Beatriz Montesanti
Do UOL, em São Paulo
José Pacheco usa um mantra da internet para resumir o estado da educação no Brasil. Desde o início do governo Bolsonaro, o MEC (Ministério da Educação) tem sido sede de anúncios polêmicos, debates ideológicos e alvo de críticas por “paralisia” na gestão.
Em quatro meses de governo, dois ministros já passaram pela pasta e inúmeras medidas anunciadas foram apontadas como problemáticas por especialistas. A mais recente, o corte no orçamento das universidades federais, leva hoje às ruas estudantes e professores de redes públicas e privadas de ensino.
“A educação não é para amadores”, ataca o educador português, conhecido por ser o idealizador da Escola da Ponte, instituição de ensino básico do Porto responsável por promover um modelo pedagógico que valoriza a autonomia na formação de crianças.
Ao UOL, por email, Pacheco comentou sobre os cortes na educação (“a política educacional tem sido pródiga em fake news”), o debate em torno dos cursos de Humanas (“essas áreas são tão importantes como as restantes, numa perspectiva de educação integral do ser humano”), os ataques a Paulo Freire (“como poderá ele sair das escolas, se ele nunca nelas entrou?”), a priorização do método fônico (“obsoleto modo de alfabetizar”) e o projeto de lei para a educação domiciliar (“um salve-se quem puder”).
De nada vale mudar de ministro, se as medidas de política educacional continuarem pautadas nestes critérios e no senso comum. Pouco, ou mesmo nada, há para avaliar nos primeiros dias de governação. Apenas algumas medidas equivocadas, avulsas, sem sentido. Desconstrução da política educacional de governos anteriores.
Pacheco vive no Brasil há pouco mais de uma década. Atualmente, é coordenador do projeto EcoHabitare e integra o conselho do Projeto Âncora, escola de Cotia (Grande de São Paulo) criada aos moldes da Ponte, mas que recentemente passa por uma reformulação. No final do ano passado, a maior parte do corpo docente deixou a instituição e publicou um manifesto nas redes sociais. Segundo Pacheco, o projeto não foi extinto, mas deve “mudar de endereço”.
Leia a entrevista completa:
UOL – Como o senhor vê os cortes no orçamento das universidades federais, recentemente anunciado pelo governo? Eles são necessários para aumentar o investimento na educação básica?
José Pacheco – Esse é mais um falso pretexto, para disfarçar ocultos interesses. A política educacional tem sido pródiga em fake news. Foram contingenciados R$ 29 bilhões do Orçamento federal de 2019. O Ministério da Educação foi o mais afetado. O congelamento de verba chegou a R$ 5,8 bilhões, cerca de 25% do orçamento original. É evidente o “efeito dominó” nos cortes no orçamento das universidades federais: a educação básica [também] será atingida.
Que tipo de impacto pode haver na redução de investimentos em áreas como a filosofia e a sociologia? Qual é a importância dessas disciplinas?
Trata-se de mais uma medida absurda da política educacional. É evidente que essas áreas são tão importantes como as restantes, numa perspectiva de educação integral do ser humano. Mas isso é algo que os ministros ignoram. O fenômeno não é recente, apenas se agravou. Os titulares da pasta da Educação têm sido economistas, engenheiros, jornalistas, advogados, pessoas respeitáveis e conhecedores das suas áreas profissionais, mas que nada sabem da educação, daquela que é necessária, possível e urgente.
Poderemos esperar que um advogado, um astrólogo, um filósofo, ou um economista entenda de educação? É evidente que não! O que se deve esperar é que tenha a humildade de o reconhecer. E que saiba rodear-se de técnicos competentes. E isso é o que não tem acontecido.
Durante uma entrevista no final de abril, o presidente Jair Bolsonaro defendeu a mudança do educador Paulo Freire como patrono da educação no Brasil. O que significa tirar de Freire este título?
Um slogan tem sido reproduzido na mídia e no discurso de certos políticos: “Paulo Freire fora das escolas!”. Mas, como poderá ele sair das escolas, se ele nunca nelas entrou? Em tempo de pós-verdade, abundam freirianos não-praticantes e prevalece a ignorância desses políticos.
O senhor acha que falta metodologia aos professores da educação básica no Brasil? Há relação entre o método de alfabetização utilizado hoje e os baixos resultados da educação brasileira?
Não faltam metodologias. Falta substituir um velho e obsoleto modelo educacional por uma nova construção social de aprendizagem. Cada ser humano aprende a ler numa diversidade de metodologias – há métodos de base silábica, os analítico-sintéticos, os globais de palavras, contos, ou de frases, há abordagens fonomímicas — mas o método fônico continua sendo quase hegemônico.
Num obsoleto modo de alfabetizar, o docente estabelece o “ritmo da aula” e, ao cabo de alguns meses, sugere que os alunos que não acompanhavam o “ritmo da aula”, recebam aulas de “recuperação”. O alfabetizador ignora os estilos de inteligência de cada aluno e despreza o repertório linguístico de cada criança.
Em levantamentos de repertório linguístico efetuados em várias escolas brasileiras, identifiquei crianças que reconheciam (globalmente) mais de cem palavras, como Coca-Cola. Porém, na escola, não liam a palavra. Decoravam letras e balbuciavam sílabas: ca, ce, ci, co, cu, la, le, li, lo, lu.
São assim as aulas “fônicas”. Professor sozinho, na sua sala de aula, no frontal anônimo de aula igual para todos, ignorando que cada aluno apela a diferentes estilos de inteligência e que tem ritmo de aprendizagem próprio, que difere dos restantes. E o analfabetismo prospera.
O que precisa ser melhorado na formação de docentes da educação básica no país? Quais são os principais gargalos?
A formação de professores continua imersa em equívocos, continuamos cativos de um modelo de formação cartesiano, que impede um religar-se essencial. Sabemos que um formador não ensina aquilo que diz, mas transmite aquilo que é, veicula competências de que está investido. Mas, ainda há quem creia que a teoria precede a prática, quem considere o formando como objeto de formação, quando deveria ser tomado como sujeito em autotransformação, no contexto de uma equipe, com um projeto. Prevalecem práticas carentes de comunicação dialógica, culturas de formação individualistas, de competitividade negativa, de que está ausente o trabalho em equipe.
Por que o senhor acha que o movimento Escola sem Partido ganhou tanto espaço e adeptos entre a população brasileira? O senhor vê um viés nas escolas do país? É possível educar sem “ideologia”?
É impossível educar sem ideologia e não se deverá confundir ideologia com doutrinação. Mas a confusão está instalada e aproveitada por políticos sem escrúpulos, para impor a sua… Ideologia. O debate sobre educação é ‘terra de ninguém’, onde abundam disparates como o da Escola sem Partido.
Como o senhor vê o projeto de Jair Bolsonaro para o ensino domiciliar de crianças? Quais são as possíveis vantagens e desvantagens de flexibilizar a legislação sobre o tema?
O “homeschooling” não é solução para os males que afetam o sistema educativo. Entre ouvir aula em casa, ou ter aula na escola, prefiro a aula na escola, dada por professores qualificados e competentes.
O “ensino domiciliar” é um “salve-se quem puder”, estratégia de quem pode “salvar-se” porque tem recursos para tal, mero paliativo de um modelo educacional obsoleto, concebido no século 19 e responsável por um autêntico genocídio educacional. Também será fator de transformação da educação em mercadoria.
Há quem creia que se aprende sozinho, com o auxílio de um tutor de aula, ou da internet. Aprendemos uns com os outros, na atribuição de sentido, na produção de conhecimento, criando vínculos. A aprendizagem acontece na relação, em múltiplos espaços. Pode acontecer num prédio a que é costume dar o nome de “escola”. Mas, também, acontece nos lares, nas bibliotecas públicas, nas igrejas, nas empresas, na internet, nos campos e florestas, nas ruas e praças. E, para que aconteça, não carece de decreto. Não faz sentido legalizar o “ensino domiciliar”. Falemos, antes, de aprendizagem multidomiciliar.
Os primeiros meses de gestão foram marcados por uma paralisação nas atividades do MEC. É possível dimensionar o impacto na educação nacional destes meses sem atividades?
Nada mudou, porque, onde deveriam prevalecer critérios de natureza científica e pedagógica, têm prevalecido critérios de natureza administrativa e burocrática. E de nada vale mudar de ministro, se as medidas de política educacional continuarem pautadas nestes critérios e no senso comum. Pouco, ou mesmo nada, há para avaliar nos primeiros dias de governo. Apenas algumas medidas equivocadas, avulsas, sem sentido. Desconstrução da política educacional de governos anteriores. Algumas medidas desastrosas como a da extinção de secretarias como a da Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão. A educação não é para amadores.
Arriscaria dizer que o melhor ministro será aquele que nada faz, porque não faz besteira.
No ano passado, 27 estados reviram seus currículos de acordo com a BNCC (Base Nacional Curricular Comum) para a educação infantil e fundamental, em um processo liderado pelo MEC. O que esperar da implementação da BNCC?
De quatro em quatro anos, leis são modificadas, ou revogadas, projetos são destruídos, sem que se perceba qual o projeto do novo governo. E não é apenas a BNCC que está em causa. O artigo 205 da Constituição da República determina que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional reitera o princípio que diz que a educação é um direito de todos os cidadãos. Porém, o velho modelo de escola, que o ministério fomenta e as escolas replicam, não logra assegurar esse direito a todo mundo, impede o cumprimento da Constituição e da LDB.
O senhor é um dos grandes defensores da priorização da autonomia das crianças na educação. O que isso significa? Como a autonomia é construída e por que ela é importante?
Seria útil encontrar uma explicação para o fato de o artigo 15º da Lei de Diretrizes e Bases, presente no Plano Nacional da Educação na sua Meta 19, nunca ter sido regulamentado. A regulamentação permitiria às escolas o exercício de autonomia. A Finlândia o fez. Mas o quadro normativo do MEC e das secretarias de educação constitui-se em obstáculo à autonomia das escolas, à melhoria da educação.
Se queremos inovação pedagógica, será de exigir inovação normativa. Assegurar condições de realização pessoal, profissional e social dos professores. Assegurar condições para que a escola seja agregadora de comunidades e fator de promoção de desenvolvimento, com espaços de cooperação e solidariedade, onde todos possam fazer as suas aprendizagens, segundo os seus interesses, capacidades e necessidades.