Conep pediu que Procuradoria Geral da República (PGR) investigue as circunstâncias da pesquisa. Diretor-presidente da Samel, onde pesquisa foi aplicada, afirmou que considera o caso uma perseguição política.
Por g1 AM
Pesquisadores da Unesco consideram que a morte de 200 pessoas durante uma pesquisa com proxalutamida no tratamento contra Covid, no Amazonas, poderia ser um dos “mais graves e sérios episódios de infração ética” e “violação dos direitos humanos” de pacientes na história da América Latina. Um documento com o parecer dos pesquisadores foi divulgado no sábado (9), na Rede Latino-americana e Caribenha de Bioética (Redbioética-Unesco).
Em nota, o médico Flávio Cadegiani, responsável pelo estudo, afirmou que a Unesco “foi induzida a erro por declarações tendenciosas, por informações inverídicas e distorcidas fornecidas pela CONEP”. (leia mais abaixo)
Além das infrações no processo de pesquisa com os pacientes, os pesquisadores da Unesco apontam que foram violadas normas do sistema ético, promovidas pela Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, Declaração de Helsinque e as pautas do The Council for International Organizations of Medical Sciences (CIOMS).
Os pesquisadores da Unesco ainda criticaram a ocultação de informação sobre os locais, número de participantes, entre outros, e reforçam que mudanças de protocolo deveriam ser aprovadas pelo órgão regulador local, no caso, pela Comissão Nacional de Ética do Conselho Nacional de Saúde (Conep).
No documento é condenado o fato das equipes não terem apresentado uma análise crítica da pesquisa, apesar do crescente número de mortos, e terem optado por continuar com a implementação dos estudos. E ainda considera grave a ocultação da existência de comitês de pesquisadores independentes e que trabalhavam diretamente com os patrocinadores – o que constituiria conflito de interesses.
“É urgente que, se comprovadas as irregularidades, sejam investigados e responsabilizados ética e legalmente todos os envolvidos, incluindo equipes de pesquisa, bem como instituições responsáveis e patrocinadores, nacionais e estrangeiros”, diz o texto.
Os pesquisadores da Unesco ainda pedem que a denúncia seja difundida e acompanhada pela comunidade internacional e os meios de comunicação.
Investigação da Conep
O tratamento com proxalutamida faz parte de um procedimentos de pesquisa realizado no Amazonas que foi questionado pela Conep, após indícios de irregularidades. De acordo com o documento, pelo menos 200 mortes foram reportadas durante o estudo. Cabe ressaltar que não existe um “tratamento” que tenha se mostrado eficaz contra a Covid-19. A vacinação é a maneira mais eficaz de evitar formas graves da doença.
Ao g1, o coordenador da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), Jorge Alves de Almeida Venâncio, disse que a investigação do órgão foi concluída.
“A investigação de nossa parte, na Conep, foi concluída, porque o pesquisador se recusou a fornecer as informações solicitadas. Nós encaminhamos a representação, que foi aprovada por unanimidade pelo colegiado da Conep, ao Ministério Público Federal”, afirmou.
Segundo Venâncio, MPF encaminhou a investigação para que o órgão no Amazonas desse continuidade aos trabalhos. Além do Amazonas, há uma investigação da Procuradoria no Rio Grande do Sul, pois parte da pesquisa também foi realizada irregularmente no estado. De acordo com Venâncio, a Conep recebeu denúncias de que testes foram feitos irregularmente também em Santa Catarina.
“Tudo isso irregular, não houve nenhuma autorização para pesquisa nesses locais todos”, disse.
De acordo com Venâncio, os responsáveis pela pesquisa se recusaram a enviar os documentos solicitados pela Conep, como o relato detalhado de cada óbito, para que se possa avaliar a causa da morte dos pacientes, o relatório do Comitê Independente de Monitoramento de Dados, que é formado por pessoas de fora da instituição e sem vínculos com a instituição. Segundo Venâncio, o relatório encaminhado foi assinado por uma funcionária da empresa patrocinadora, o que seria irregular.
“Se a pesquisa não respeitou os currículos científicos necessários, você teve uma pesquisa com 200 mortes e sem comprovar nada concretamente”, diz Venâncio. “A segunda possibilidade é digamos que o que o pesquisador está falando e a substância seja maravilhosa e evitou 90% dos óbitos, ele tinha obrigação de ter interrompido a pesquisa e transferido as pessoas que estavam no grupo de placebo para o grupo da substância. Por que ficar assistindo tantas mortes por placebo?”
Conforme Venâncio, tanto da hipótese da pesquisa estar errada ou estar correta, houve um erro gravíssimo, porque não poderia ter ocorrido um número tão expressivo de mortes. Antes dessa pesquisa, onde estimativas apontam cerca de 200 óbitos, o maior número de mortes que havia sido registrado em estudos dessa natureza era de pouco mais de 20.
Ainda conforme Venâncio, a pesquisa foi aprovada para ser feita em um lugar. “Mas ele levou a pesquisa a sete cidades do Amazonas e agora nós sabemos que ele também fez em Porto Alegre, Gramado e Chapecó. Eu tenho uma representação detalhada daqui do Amazonas, mas existem muitas versões, até do número de óbitos”, afirmou o coordenador.
Em relação aos dos termos de consentimento, segundo a Conep, um paciente recebeu a substância para continuar tomando por mais 15 dias após a internação. “E depois não teve nem exame para saber o resultado. Ou seja, eles não estão usando como pesquisa e sim como tratamento, porque pesquisa você deve saber o resultado, ver se tem reação, alertar que não pode engravidar, enfim. Isso não é pesquisa, é tratamento. E a substância não tem registro da Anvisa, ou seja, totalmente irregular”, disse.
Zenite Gonzaga Mota, paciente que morreu após o tratamento com proxalutamida — Foto: Arquivo pessoal
O pedido para realização do estudo foi realizado sob a responsabilidade do médico Flávio Cadegiani e a pesquisa com proxalutamida no Amazonas foi facilitada pela empresa Samel, com início em fevereiro deste ano. Na época, diretores da empresa divulgaram amplamente as visitas aos municípios do interior do Amazonas para apresentar a nova técnica e iniciar os estudos com pelo menos 600 voluntários de Manaus, Itacoatiara, Maués e Parintins. A pesquisa usou placebo em alguns pacientes e proxalutamida em outros, para depois comparar a eficácia entre os métodos.
Uma das vítimas do estudo é Zenite Gonzaga, idosa de 71 anos, que morreu após participar do tratamento com proxalutamida no Amazonas para tratar a Covid-19. A idosa foi internada em fevereiro, em Itacoatiara, a 176 quilômetros de Manaus. Após mais de 30 dias internada recebendo esse medicamento, ela foi transferida Manaus, e morreu um dia depois, em 13 de março.
O que diz o médico responsável?
Em nota, o médico Flávio Cadegiani, responsável pelo estudo, afirmou que as declarações dos pesquisadores da Unesco estão “baseadas em premissas falsas, em narrativas”.
Em relação 200 mortes que teriam ocorrido no estudo da proxalutamida, no Amazonas, o médico afirma que “é de deixar claro que não houve nenhum óbito suspeito pela Conep, nenhuma circunstância suspeita”. O médico afirma que um parecer emitido pelo Sistema CEP/Conep APROVOU todos os procedimentos e relatórios acerca do estudo no Amazonas (Parecer nº 4.690.573).
“Esse parecer foi desconsiderado pela Conep sem qualquer justificativa, sendo emitido outro. Mas, de qualquer forma, é certo que não houve nenhuma morte suspeita, uma vez que, após esse estudo, foram aprovados outros 26 estudos com proxalutamida. Afinal, se houvesse qualquer mínima suspeita de que a proxalutamida provocou a morte de alguém, a CONEP jamais teria aprovado absolutamente qualquer outro estudo com a droga”, diz a nota.
A nota ainda afirma que: “a ocorrência de óbitos foi reportada apenas uma vez no sistema Plataforma Brasil, no total de 200, todos em decorrência da Covid-19. Nunca houve divergência no número total de óbitos, o que houve foi a apresentação de resultados antes mesmo do fim do estudo, em cumprimento a preceitos éticos que determinam a comunicação imediata dos “resultados e/ou achados da pesquisa, sempre que estes puderem contribuir para a melhoria das condições de vida da coletividade” (Resolução CNS 466/2012), e, portanto, de achados com grande potencial promissor para evitar óbitos e agravamento em face da Covid-19″.
Em relação ao estudo ter sido realizado no Amazonas e não em Brasília, o médico afirma que: “O estudo aprovado pela CONEP não previa nenhum hospital em Brasília. Isso não passa de mais uma narrativa do Coordenador da CONEP, que sequer citou o nome do suposto hospital. O estudo foi aprovado par ser realizado em hospitais no Brasil, ficando em aberto o campo para o rol desses hospitais (fls. 8 do parecer de aprovação), os quais seriam inseridos oportunamente, não tendo sido fixado qualquer prazo para tanto”.
Cadegiani afirma que sobre as alegações de que as informações sobre óbitos não foram prestadas no prazo, estas também não correspondem à verdade: “Conforme protocolo aprovado pela CONEP, o compromisso ético seria comunicar eventos adversos sérios em 24 horas, mas apenas os decorrentes da medicação em teste. No entanto, nenhum evento adverso sério decorreu da medicação em teste”, diz.
Sobre a alegação de que as informações disponibilizadas sobre os óbitos não apresentam “análise crítica” que permita compreender a causa mortis direta, a nota afirma que “a análise foi feita de forma minuciosa tanto pelos pesquisadores quanto pelo Comitê Independente de Monitoramento de Dados. Os óbitos se deram em decorrência da Covid-19, e não por conta da medicação do estudo, que não substituiu o protocolo padrão dos hospitais. A medicação experimental apenas se somou à medicação normal, padrão de cada hospital”.
Ainda na nota, o médico afirma que a pesquisa obedeceu a todos os princípios éticos e atendeu as formalidades necessárias. Os pesquisadores jamais se recusaram a prestar qualquer esclarecimento à Conep e sempre atenderam as exigências da comissão.
Sobre a alegação de que os testes deveriam ser interrompidos, o médico afirma no texto que “a interrupção somente ocorreria se os óbitos fossem devidos ao uso da medicação em estudo”. E que uma comissão independente, aprovada pela Conep, acompanhava “os eventos adversos graves e óbitos, e recomendou a interrupção no momento adequado, e não em razão dos óbitos, uma vez que, um total de zero óbitos ou eventos adversos graves foi associada à droga”, disse.
Por fim, o médico afirma que o coordenador da Conep tentou invalidar a pesquisa “após a demonstração de interesse do Presidente Jair Bolsonaro pela proxalutamida”.
O que é proxalutamida
A proxalutamida é uma droga experimental estudada para aplicação em pacientes com alguns tipos de câncer, como o de próstata, pois bloqueia a ação de hormônios masculinos. Ela tem sido defendida pelo presidente Jair Bolsonaro contra a Covid-19, assim como fez anteriormente com a cloroquina e a ivermectina, remédios sem eficácia contra o coronavírus.
No dia 2 de setembro, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), suspendeu, de maneira cautelar, a autorização de importação e uso de proxalutamida no país. Segundo o órgão, há indícios de que os documentos que faziam a Agência autorizar a importação tenham sido fraudados.