CANCLINI, N.G. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização, Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995. 266 p.
O propósito do livro é entender como as mudanças na maneira de consumir alteram as possibilidades e as formas de exercer a cidadania. Muitas das perguntas próprias dos cidadãos, recebem sua resposta mais através do consumo privado de bens e dos meios de comunicação de massa do que nas regras abstratas da democracia ou pela participação coletiva em espaços públicos. (p. 13). Através da diferenciação entre os conceitos de internacionalização – entendido aqui como a abertura das fronteiras geográficas de cada sociedade para incorporar bens materiais e simbólicos de outras – e de globalização – que supõe interação funcional de atividades econômicas e culturais dispersas, bens e serviços gerados por um sistema com muitos centros – percebe-se como que através do consumo pode-se estabelecer as identidades e construir a diferença. Ao enfocar a globalização, o livro pretende participar de dois movimentos atuais de suspeita: o daqueles que não crêem que o global se apresenta como substituto do local, e o dos que não acreditam que o modo neoliberal de nos globalizarmos seja o único possível. Os meios eletrônicos que fizeram irromper as massas populares na esfera pública foram deslocando o desempenho da cidadania em direção às práticas de consumo. No momento atual, a ponto de sairmos do século XX, as sociedades se reorganizam para fazer-nos consumidores do século XXI e, como cidadãos, levar-nos de volta para o século XVIII. Apesar da imposição da concepção neoliberal de globalização, devemos nos perguntar, se ao consumirmos não estamos fazendo algo que sustenta, nutre e, até certo ponto, constitui uma nova maneira de ser cidadãos. Lembrar que nós cidadãos também somos consumidores leva a descobrir na diversificação dos gostos uma das bases estéticas que justificam a concepção democrática da cidadania. (p. 34). A globalização pode ser resumida como a passagem das identidades modernas – territoriais e quase sempre monolingüísticas – a outras que poderiam ser chamadas de pós-modernas – transterritoriais e multilingüísticas, que operam mediante a produção industrial de cultura, sua comunicação tecnológica e pelo consumo diferido e segmentado dos bens. (p. 35). Em contraste com a noção jurídica de cidadania, desenvolvem-se formas heterogêneas de pertencimento, cujas redes se entrelaçam com as do consumo: “”um espaço de lutas, um terreno de memórias diferentes e um encontro de vozes desiguais”. ( p.37). propõe uma leitura em tom de conversa sobre o que significa ser cidadãos em meio às mudanças culturais que alteram a relação entre público e privado e uma definição de consumo, numa perspectiva que compreende sua racionalidade econômica. Contrapõe o enfoque marxista do consumo com uma teoria mais complexa que revela que no consumo se manifesta também uma racionalidade sócio-política interativa. Aponta a importância política do consumo, ressaltando que uma fórmula empregada na campanha eleitoral “o voto prestação” exibe a cumplicidade que existe hoje entre consumo e cidadania. ( p.55). Relaciona alguns estudos antropológicos sobre rituais com a questão sobre a suposta irracionalidade dos consumidores, mostrando o consumo como “um processo ritual cuja função primária consiste em dar sentido ao fluxo rudimentar dos acontecimentos”, e por isso as mercadorias servem para pensar. Neste sentido considera o consumo como um processo em que os desejos se transformam em chamadas e atos socialmente regulados. (p. 59). Referindo-se à crítica ao consumo como lugar irrefletido e de gastos inúteis, aponta alguns requisitos para que se possa articular o consumo com um exercício refletido da cidadania, os quais denomina ações políticas. Observa que vincular o consumo com a cidadania requer ensaiar um reposicionamento do mercado na sociedade, tentar a reconquista imaginativa dos espaços públicos, do interesse pelo público. Assim o consumo se mostrará como um lugar de valor cognitivo, útil para pensar e atuar significativa e renovadoramente, na vida social. (p. 68). Ao se reportar à globalização cultural na cidade do México, enfoca três problemas interrelacionados, que mostram a vinculação entre a crise das mega-cidades e a crise do conhecimento social. Um estudo realizado no início da década de 90, sobre o consumo cultural na Cidade do México, através de uma enquete feita em 1500 domicílios, e outro sobre o II Festival da Cidade do México, em 1990, levaram o autor a especificar algumas tendências encontradas na enquete geral sobre o consumo no Distrito Federal. O festival da cidade reproduz as segmentações e segregações da população engendradas pela desigualdade de acesso ao capital, à educação e à distribuição residencial dos habitantes. (p.81). A pesquisa concluiu que a cidade, assim como o festival, existe mais para o governo e para a imprensa do que para os cidadãos. No capítulo sobre as políticas culturais urbanas na América Latina apresenta o resultado de algumas pesquisas, sobre comportamentos sociais e simbólicos, efetuadas nas Cidades do México, São Paulo e Buenos Aires, que induzem ao replanejamento do que deveriam ser as políticas culturais e mostra um exame dos desafios que, surgem para as políticas culturais, situando-os em torno de duas mudanças: a) a dissolução das monoidentidades; b) a perda de peso e o reposicionamento das culturas tradicionais-locais (de elite e populares) diante do avanço dos meios de comunicação. A metrópole cria padrões de uniformidade, remodela os hábitos locais e os subordina a estilos ‘modernos’ de trabalho, se vestir e se distrair, viver numa grande cidade significa para a maioria dos migrantes o acesso a determinados serviços básicos. Contudo, a homogeneização do consumo e da sociedade, propiciada pelo formato comum com que esses serviços se organizam não anula as particularidades. (p.104). O resultado da pesquisa sobre consumo cultural realizada na Cidade do México, mostra também a perda de uso público dos lugares emblemáticos, através de uma progressiva substituição da assistência a espetáculos e encontros em lugares públicos pelo consumo do rádio, televisão e vídeo dentro do lar. (p. 111). Propõe uma discussão sobre o estado atual do multiculturalismo e seu funcionamento nos estudos culturais urbanos. A preocupação é com “o que estamos fazendo ao narrar o multiculturalismo e qual o significado dessa operação nas sociedades contemporâneas”. (p. 119). A partir de alguns comentários acerca do contraposicionamento entre construtivismo e fundamentalismo sugere como tarefa-chave dos estudos culturais: entender como as indústrias culturais e a massificação urbana se articulam para preservar culturas locais e, ao mesmo tempo, fomentar uma maior abertura e transnacionalização dessas culturas. (p.124). Conclui, através de uma pergunta: Em nossas metrópoles dominadas pela desconexão, atomização e falta de sentido podem existir histórias? Afirmando que a identidade é uma construção que se narra, aborda como a transnacionalização das tecnologias e da comercialização de bens culturais diminuiu a importância dos referentes tradicionais de identidade. Responde à pergunta: onde reside a identidade, com que meios ela é produzida e renovada em fins do século XX, confrontando o modo como a antropologia clássica definiu a identidade com as condições com que esta se constitui em nossos dias. Neste sentido afirma que só uma ciência social – para a qual se tornem visíveis a heterogeneidade, a coexistência de vários códigos simbólicos num mesmo grupo e até em um só sujeito, bem como os empréstimos e transações interculturais – será capaz de dizer algo significativo sobre os processos identificadores nesta época de globalização. (p. 142). Sugere que estudar o modo como estão sendo produzidas as relações de continuidade, ruptura e hibridização entre sistemas locais e globais, tradicionais e ultramodernos, do desenvolvimento cultural é, hoje um dos maiores desafios para se repensar a identidade e a cidadania. (p. 151).A reunião anual do GATT de 1993, em Bruxelas, onde ficaram manifestas as divergências sobre política cultural – que pela primeira vez tornaram um assunto prioritário em um debate econômico internacional – é comentada no texto “América Latina e Europa como subúrbios de Hollywood. A análise das discrepâncias que obrigaram a se deixar de fora dos acordos de liberação econômica, o cinema e a televisão, interessa para a compreensão das novas divergências, que opõem as políticas culturais nacionais em tempos de globalização. (p.156). As divergências derivam de duas maneiras de conceber a cultura. Para os EUA, os entretenimentos devem ser tratados como negócio, e as associações de trabalhadores do cinema europeu defendem seu emprego, mas também argumentam que os filmes não são unicamente um bem comercial. Neste sentido a crise do cinema merece ser vista como parte integrante do debate sobre as tensões entre liberdade de mercado, qualidade cultural e modos de vida específicos. A enérgica posição européia na negociação do GATT e as medidas internas de alguns países destinadas a proteger sua produção audiovisual são algumas das poucas forças consistentes que permitem imaginar um mundo simbólico onde nem tudo fique nas mãos de Hollywood ou da CNN. Ao Refletir sobre os novos termos que têm peso no futuro do multiculturalismo mostra como estão se reestruturando as práticas e as preferências culturais em meio às transformações da indústria do cinema, televisão e vídeo. ( p. 175). Analisa a situação do cinema latino-americano, e toma o México para tratar da questão nacional/transnacional, lembrando a chamada “”idade do ouro”” do cinema mexicano, que teve um importante papel de formação na cultura audiovisual de massas e na elaboração simbólica de processos sociais, e sua decadência através da combinação de diversos fatores. A competição do cinema americano que, com maior temática e de recursos formais, bem como altos investimentos e eficiência na distribuição, foi controlando os mercados internacionais. (p. 180/181). Não obstante a integração histórica que os países latino-americanos compartilham, ainda se tem um movimento no sentido de impulsionar um desenvolvimento econômico consistente que permita uma participação de modo competitivo do intercâmbio mundial por esta região. A heterogeneidade multitemporal e multicultural não são mais vistas como obstáculos a serem eliminados, mas sim um dado básico em qualquer programa de desenvolvimento e integração. Contudo, alguns acordos de livre comércio que propiciam uma maior integração econômica pouco se ocupam das possibilidades e dos obstáculos resultantes da desintegração social e pela baixa integração cultural no continente. As dificuldades e os fracassos de integração sócio-econômica são derivados da falta de flexibilidade dos programas de modernização, da incompreensão cultural com que são aplicados e, é claro, da persistência de hábitos discriminatórios em instituição e grupos hegemônicos. (p. 207). As reformas do Estado, estão fazendo muito pouco para abrir a gestão social aos múltiplos estilos de vida e às variadas formas de participação requeridas pelos setores marginalizados. (p. 207). A conclusão, apresentada em forma de sugestão para novas pesquisas é de que os conflitos, hoje não se dão apenas entre classes ou grupos, mas também entre duas tendências culturais: a negociação racional e crítica, de um lado, e o simulacro de um consenso induzido pela mera devoção aos simulacros, do outro – estabelecer de que maneira negociar o compromisso entre ambas as tendências é decisivo para que na sociedade futura predomine ou a participação democrática ou a mediatização autoritária. (p.243). As críticas às ações dos governos e as análises das mudanças socioculturais que o livro apresenta buscam pensar a incapacidade das políticas para absorver o que está acontecendo na sociedade civil. (p. 247). As estruturas burocráticas dos aparelhos culturais do Estado carecem de áreas institucionais dedicadas ao vídeo e a informática, e o que resta do cinema e da produção televisiva, ocupa espaços exíguos. A cultura contemporânea vive na tensão entre a modernização acelerada e as críticas à modernidade. É necessário reformular o papel do Estado e da sociedade civil, repensando ao mesmo tempo as políticas e as formas de participação, o que significa ser cidadãos e consumidores, na tentativa de reconceber o público. Nem subordinada ao Estado, nem dissolvida na sociedade civil, a esfera pública reconstituiu-se simultaneamente na tensão entre ambos. (p. 253). O futuro do multiculturalismo e da participação competitiva das indústrias latino-americanas no mercado mundial depende da combinação desta dupla vertente do público. O Estado precisa ser revitalizado como representante do interesse público, como árbitro ou assegurador das necessidades coletivas de informação, recreação e inovação, garantindo que estas não sejam sempre subordinadas à rentabilidade comercial. (p. 254). O público não abrange somente as atividades estatais ou diretamente ligadas a atores políticos, mas também o conjunto de atores – nacionais e internacionais – capazes de influir na organização do sentido coletivo e nas bases culturais e políticas da ação dos cidadãos. (p. 257). É possível justificar a solidariedade, enquanto dispusermos de uma certa emancipação, ou ao menos tivermos vontade de que a emancipação e a renovação do real continuem fazendo parte da vida social – isto que chamamos de utopia. (p.263/264). A nossa primeira responsabilidade é resgatar as tarefas propriamente culturais de sua dissolução no mercado ou na política: repensar o real e possível, distinguir entre a globalização e a modernização seletiva, reconstruir, a partir da sociedade civil e do Estado, um multiculturalismo democrático”” (p. 265).
(Ver versão mais ampliada em c:\bcdados\resenhas\canclini.doc)