por Carlos Drummond – 12/04/2018
A obsessão do governo em cortar custos prejudica o programa e a cadeia produtiva de medicamentos, aumentando o risco para a saúde da população pobre
“Mais uma vez a burrice uniu-se à maldade em novo golpe desferido pelo governo no Programa Farmácia Popular”, disparou o senador e ex-ministro da Saúde Humberto Costa, a propósito da revisão dos valores pagos ao setor privado na modalidade Aqui Tem Farmácia Popular, que funciona por meio de uma rede de farmácias privadas.
A iniciativa de Brasília é mais um capítulo da escalada de cortes de gastos da política de austeridade fiscal imposta pela Emenda Constitucional nº 95, de 2016.
O programa comporta aperfeiçoamento, mas promover mudanças radicais em um momento de troca de ministro da Saúde (a substituição de Ricardo Barros por Gilberto Occhi ocorreu na segunda-feira 2) não é oportuno nem sensato e ameaça o atendimento a 20 milhões de brasileiros que recebem medicamentos gratuitos todos os meses, diz o comunicado publicado nos jornais no domingo 25 por sete entidades empresariais do setor de fármacos.
Criado em 2004 no governo Lula, o Farmácia Popular deu prioridade à parcela com orçamento familiar entre 4 e 10 salários mínimos que não utiliza o Sistema Único de Saúde nem possui rendimentos suficientes para adquirir remédios. A modalidade fundamental denominada Programa Farmácia Popular Brasil dispunha de uma rede própria de farmácias coordenada pela renomada Fundação Oswaldo Cruz e foi extinta pelo Ministério da Saúde em dezembro.
Segundo a revista Radis, da Fiocruz, havia 367 farmácias do PFPB em 2017 e 31 mil estabelecimentos comerciais cadastrados no Aqui Tem Farmácia Popular, mas, enquanto a estrutura própria oferecia 112 produtos, a rede privada vendia 42 medicamentos e fraldas geriátricas.
O Farmácia Popular Brasil foi ampliado no governo Dilma Rousseff com a oferta de remédios gratuitos para asma, hipertensão e diabetes na ação denominada Saúde Não Tem Preço. Transcorrido um ano desde o início dessa vertente, o número de internações hospitalares por hipertensão caiu 20%, comparado ao mesmo período do ano anterior, e a quantidade de hospitalizações por crises asmáticas diminuiu 16%, segundo dados do Ministério da Saúde.
O remanescente Aqui Tem Farmácia Popular vende medicamentos a preços até 90% inferiores aos do mercado para hipertensão, diabetes, asma, osteoporose, glaucoma, dislipidemia, doença de Parkinson e rinite, além de anticoncepcionais.
A incompetência do governo é demonstrável. “Com o argumento de fazer economia, eles estão eliminando a possibilidade de correção dos valores de medicamentos há muito tempo cobrados pelo mesmo valor, quando não os reduzem. Isso inviabiliza o programa, pois as farmácias e a indústria deixam de ter interesse”, alerta o senador.
Mais terrível ainda, prossegue, é o fato de que a parcela mais pobre da população ficará sem acesso aos remédios. Grande parte deles é para tratamento contínuo de pacientes crônicos de hipertensão ou diabetes e, se eles deixarem de tomá-los, provavelmente terão uma complicação muito mais cara de ser tratada, a exemplo de insuficiência renal.
“Serão obrigados a fazer uso da diálise peritoneal, um dos procedimentos mais caros, que é feito só pelo setor público, ou terão de se submeter a cirurgia cardíaca e usar stent (prótese para evitar a obstrução completa de um vaso sanguíneo), no caso de um hipertenso que parou de fazer uso do remédio. Então, é uma economia completamente burra que o governo está imaginando que vai fazer”, ressalta Costa.
Dos medicamentos mais vendidos em todas as regiões, 64% atuam sobre o sistema cardiovascular. “Estudos técnicos mostram que a instalação de uma farmácia popular por 100 mil habitantes diminui a taxa de mortalidade por doenças circulatórias em 1,3 morte também por 100 mil habitantes, assim como reduz a probabilidade de óbito do internado em 0,07%”, diz Rafael Oliveira Espinhel, do Conselho da Associação Brasileira do Comércio Farmacêutico (Abcfarma), uma das signatárias do comunicado publicado nos jornais.
Os impactos sobre internações são mais abrangentes: a instalação de uma nova farmácia popular por 100 mil habitantes é capaz de reduzir as taxas de internação também para cada 100 mil habitantes em -3,5 para diabetes, -4,5 para hipertensão, -0,06 por doença de Parkinson, -0,04 por glaucoma e -0,006 por rinite.
Com a queda das taxas de internação diminuíram os gastos unitários das hospitalizações, resultando em redução dos custos de operação do sistema de saúde. “A análise de custo-benefício sugere ainda que o programa é extremamente efetivo, pois a queda da mortalidade e das internações, quando trazidas a valores monetários, suplantam em muito os custos da política”, reforça Espinhel.
“Infelizmente, o Ministério da Saúde não deu a importância merecida a esses dados apurados em trabalho premiado pelo BNDES”, acrescenta. A política de redução contínua dos valores de referência dos medicamentos, alheia aos custos financeiros e a diversos outros impactos no setor atividade, torna ainda mais onerosa a participação das farmácias, critica o conselheiro da Abcfarma.
“A questão pode ser colocada da seguinte forma: há no Ministério da Saúde uma obsessão pela redução de gastos que beira a irracionalidade, tanto do ponto de vista operacional quanto do econômico. Essa postura precisa ser revista para atender aos reais interesses da sociedade brasileira na área da assistência farmacêutica e da saúde de maneira geral”, diagnostica Nelson Mussolini, presidente-executivo do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos no Estado de São Paulo (Sindusfarma).
O representante do setor estranha a falta de negociação: “Desde que o governo anunciou a intenção de fazer mudanças no programa, a cadeia farmacêutica (indústria, distribuição e varejo) manifestou a disposição de negociar e alertou para os riscos de se adotarem medidas açodadas. O governo chegou a criar um Grupo de Trabalho que, no entanto, não foi convocado. Esperamos que o novo ministro da Saúde retome essas negociações”.
Segundo cálculos preliminares do Sindusfarma, os cortes definidos pelo governo reduzirão em 800 milhões de reais os repasses anuais às farmácias conveniadas. “Na verdade, o governo quer que a iniciativa privada mantenha o programa recebendo valores que cobrem apenas metade do custo logístico que ele tinha com a rede própria de farmácias”, acusa Mussolini.
O impacto maior das mudanças do Aqui Tem Farmácia Popular na cadeia produtiva de fármacos será sentido pelos consumidores. Para as indústrias farmacêuticas, explica o presidente do Sindusfarma, ele é importante por oferecer a oportunidade de ampliar o acesso da população aos medicamentos, divulgar a qualidade de seus produtos e fortalecer suas marcas. Para o varejo farmacêutico, oferece a possibilidade de aumentar o movimento nas farmácias e de fidelizar o consumidor.
Enquanto o Ministério da Saúde repetia, no começo deste mês, mensagens tranquilizadoras sobre a continuidade do Farmácia Popular, o Guia da Farmácia, revista dirigida aos profissionais do setor, emitiu um alerta aos seus leitores: “Nos últimos meses, o Ministério da Saúde apertou o cerco a possíveis irregularidades envolvendo credenciados no Programa Farmácia Popular. O número de despachos com solicitações de instauração de procedimentos para averiguar transações de proprietários de farmácias deve chegar a centenas.”
Continua: “As penalidades são imediatas e ameaçam diretamente o futuro do negócio dessas empresas. A conexão ao sistema de vendas e pagamento do estabelecimento vem sendo suspensa pelo ministério sem aviso prévio. Não se dá às empresas o direito ao contraditório e à ampla fundamentação da defesa. Os investigados ficam ameaçados de descredenciamento por até cinco anos e alguns comerciantes receberam intimações judiciais para comparecer à Polícia Federal”.
Fonte: Carta Capital