Quando um vazamento de petróleo de grandes proporções afeta um país, um plano de contingência deve ser colocado em ação.
Apesar de ter seu próprio plano previsto em lei —o PNC (Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo)—, e de terem se passado quase 50 dias desde a primeira vez em que o petróleo foi visto em uma praia brasileira, o Brasil não o acionou.
O plano, criado em 2013, estabelece a estrutura organizacional de resposta do governo ao acidente, atribuindo responsabilidades a diversos órgãos, estabelecendo uma metodologia de resposta, dando uma estrutura e organização financeiras e permitindo que os Estados sejam chamados ao grupo para participar das decisões ou acompanhá-las.
Em outras palavras, estabelece uma organização na resposta do país à crise.
Nesta sexta-feira (18/10), o Ministério Público Federal (MPF) dos nove Estados do Nordeste moveu uma ação requerendo que a Justiça Federal obrigue a União a acionar em 24 horas o PNC com multa diária de R$ 1 milhão em caso de descumprimento. Na ação, o MPF afirma que a União tem sido “omissa, inerte, ineficiente e ineficaz”.
A BBC News Brasil enviou perguntas na manhã desta sexta ao Ministério do Meio Ambiente sobre o Plano Nacional de Contingência e o trabalho de prevenção e limpeza das praias do nordeste, mas não recebeu respostas até a publicação desta reportagem.
Avaliação e acompanhamento
Por enquanto, o governo do presidente Jair Bolsonaro criou um Grupo de Acompanhamento e Avaliação (GAA), formado pelo Ibama, a Agência Nacional de Petróleo (ANP) e a Marinha, sem fazer menção ao Plano Nacional de Contingência.
Esse grupo de acompanhamento está previsto no PNC, e duas de suas atribuições são “avaliar se o incidente de poluição por óleo é de significância nacional” e “acionar o PNC em caso de incidente de poluição por óleo de significância nacional”.
“Até agora não se falou oficialmente em acionamento do PNC. Não temos outro instrumento em lei para conter esse tipo de dano, que certamente é de significância nacional. Temos que nos munir de todas as pessoas capazes de conter esse tipo de dano, e o PNC é o instrumento eficiente para esse tipo de situação”, diz a professora de Direito Marítimo Ingrid Zanella, da Universidade Federal de Pernambuco.
Além disso, lembra ela, o Brasil é signatário de uma convenção internacional sobre Preparo, Resposta e Cooperação em caso de Poluição por Óleo, de 1990. Para Zanella, “se o Brasil for inerte, pode até ser responsabilizado internacionalmente”. “O Brasil é vítima agora. Mas quando falamos em responsabilidade ambiental, não agir é igual a poluir.”
“Uma vez que o óleo é detectado na praia, tem que acionar o PNC. Para isso que você tem um plano de contingência. Tem que esperar o que para finalmente alguém achar que foi importante?”, questiona o cientista Emilio Lebre La Rovere, professor do COPPE da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador do Laboratório Interdisciplinar de Meio Ambiente da universidade.
“Com a estrutura do PNC, o governo poderia ter feito uma intervenção anterior. Não iria resolver tudo, mas não impede que a gente faça essa crítica.” Na época da elaboração do Plano Nacional de Contingência no Brasil, o laboratório que La Rovere coordena foi contratado pelo Ministério do Meio Ambiente para fazer o levantamento sobre planos de contingência internacionais.
O oceanógrafo e diretor-geral da ONG Oceana, Ademilson Zamboni, concorda. “Como foi acontecendo aos poucos e com tempo para perceber que alguma coisa errada havia acontecido, era hora de prestar atenção e acionar o PNC. O mais importante é que existem atribuições claras ali dentro. Existe um desenho com autoridades e atribuições para serem cumpridas.”
Uma parte do plano fala que é o poluidor quem deve comunicar incidentes de poluição por óleo. Nesse caso, não houve qualquer alerta do poluidor, ainda desconhecido. Assim, é o Grupo de Acompanhamento e Avaliação quem deveria acionar o PNC.
“Era o momento de olhar o que nós temos na mão. Não interessa se é uma coisa extraordinária ou não. Ninguém falou sobre isso, parece que foi algo que não existia”, diz Zamboni.
Embora o governo atual não tenha acionado o plano agora, também há influência de falhas de gestões anteriores. Uma das medidas depois da aprovação da lei seria a publicação de um manual do PNC, que nunca foi publicado —”uma falha” que impede que se saiba “como executar de forma prática o plano”, segundo Zanella.
Apesar disso, vários estudos foram feitos para embasar o plano — documentos que mostram, por exemplo, a sensibilidade do litoral ao óleo e mapeamentos que mostram quais áreas devem ser protegidas prioritariamente em casos como esses.
A oceanógrafa e professora da Universidade Federal de Pernambuco Monica Ferreira da Costa diz que “o litoral do Brasil é todo mapeado sobre sua sensibilidade à poluição por óleo” e que temos “documentos de excelente qualidade para isso”. “Um país que estava com informação na mão não podia deixar esse espalhamento acontecer. Em um mês, teríamos capacidade de proteger muitos ambientes.”
Zanella destaca também que, sem o PNC acionado, a estrutura de resposta atual do governo provoca falta de comunicação entre governo federal e Estados.
Coordenação entre União e Estados
No dia 30 de agosto, uma sexta-feira, turistas começaram a ligar para a secretaria do Meio Ambiente de Conde, município a 30km de João Pessoa, na Paraíba. “Tinha gente que saía do mar todo sujo. Até na praia de naturismo, as pessoas entravam nuas e saíam cobertas de óleo”, lembra Vesjudith Moreira, secretária do Meio Ambiente da cidade. “Foi um fim de semana de crueldade.”
Ela conta ter acionado a Capitania dos Portos, o Sudema (Superintendência de Administração do Meio Ambiente da Paraíba), o Ibama e a Polícia Federal, que coletou, no fim de semana, o óleo para a análise. Segundo ela, o Ibama, órgão federal de meio ambiente, não respondeu de imediato —”demoraram a vir e dar importância para esse problema e tomar providência”, afirma.
Desde aquele dia, foi encontrado petróleo em mais 186 praias — o número foi atualizado pelo Ibama nesta quinta-feira. O governo federal diz que tem agido desde o dia 2 de setembro.
No dia 5 de outubro, Bolsonaro publicou uma portaria pedindo investigação sobre o acidente. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, visitou a região em 7 de outubro.
O Ibama tem monitorado as praias atingidas e a limpeza. Funcionários da Petrobras foram chamados para ajudar. E a Marinha diz empregar 1.583 militares, cinco navios, uma aeronave, e embarcações e viaturas no trabalho de inspeção e patrulhas.
A falta de articulação entre governo federal e Estados gerou ruídos. Para o secretário de Meio Ambiente de Pernambuco, José Bertotti, o governo federal “estava atuando por demanda na emergência”.
“Essa ação precisa ser coordenada e dirigida pelo governo federal, não pode ser demanda dos Estados. Isso está muito solto.” Na “ausência de ação federal”, diz ele, foram os Estados que convocaram uma reunião entre eles com a presença do Ibama, representando o governo federal.
Em Sergipe, o Ministério Público entrou com pedidos para que o governo federal instalasse barreiras de contenção em todos os rios. A União alegou que as boias não são efetivas, o MPF ouviu técnicos sobre as possibilidades de contenção e a disputa continua.
“Em termos de proteção das áreas sensíveis e vulneráveis, não é nem que a União e o Ibama demoraram, é que não começaram. Eles se limitam a fazer sobrevoos na costa e ficam fazendo limpezas na praia a ritmo lento”, diz o procurador Ramiro Rockenback do Ministério Público Federal de Sergipe.
“Provavelmente, por não estar querendo dispor de recursos financeiros que são absolutamente necessários, a União entra num jogo de sorte e azar. Simplesmente não põe os planos em funcionamento e torce para que essas manchas se movimentem para outro lugar e a gente fique livre disso.”
Ainda não se sabe qual é a origem do petróleo e o governo federal diz que, por se tratar de petróleo que fica em uma camada sub-superficial, barreiras de contenção podem não ser efetivas.