Luiza Dulci
Governo cria uma modalidade de trabalho provisória, de três anos, para jovens entre 18 e 29 anos, desprovida de qualquer proteção trabalhista garantida na Lei da Aprendizagem
Vivemos um período bastante contraditório em nosso país. Não há sequer um dia de descanso em relação aos desmontes de políticas públicas e ataques à democracia e aos direitos. No entanto, não vemos muitos sinais de que a conjuntura mudará pra valer, que o impeachment será colocado em votação, que a corrupção e as mortes provocadas pelo descaso do governo com a pandemia da Covid-19 serão cobradas pelos poderes instituídos. As semanas são cheias de eventos e episódios pandêmicos, polêmicos e corruptos, mas pouco (ou nada) muda na relação entre as forças políticas. O que muda, aí sim, é a vida das pessoas, que está cada dia pior.
É nesse contexto de extrema vulnerabilidade socioeconômica, aumento da pobreza, da desigualdade e da fome que o governo Bolsonaro pretende realizar mais uma rodada de reforma trabalhista, entoando a velha falácia que associa retirada de direitos com aumento do emprego. Como se não bastassem os mais de 14,8 milhões de desempregados, 20,8 milhões de desocupados, 33,2 milhões de subutilizados e os 7 milhões de subocupados no mercado de trabalho brasileiro, o governo quer mais cortes e menos direitos. As mudanças estão expressas na Medida Provisória (MP 1.045/2021) enviada à Câmara dos Deputados em abril de 2021, piorada e agravada sobremaneira com o relatório apresentado pelo deputado Christino Aureo (PP/RJ).
A MP visa instituir o Novo Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda para o enfrentamento das consequências da emergência de saúde pública decorrentes do novo coronavírus (Covid-19) e dispõe sobre outras medidas que terão incidência nas relações de trabalho. Dos muitos impactos negativos sobre a vida e os trabalhadores, destacamos a seguir os efeitos sobre as juventudes em particular.
Duas mudanças principais são a criação do Programa Primeira Oportunidade e Reinserção no Emprego (Priore) e do Regime Especial de Trabalho Incentivado, Qualificação e Inclusão Produtiva (Requip). O primeiro reedita as propostas da “carteira verde-amarela”, já rejeitada pela sociedade e pelo parlamento brasileiro. Já o segundo, cria uma modalidade de trabalho provisória, de três anos, para jovens entre 18 a 29 anos, desprovida de qualquer proteção trabalhista garantida na Lei da Aprendizagem. Ainda pior, como apontou a nota pública de procuradores do Ministério Público de Pernambuco, a MP não cria qualquer mecanismo para proteger os aprendizes de hoje: ou seja, as empresas poderão dispensar seus atuais empregados e contratar outros via Requip. No caso da aprendizagem, a lei atual prevê uma cota mínima de 5% (e máxima de 15%) de mão de obra que demanda qualificação profissional. Com as mudanças propostas será possível substituir a contratação de aprendizes, em condição de trabalho especial e protegida, por formas de contratação desprovidas de direitos. Os novos contratados pelo Requip contarão com uma bolsa de até R$ 220 mensais custeada pelo governo federal e uma Bolsa de Incentivo à Qualificação (BIQ) de responsabilidade da empresa no mesmo valor. Ou seja, a/o jovem terá remuneração de apenas R$ 440 mensais, referente a um trabalho de 22 horas semanais (meio turno), o que corresponde a cerca de 40% do salário mínimo atual. Não está previsto pagamento de 13º salário, férias (há previsão de recesso de 30 dias, porém não remunerado), FGTS e outros direitos e benefícios. Além disso, a empresa pode ainda deduzir do pagamento da bolsa a base de cálculo do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).
Diante disso, em nota, a Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente do MPT analisa que “esta modalidade de trabalho, Requip, ficará completamente à margem da legislação trabalhista, já que não haverá vínculo empregatício; não haverá salário, mas apenas o pagamento de ‘bônus de inclusão produtiva’ (pago com recursos públicos) e de ‘bolsa de incentivo à qualificação’; não haverá recolhimento previdenciário ou fiscal; não haverá férias, já que trabalhador terá direito apenas a um recesso de 30 dias, parcialmente remunerado; o vale-transporte também será garantido apenas parcialmente”.
Cabe aqui recordar o histórico da Lei da Aprendizagem, instituída ainda no ano 2000 e que remonta à própria Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de 1943. Trata-se, portanto, de um direito conquistado há mais de 80 anos, voltado a formação e capacitação profissional de jovens, garantidos os respectivos direitos e benefícios trabalhistas. Essa proposta veio a ser reafirmada na Constituição Federal de 1988, que reconheceu a profissionalização como um dos direitos fundamentais de todo adolescente e jovem em seu artigo nº 227, a ser garantido com absoluta prioridade, observadas as proteções estabelecidas no artigo 7º, inciso XXXIII, na redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998. Por sua vez, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, traz o Princípio da Proteção Integral, evidenciando a preocupação do Brasil em garantir a formação profissional de adolescentes e jovens, desde que não impeça ou prejudique o acesso, a frequência e o sucesso escolar. Finalmente, o Estatuto da Juventude, de 2013, reafirma o compromisso com o estímulo à aprendizagem e o direito ao trabalho para as juventudes brasileiras.
Como é possível constatar, a MP traz mudanças profundas nas formas de contratação e nas relações de trabalho de conquistas históricas. São ataques explícitos sobre os direitos das juventudes, em especial dos segmentos mais pobres da população, particularmente afetados pela matriz de desigualdades socioeconômicas que caracteriza nossa sociedade.
Luiza Dulci é militante da JPT, integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo. É economista (UFMG), mestre em Sociologia (UFRJ) e doutoranda em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura (UFRRJ)