos, porque a vida no Jacarezinho, em Muzema, onde quer que seja, não pode parar porque tem uma operação acontecendo. Então, não se trata de esquentar a chapa já esquentada pelo crime e sim de esfriar. É o que distingue a ação da polícia da ação de um bando armado: sua superioridade de método com transparência. Quanto menor a credibilidade, mais a polícia enxuga gelo. E essa operação ocorreu com os mesmos padrões anteriores.
A operação inicial contou com cerca de 1,3 mil policiais. Qual o impacto disso na segurança de toda a cidade?
Quando você entra em áreas com confrontos armados, grupos criminais, você precisa primeiro desarmá-los. Então, tem que entrar com uma qualidade tática elevada para não produzir violências, nem violações, para não fazer uso excessivo de força. Por isso o uso de blindagem, para não devolver pedra com pedra, nem tiro com tiro. Os recursos logísticos definem as alternativas táticas do agir à luz da missão estratégica política. E precisa entrar com saturação de presença policial – daí por que mil policiais para os 55 mil habitantes do Jacarezinho. Isso te dá mobilidade, dá vantagem de 360 graus no controle do território. Mas a ocupação é pontual e temporária.
Uma operação com mil policiais corresponde ao provimento de policiamento para uma população de 300 a 400 mil pessoas. E, para você ter mil fulanos ali na esquina, você precisa provisionar 4 mil, porque temos três turnos, mais as folgas. Cada policial fica oito horas e ganha folga. Por isso, você demanda outros 3 mil PMs. Ou seja, você introduz escassez de policiamento para mais de um milhão de pessoas. Por isso, essas ações são pontuais [o governador Cláudio Castro reduziu o contingente policial em 80% no dia seguinte à ocupação], como falei que deveriam ter sido as UPPs.
Então esse é um dos erros que não podem ser repetidos?
Precisamos avaliar com calma as UPPs. Quando estavam sendo pensadas e construídas, elas surgiram de um histórico de experiências de policiamento em áreas chamadas conflagradas, territórios instáveis ou espaços populares. Essas experiências vêm desde a época do governo Brizola, com os postos de policiamento comunitários, depois tivemos os grupamentos especiais implementados em área de risco.
Todos esses programas tinham a ambição de prover um policiamento que não fosse o tiro, porrada e bomba, que não fosse o que eu chamo da política do S. Você dá susto, depois você produz susto na população – “uh, o crime é perigoso, o crime é Godzilla,” – depois vem o surto de autoridade e, por fim, soluços operacionais cuja dimensão será publicitária. Ou seja, um efeito publicitário para parecer que você está fazendo alguma coisa, quando, na verdade, está trocando seis por meia dúzia.
Interessante lembrar que, naquele momento, todo mundo pegou carona no sucesso pontual da UPP. E eu avisei: o sucesso da UPP é o fim dela. Mas eu era uma voz solitária. Porque uma andorinha sozinha da PM jamais faria verão algum da pacificação. Aquilo não era uma política de segurança, era um programa de policiamento pontual para determinadas situações também pontuais e que, por isso, tinha prazo de validade.
‘Estamos diante de um novo Tratado de Tordesilhas, com uma reorganização dos grupos criminais’.
As UPPs foram inspiradas nas missões de paz da ONU, no Peacekeeping Operation. Você entra com uma ocupação, com muitos recursos empenhados nessa operação. Você avisa antecipadamente que está indo, não pode entrar na casa de alguém, pisar no chão do outro sem pedir licença, ou você não tem legitimidade. E isso a polícia já perdeu, por conta de uma memória de trauma, sofrimento, violência e violações, então precisa entrar com um elevado padrão tático e de legalidade. Isso funciona para intervir num determinado território para cessar os tiroteios. Até aí tudo certo.
Mas tem validade. Nas UPPs, você tinha a razão de um policial para 100 habitantes – é impossível sustentar isso no Rio de Janeiro. O efetivo da polícia cresceu em 12 mil policiais. Isso é muito mais que o tamanho da polícia do Espírito Santo. Então, virou fábrica de salsicha, todo mês 500 policiais novos. Pois bem, com a escassez de capacidade e cobertura ostensiva, e com as UPPs crescendo indefinidamente, seguindo uma lógica eleitoreira e não técnico-policial, nós teríamos o controle dos homicídios por um determinado período, porque quem administra a morte é o estado, e teríamos também um aumento nos crimes de rua por conta da escassez de policiamento, o que geraria baixa mobilidade tática da polícia em toda a cidade e região metropolitana – por isso, o crime saiu daqui e foi para São Gonçalo, por exemplo. Quando você aumenta os crimes de rua, você aumenta a percepção de insegurança, aumenta a desconfiança.
Depois da ocupação, o que deve ser feito é instaurar uma gestão local, uma administração local da prefeitura, da Guarda Municipal, do Corpo de Bombeiros, de um trabalho de inteligência – enfim, um conjunto de coisas que não é só ação da PM. A PM ficou sozinha ali, então saiu o governo criminoso, e os policiais foram virando governantes militares. Chefes de capitanias hereditárias.
A estrutura do estado, sobretudo da prefeitura, não estava ali para administrar o espaço urbano. O que fazer com os motoboys? Como administrar o transporte alternativo, como administrar o gato de luz? Eu avisei: se continuar do jeito que está, você abre uma avenida para a milicialização. As UPPs tinham um prazo de validade, não tem como passar eternamente em missão de paz, ou vira o fiasco que virou. Elas davam prejuízo para setores políticos, cujo dinheiro do crime funciona como lavanderias de alguns templos religiosos e de carreiras eleitorais. UPP não é boa ou ruim. Ela foi sabotada e descaracterizada na sua proposta por dentro, pelo estado.
Como as UPPs fortaleceram as milícias?
Não tinha nenhum trabalho para controle da corrupção, de mecanismos para conter as milícias. As UPPs entraram em só uma área de milícia, no Batan, por causa do esculacho nos jornalistas do Dia. Os outros territórios eram do Comando Vermelho. Aí colocam o Bope para tirar o traficante e limpar a área para levar o miliciano lá para dentro. Faz-se a guerra para viver a paz do arrego, para subir o preço do alvará. Estamos diante de um novo Tratado de Tordesilhas, com uma reorganização dos grupos criminais.
Porque para pegar sol no iate, o traficante precisa da segurança de atores policiais. E é mais barato usar dos recursos milicianos, altamente profissionais, com conhecimentos técnicos, tiro certo. Policial é funcionário público, o que também facilita, dá passabilidade dentro da máquina do estado permitindo maior controle dos territórios, maior mobilidade do governante criminoso e de seus protegidos.
E agora com a junção do tráfico às milícias…
A base subalterna cria as milícias para a segurança local. Não é fácil conseguir uma carteira de fornecedor. Ninguém se pergunta como se constrói a carteira de fornecedores de drogas. Parece que o sujeito acorda com uma vontade de ganhar um dinheiro extra e, pronto, tem uma lista de fornecedores. Como você tem, do nada, acesso à cocaína? Tem que ter fornecedor, tem que ter entregador.
Quero voltar a uma frase sua: ‘o estado administra a morte’. Como isso funciona e se sustenta?
A insegurança é um projeto de poder autoritário que deu certo. A insegurança não acontece porque algo deu errado, ela é produzida por algo dar certo. Somos reféns do discurso do medo. Não é à toa que as operações têm alta rentabilidade política eleitoral. O policial convive com a síndrome do cabrito: o sobe e desce morro, tiro para lá e para cá, com exagero do saldo operacional – e isso tem alto rendimento eleitoral. É o marketing do terror.
As operações policiais são a dimensão mais visível a olhos nus, é a dimensão do teatro operacional visível. Você não sabe se um policial está investigando ou não aqui nesse exato momento, você não consegue enxergar a inteligência e ninguém da investigação. Quando achamos que a polícia está trabalhando? Quando o giroflex está ligado. Todo mundo vê esse espetáculo, ao qual chamo de polícia de ostentação.
‘Policial tem dois documentos: a carteira de polícia e o atestado de óbito’.
Esse teatro faz parecer que estão fazendo alguma coisa e que o monstro é cada vez mais feio – “ó, temos uma guerra, olha como cada vez os bandidos estão mais armados”. E esse policiamento de ostentação permite, inclusive, que os “guerreiros” tenham o direito de pegar parte do que foi arrecadado. Ou seja, você universaliza a corrupção. Não existe violência dissociada de práticas de corrupção, de autorizações – é isso que a gente não controla no Rio de Janeiro.
A crise permite ainda um estado constante de exceção. “Estamos em crise, precisamos tomar medidas imediatas, emergenciais”, aí não preciso prestar contas a ninguém. Então você dá um cheque em branco para os atores governamentais, sem que precisem dar satisfação dos resultados. Você produz estatísticas para enganar bobos.A excepcionalidade e a exceção viram rotina. Aí, você vai produzindo autonomizações predatórias, emancipadas do controle da sociedade, dos mecanismos de transparência e responsabilização.
Estamos falando de um aparelhamento. As polícias não são blindadas do apetite político partidário, nem da apropriação privatista que faz dele uma mercadoria. Policial é um zumbi de patrulhamento, ele tem dois documentos: a carteira de polícia e o atestado de óbito. Mais cedo ou mais tarde vai chegar nas costas dele. Então, a “guerra contra o crime” não passa de uma teatralização publicitária de alto impacto visual. Não existe guerra contra o crime. O estado funciona como uma grande agência reguladora do crime, terceiriza e aluga territórios para o crime. Não tem nada de “estado paralelo”, de “estado ausente”. Não existe crime organizado sem a contribuição do estado.
Como romper com essa lógica?
Essa pergunta vale milhões de dólares. A primeira coisa que você precisa fazer é produzir governos que controlem os meios de força, se você quer estabilização do poder legitimamente eleito numa sociedade democrática. Se você não controla a sua segurança pública, você está algemado ao próprio gabinete. Por isso, as polícias precisam estar subordinadas a comandos civis, sob controle da sociedade. Como eu tenho insistido, se o seu vigia fica forte demais, ele senta na sua cadeira e te dá um golpe. Se ele é fraco demais, ele se vende ao primeiro da esquina que oferece vantagens.
Quando olho para essas coisas, vejo soluções de baixo custo, de natureza administrativa procedimental ao alcance da mão, mas aqui nós adoramos pôr tudo na conta da Constituição. Por acaso, eu preciso mudar a Constituição para controlar o uso individual do armamento, da munição? Preciso mudar a Constituição para estabelecer padrões de tiro e aferição? Não. Em Nova York, eu sei qual o policial que a cada 100 tiros acerta menos de 90. Aí, ele que vá para a faculdade dar aula, cantar, tocar sax no metrô. Se você não controla o uso da força de polícia potencial e concreto, se você não controla a aplicação logística dos recursos policiais, como armamento, munição e equipamentos, você não controla nada em polícia. Porque polícia é um meio de força, é isso que polícia é. A polícia não previne nada, isso é outra fantasia.
‘Nenhuma tecnologia é neutra’.
Faltam mecanismos de responsabilização, controle do uso do armamento individual. Nada melhor do que a luz do sol nos porões de tomadas de decisão, de nível individual até a tomar decisão aqui em cima. Isso se chama accountability e responsabilização. Sai a culpa, entram os mecanismos individuais de responsabilização. Eu sou uma professora e sou avaliada por mais de 50 critérios. Você não policia sem regras, não é cada cabeça, uma sentença. O que orienta o trabalho de polícia não é o Código de Processo Penal, se chama Constituição que é o pacto sócio-político de onde deriva o mandato policial.
Você sabia que o Rio de Janeiro tem protocolo de operações policiais? Escritos. Da Polícia Civil, da Polícia Militar, da Secretaria de Segurança. Esses protocolos foram produzidos por cobrança dos coletivos de favela articulados com a Defensoria Pública e Ministério Público.
Se existem protocolos, então, entrar nas favelas matando, como a polícia faz, é uma escolha?
Eu era coordenadora de segurança pública e prendemos Elias Maluco, sem dar um tiro, para parar a matança dos grupos armados. Então, sim, é uma escolha. Uma escolha política.
Quando vocês pensarem em Operações Especiais, lembrem-se: elas são um corpo tático, não se toma decisões individuais, é como se fosse uma equipe de nado sincronizado. Então é pontual, é cirúrgica, não é para manter o BOPE cuidando de território, na síndrome do cabrito – assim você desmoraliza a doutrina de Operações Especiais. Mas quando você precisa delas e termina todo mundo morto… Entra a operação especial: 28 mortos. Eu quero saber em qual SWAT isso acontece!
Qual sua visão sobre o uso de câmeras nas fardas dos policiais?
Isso não produz o efeito que se quer, se você não tiver um sistema de responsabilização. Porque vai ser sempre depois que filmou. Amarildo morreu com uma câmera de vídeo dentro de uma viatura. Então, tem um conjunto de requisitos para que a câmera de vídeo possa funcionar e não seja engana-trouxa. Quem fala muito de tecnologia também está produzindo ilusionismo, tipo David Copperfield. Ou seja, enganando a população. Porque é como se o problema não estivesse nas pessoas, nem na política, nem na escolha. Basta pôr um brinquedo novo! Isso é abertura para farra de licitações, na base da política feita de mercadores. Temos vendedores e é preciso agradá-los. Como na intervenção militar, eu falei que seria uma farra das licitações no Rio de Janeiro.
A tecnologia tem de estar a serviço de uma política. Preciso definir: qual é a minha prioridade? Qual o problema do reconhecimento facial? Não é a ferramenta, é o cálculo, o algoritmo. O que está por trás do algoritmo? Um arbítrio, o juízo moral que olha para as pessoas e hierarquiza fenótipos. Nenhuma tecnologia é neutra – e é uma leitura neoliberal isso de que a tecnologia resolve, uma maneira de esvaziar a responsabilização e colocar a culpa na máquina de lavar, na geladeira, no celular. Então essa leitura da soma de preparo, inteligência e tecnologia é a mentira da vez. Eu posso usar alta tecnologia de um fuzil para matar, posso apagar, destruir a câmera ou as imagens.
Uma pesquisa mostrou que a letalidade policial em São Paulo caiu 85% após o uso de câmeras nos uniformes. É um efeito passageiro?
Os resultados positivos, seja de uma câmera de vídeo, ou na viatura, ou quaisquer outros instrumentos técnicos e tecnológicos, dependem do desenho de uma política de segurança que oriente modalidades táticas de policiamento. Uso de câmeras no uniforme só será uma ferramenta útil para conter abuso e desacato à autoridade se você realmente reduzir a violência, a corrupção dos policiais de maneira efetiva. Ou seja, ao longo do tempo, para além do modismo, se fizerem algumas coisas: se os protocolos da PM forem atualizados e de conhecimento público; se for colocado um sistema de controle individual do uso da arma e do gasto de munição por cada PM; se tiver um sistema de avaliação profissional de desempenho e de responsabilização que coloque luz do sol nas decisões do policial; se for colocado um programa de capacitação continuada no uso de força que estabeleça padrão de excelência nas modalidades de tiro defensivo, com os tipos de armamento, inclusive de armamentos menos letais; e, por fim, se for implantado um sistema de registro, de salvamento dessas imagens e monitoramento, auditagem e certificação por tempo superior a seis meses, com a prestação pública de contas e compartilhamento regular desse material com a Defensoria e o Ministério Público. Colocar na farda do policial sem mudança vai deixar de produzir efeito tão logo isso deixar de ser uma novidade.
Você comentou, antes de começarmos a entrevista, sobre as fake news da segurança pública. Pode falar sobre algumas delas?
Quando dizem que falta preparo, inteligência e tecnologia, eu sei que o sujeito não entende nada. Isso induz às fake news. Porque, quando a gente pensa no preparo, a gente coloca na conta individual, que tem a ver com aquela mentalidade da maçã podre, de que basta tirar a maçã. Mas o que apodrece a maçã? O cesto, né? Porque a gente treina, capacita e prepara a polícia na qualidade decisória, não é decoreba da carta de direitos humanos, porque eu tenho que traduzir os princípios dos direitos humanos em logísticas que delimitam a tática.
Os critérios e o preparo não são individuais, tem um conjunto de competências e capacidades apreendidas por esse policial. Polícia é tomada de decisão em tempo real, em situações de risco. Se você não é qualificada a tomar decisões em cenários de incerteza, risco e perigo, tu não é polícia. Tu é uma Jaqueline que entende desse negócio – professora pesquisadora –, então vai fazer um debate na TV.
A polícia tem o controle tático quando ela organiza uma operação. Ela tem a prerrogativa do agir, a proatividade na construção daquele cenário. Sendo assim, cai deliberadamente o risco de vitimização e deveria cair o risco de letalidade, né? Toda operação tem de ser programada ou emergencial para atendimento da população a partir de padrão táticos, previamente estabelecidos, profissionais. Quando você coloca na mesma frase “a polícia que mais mata e mais morre”, cria a ilusão de que você tá num bang-bang, com tiro de lá, tiro de cá. Não é verdade. A polícia tem tiro certo. O estado da arte dela é produzir uso potencial e concreto da força, portanto a chance de uma polícia estar o tempo todo matando e morrendo não existe. As motivações da morte são de outra natureza. Morador de favela sabe disso, o policial profissional também. Só não sabe o político que repete isso. E aí ninguém acredita, ninguém vai levar a sério, não importa de onde ele vem. Então isso é outra frase de efeito, outra frase para-choque de caminhão que deseduca, obscurece mais do que empresta rumo. Então já se sabe que quando a pessoa diz isso ela não vai fazer nada, não tem como governar.
Mesma coisa quando dizem “falta preparo”. Toda desgraça, como uma chacina, é regular e cíclica – uma rebobinagem, uma reestreia do mesmo pior, com as mesmas questões estruturais. Vai dizer que é falta de preparo? Você acabou de absolver a corporação, a política e desresponsabilizou o indivíduo, que agora é o coitado daquele policial ali. A polícia é a política em armas. Quando a polícia atira, atira atrás dela o governador que foi eleito para comandá-la, e atrás do governador os eleitores que legitimam e chancelam o governo.
Fonte: https://theintercept.com/2022/02/17/jaqcqueline-muniz-governador-atira-atras-da-policia/