No Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, PNB Online conversa com pesquisadora sobre problemáticas da mídia ao tratar o tema.
Nos primeiros quatro meses deste ano, 331 ocorrências de estupro de vulneráveis foram registradas em Mato Grosso. O número representa quase 30% do total registrado no ano de 2020, quando 1.142 ocorrências foram registradas. O abuso sexual contra crianças e adolescentes menores de 14 anos ganha destaque nesta terça-feira, 18 de maio, em lembrança ao Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, instituído no ano de 2000.
“Se, por um lado, é importante que temáticas como a pedofilia e o abuso sexual de crianças tenham visibilidade na sociedade, por outro, é muito preocupante o modo como o mídia aborda este tema”, é o que diz a pesquisadora Julianne Caju, jornalista e mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e atualmente doutoranda no Programa de Pós-Graduação Estudos de Cultura Contemporânea (PPGECCO) da UFMT.
No ano de 2017, Julianne publicou sua dissertação de mestrado que teve o tema “Discursos sobre a temática do abuso sexual de crianças e da pedofilia na mídia escrita”, que analisou a emergência dos discursos veiculados na mídia impressa sobre o tema da pedofilia e do abuso sexual contra crianças e adolescentes, em 221 peças jornalísticas publicadas no jornal Folha de São Paulo sobre os temas pedofilia e “abuso sexual infantil”, no período de 1976 a 1999.
Em entrevista especial para o PNB Online, a jornalista revisita sua pesquisa e a importância de como a mídia trata este tema tão delicado. Confira os principais trechos:
PNB Online – Como foi a evolução da abordagem da mídia sobre o tema nos anos que você utilizou para realizar a sua dissertação?
Julianne Caju – A mídia é um importante ator social na construção de problemas sociais. O tema da pedofilia era silenciado na sociedade e na mídia até a década de 1980, foi adentrando com pouca intensidade no jornal Folha de S. Paulo a partir da década de 1970, se intensificando na década de 1980, até explodir na década de 1990. Se, por um lado, é importante que temáticas como a pedofilia e o abuso sexual de crianças tenham visibilidade na sociedade, por outro, é muito preocupante o modo como a mídia aborda este tema.
Em geral, a mídia é sensacionalista quando aborda temáticas dos direitos da criança, o que constatamos também quando a FSP abordou o abuso sexual de crianças e a pedofilia. Um importante achado da pesquisa foi que a FSP preferiu usar o termo pedofilia para um leque de violências sexuais: abuso sexual de crianças, exploração sexual de crianças, pornografia infantil na internet, etc. O problema é que rotular toda e qualquer violência sexual contra crianças como pedofilia não ajuda no enfrentamento da problemática, pelo contrário, pois a maioria das violências sexuais contra crianças tem uma causalidade muito mais vinculada a questões de âmbito cultural, como o machismo, a misoginia e a prevalência de valores e práticas patriarcais. Colocar todo abuso e toda violência contra criança no mesmo “bolo” ou chamar tudo de pedofilia não resolve os problemas que muitas crianças e adolescentes sofrem.
PNB Online – Houve alguma mudança na forma como a mídia abordou o tema após o ano 2000, quando foi instituído o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes?
Julianne – Embora a pesquisa não tenha feito análises dos anos posteriores a 1999, podemos observar que a mídia com frequência usa imagem da infância e das crianças com fins dramáticos e sensacionalistas. Histórias envolvendo crianças em situação de pedofilia ou de abuso sexual são altamente comoventes no mundo ocidental contemporâneo e provocam tamanha convulsão e repulsa pelo o que é noticiado que parece que a fidedignidade sobre o ocorrido fica em segundo plano.
Exemplo disso é um caso ocorrido em maio de 2015, numa escola pública da cidade de Rondonópolis. Um suposto abuso sexual contra uma criança de 6 anos foi amplamente divulgado pela imprensa local cuja notícia foi construída a partir do boletim de ocorrência registrado pela mãe da criança e do resultado de um laudo médico. As matérias tiveram títulos sensacionalistas e foram divulgados o nome e fotos da escola pública em que supostamente teria ocorrido o abuso, associando-a à imagem de uma instituição que não protege seus alunos. A imprensa noticiou o suposto abuso sexual como um fato dado, ocorrido e comprovado, porém não continuou a investigação. Expôs os alunos, os professores e a direção da escola e a própria instituição escolar pública. Além disso, promoveu medo e insegurança nos pais dos alunos daquela instituição de ensino.
As análises das peças da Folha que trataram da temática da pedofilia nos mostraram que mais de 97% das peças não trouxeram informações esclarecedoras sobre a temática. A Folha mais produziu notícias-escandâlos do que contribuiu para o enfrentamento da questão sobre abuso e violência sexual contra criança e adolescente.
PNB Online – Quais são as problemáticas ainda cometidas na mídia ao tratar as questões de abuso sexual de menores de idade?
Julianne – Apreendemos que na emergência do tema do abuso sexual de crianças na FSP houve uma generalização de denominar tudo como pedofilia. Tal generalização acaba gerando pânico e distorções em várias outras questões na sociedade. Como a pedofilia é algo relacionado a um transtorno, a uma doença, essa generalização retira o caráter cultural envolvido na complexa questão que é o abuso sexual contra crianças e adolescentes. A maioria dos casos de abuso sexual contra crianças não são cometidos por pedófilos.
Identificamos que a abordagem das 221 peças produzidas entre os anos de 1976 e 1999, que foram analisadas nesta pesquisa, são via confusões conceituais. Elas trazem no título o termo pedofilia, mas no corpo do texto trazem o termo pornografia infantil, ou turismo sexual infantil, ou incesto, ou tortura, ou sequestro, dentre outros tipos de abuso e/ou violência contra crianças e adolescentes. Isso foi constatado em uma das categorias de análise em que quase 70% das peças tinham o termo pedofilia no título, embora no corpo do texto tratava das mais diversas situações de abuso ou violência sexual de crianças e adolescentes. Ou seja, quase tudo, ou tudo foi noticiado como pedofilia. Tais peças serviram mais como uma isca para atrair a atenção do leitor, do que propriamente para falar estritamente de situações que implicam em pedofilia.
Uma outra constatação que nos chamou muita atenção é o agendamento de pautas sobre infância e juventude associadas às questões de “riscos” e sexualidade. Podemos afirmar, a partir das pesquisas que analisaram esta associação na Folha de São Paulo e da nossa pesquisa, que há uma frequência de produção no jornal de “problemáticas” da infância e da juventude. Ficou evidente que as pautas alternaram-se com os temas “meninos de rua”, “prostituição infanto-juvenil”, “trabalho infanto-juvenil”, “gravidez na adolescência” e desde o ano de 1990 o tema pedofilia vem ganhando muito espaço nas produções da Folha. Isso nos indica uma espetacularização de “problemáticas “da infância e da juventude brasileira, que há uma forte mobilização midiática para produzir e reproduzir notícias sobre as mazelas da infância e juventude. Ao usar retóricas que enfatizam a dramaticidade da infância e da juventude associada à violência sexual, o jornal reforça que estas temáticas são problemas sociais. Mas não contribui verdadeiramente para debates efetivos e caminhos eficientes para se combater e enfrentar as causas das violências e abusos que crianças e adolescentes sofrem.
PNB Online – A divulgação das situações dos crimes de abuso sexual infantil na mídia resulta em uma procura maior nas denúncias?
Julianne – Nos últimos anos observamos que o abuso sexual de crianças e adolescentes tem sido alvo de campanhas. Nos chamou a atenção por que o tema pedofilia ocupa tanto destaque em campanhas e na mídia, dentre tantas outras temáticas que são tão importantes, mas não recebem muita atenção no debate público, como por exemplo, o déficit de vagas em creche, ou o direito das crianças e dos adolescentes ao lazer e a cultura. Uma das indagações que começamos a fazer é: por que a imagem da criança abusada provoca mais comoção da qual a mídia se nutre? Entendemos e defendemos que toda criança deve ser protegida contra qualquer tipo de violência e/ou abuso. Isso é inegável e indiscutível.
Mas o aumento substancial da noticiabilidade destes temas nas últimas duas décadas teria contribuído para o enfrentamento desta problemática na sociedade brasileira e para uma proteção efetiva das crianças e dos adolescentes ou o dramatismo que estas questões envolvem teria sido usado para alimentar um tratamento sensacionalista desta temática?
Os referenciais teóricos estudados, bem como a metodologia utilizada para o desenvolvimento desta pesquisa nos possibilitou mais levantar problematizações do que necessariamente trazer verdades ou impor respostas. A análise de discursos sobre a pedofilia na mídia decorre da problematização sobre o modo sensacionalista como este tema vem sendo abordado na mídia.
É importante apreendermos os sentidos que foram sendo construídos em torno do abuso sexual de crianças, pois isso vai orientar o seu enfrentamento. Se na sociedade circula o sentido (equivocado) de que o abuso sexual de crianças decorre da pedofilia, só nos restaria “caçar” pedófilos, já que isto é enquadrado como uma patologia do abusador. Mas o abuso sexual de crianças não decorre somente da ação de “pedófilos”, mas, em boa parte, por fatores culturais que admitem e naturalizam este abuso.
A questão é que existem diferentes tipos de abusadores de crianças e a maioria dos abusadores não são pedófilos. A maioria dos abusadores são pessoas próximas da criança: pais, padrasto, tios, vizinhos. Muito triste tudo isso. E por isso precisamos compreender, apreender e analisar mais as formas como nossa sociedade é constituída e quais ressonâncias são originárias a partir dessa constituição.