Vilma Homero
“A América Latina é a região mais desigual do mundo, e está nessa posição pelo menos desde a década de 1960. No Brasil, esse abismo entre pobres e ricos é ainda maior. Entre nós, a desigualdade de renda é alta mesmo para um continente em que essa desigualdade já é, em qualquer comparação internacional, elevada. E nos mantemos nessa posição pouco gloriosa pelo menos nos últimos 50 anos.” A afirmação do professor Carlos Antonio Costa Ribeiro, doutor em Sociologia pela Universidade de Columbia, em Nova York, e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), não causa surpresa e pode ser apontada em números. Em análises dos dados da Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar (Pnad), coletada anualmente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) desde a década de 1970, pode se constatar que, entre as famílias brasileiras, as 10% mais ricas desfrutam de um nível de renda algo em torno de 25 vezes maior do que o das 40% mais pobres. O desafio agora é exatamente diminuir essa desigualdade.
“Talvez mais importante do que nos voltarmos para as desigualdades de condições de vida que os números retratam, seja analisarmos a desigualdade de oportunidades, que influi diretamente nas chances que cada indivíduo terá para progredir na vida, suas chances de mobilidade social”, declara Costa Ribeiro, Cientista do Nosso Estado, da FAPERJ, que coordenou, no Iesp, o projeto “Desigualdade de Oportunidades e de Condições no Brasil Contemporâneo: Origens Sociais, Educação e Destino de Classe”. O assunto, por sinal, tem sido tema de suas pesquisas pelo menos desde 2008.
Como afirma o pesquisador, pertencer a determinados grupos – distintos por classe de origem (da família em que os indivíduos cresceram), gênero ou raça, por exemplo – tende a dificultar essa ascensão. “As desigualdades associadas ao fato de os indivíduos pertencerem a certos grupos tendem a ser mais estáveis, dado que mecanismos institucionalizados, como a discriminação, por exemplo, cumprem o papel de mantê-las”, afirma Costa Ribeiro. Exemplificando o que diz, o sociólogo indaga: “Serão as chances de um negro pobre iguais às de um branco igualmente pobre no que tange a se tornarem médicos ou advogados?”
Apesar disso, estudos recentes realizados com dados do IBGE documentaram que a distância entre os dois extremos da pirâmide vem diminuindo desde a década de 1990. Na segunda metade do século XX, aliás, o País viveu grandes mudanças estruturais, resultado da enorme onda de expansão industrial e urbanização. Isso se traduziu na diminuição da pobreza, na expansão do sistema educacional, no crescimento da participação feminina no mercado de trabalho, no aumento da expectativa de vida e na expansão de diversos direitos sociais. Tudo isso contribuiu para a mobilidade social. “A despeito de o País ainda permanecer no incômodo ranking dos dez mais desiguais do mundo, no Brasil vem se observando uma tendência de diminuição dessas desigualdades desde 1994 e, mais acentuadamente, a partir de 2002, assim como vem acontecendo em vários países da América Latina.
Esses dados, no entanto, dizem respeito basicamente à desigualdade de resultados, ou seja, a distribuição de bens socialmente valorizados – educação, renda ou acesso a serviços básicos – entre indivíduos ou entre famílias. “Como os capitais econômico (renda e patrimônio), cultural (acesso aos diferentes níveis de educação formal) e social (acesso a redes de contatos sociais) não são igualmente distribuídos entre todas as famílias, os indivíduos começam a vida a partir de condições iniciais bastante distintas e também são expostos a oportunidades e chances bastante desiguais”, explica o sociólogo. Para entender, basta pensar que o filho de um profissional liberal urbano terá mil vezes mais chances de se tornar um profissional do que o filho de um trabalhador rural. Esta vantagem, no entanto, diminuiu consideravelmente entre a década de 1970 e a de 2000. Hoje em dia, esta vantagem é ainda muito alta, de cerca de 50 vezes mais chances, mas certamente menor do que na década de 1970.
Para Costa Ribeiro, o principal fator que leva à redução da desigualdade de oportunidades entre os indivíduos é a educação. “As condições educacionais disponíveis para as pessoas são centrais no processo de estratificação. Embora as características das famílias de origem tenham influência nas chances de acesso e progressão no sistema educacional, as relações sociais que se estabelecem nas escolas – por exemplo, o aprendizado, os estímulos cognitivos e a atenção por parte de professores e colegas – podem contribuir para diminuir os efeitos das desigualdades iniciais. Para a grande maioria da população, escolas boas e de qualidade são fundamentais para compensar as desvantagens que se encontram nas famílias de origem.” E enfatiza: “Assim, a qualidade do ensino oferecido é de extrema importância no processo de superação das desigualdades.”
Embora a educação seja central e fundamental, outros fatores são também importantes no decorrer da vida dos indivíduos. Ao longo de todo seu ciclo de vida, os indivíduos passam por transições, vivem relações sociais, participam de grupos e organizações, e encontram contextos que influenciam suas chances. Como Costa Ribeiro enumera: “Na esfera produtiva, o momento de entrada no mercado de trabalho e a escolha da carreira são de grande importância. Na esfera familiar, a escolha do cônjuge, o momento do casamento e o nascimento dos primeiros filhos são todos eventos de grande impacto. Estas escolhas nas esferas da educação, do trabalho e da formação de novas famílias contribuem para determinar as condições e posições sociais que os indivíduos alcançam na vida adulta.”
Tudo isso, no entanto, passa pela influência de condições institucionais mais amplas. “Dependendo do desenvolvimento econômico vigente, os indivíduos encontram um mercado de trabalho mais ou menos aquecido, o que pode, ou não, favorecer suas chances de encontrar bons empregos ou empreender novos negócios.” Mais uma vez, entra aí a importância da educação, já que, afinal, isso também significa que o indivíduo estará mais bem preparado para o mercado de trabalho.
No quesito educação, por sinal, houve avanços no País, mas ainda há um bom caminho a percorrer, avalia o sociólogo: “Na década de 1960, 40% das crianças estavam fora da escola. Hoje, houve uma grande massificação do ensino fundamental, com grande parte das crianças frequentando regularmente a escola. A questão agora é não só massificar o ensino, mas avançar para se garantir uma educação de qualidade.” Segundo Costa Ribeiro, quando se tem uma sociedade muito desigual, essa heterogeneidade termina se refletindo no sistema de ensino. E um ensino desigual também contribui para que as diferenças e a desigualdade de oportunidades permaneçam acentuadas.
“Nosso sistema educacional não é homogêneo. Antigamente, tínhamos uma escola pública de melhor qualidade, com professores mais bem preparados, mas que também atendia a um contingente bem menor de estudantes. Hoje, a massificação do ensino não significou manter essa qualidade. Até porque é difícil massificar mantendo a qualidade”, explica o pesquisador.
A questão racial e de gênero também são fatores que aparecem entre aqueles que contribuem para manter acentuada tanto a desigualdade de condições quanto a de oportunidades. Mulheres e negros terão maiores dificuldades de mobilidade social. Mas o pesquisador aponta um dado bastante curioso com as mulheres. “Se, em 1960, apenas 15% delas concluíam o ensino superior, hoje, pelo contrário, elas são 60%, maioria nas universidades. Mas embora tenham melhor desempenho educacional, recebem menores salários. Parte por discriminação, parte por tradição. Elas parecem escolher as carreiras de menor prestígio e menor remuneração, como as da área de humanidades. Consequentemente, na hora do mercado de trabalho, elas têm salários mais baixos.”
E no caso de raça? Costa Ribeiro dedica um dos capítulos do livro A Dimensão Social das Desigualdades, que está escrevendo, ao assunto, outro ponto central no processo de estratificação social no Brasil. “Em vez de separar as pessoas em dois ou três grupos raciais (brancos, pardos e pretos), conceituo a raça como uma variável contínua, ou seja, desenvolvo análises que permitem mensurar a raça ou a cor em termos de sua variação ao longo de uma escala que vai do mais escuro ao mais claro”, diz. Para o pesquisador, esta seria uma forma, na sua opinião, mais fidedigna à realidade social brasileira em que a raça é pensada em termos de aparência e não de origem social. “Tendo em vista que há muitos casamentos inter-raciais no Brasil e também pessoas com diversos tons de pele, do mais escuro ao mais claro, uso a variável de ‘raça contínua’ para estudar as desigualdades nas chances de mobilidade social em termos de educação, ocupação e renda. A partir desta abordagem é possível verificar que quanto mais escura a pele do indivíduo, menores são suas chances de progredir no sistema educacional e no mercado de trabalho. Ou seja, menores as oportunidades de mobilidade ascendente e maior a desigualdade de oportunidades. “Estas desigualdades estão presentes mesmo quando se leva em conta a classe de origem e outras características das pessoas”, explica.
Ele levanta ainda outra questão frequentemente discutida nos estudos sobre relações raciais no Brasil: a de que pessoas que experimentam mobilidade social ascendente tendem a “embranquecer”, ou seja, a declarar que são mais claras do que de fato são. “Para estudar os efeitos deste possível ‘embranquecimento com o dinheiro’, faço algumas simulações e chego à conclusão de que, mesmo na hipótese deste processo estar ocorrendo, ainda é grande a desigualdade de oportunidades de mobilidade social entre pessoas mais escuras e mais claras”, declara.
Saídas para reverter esse quadro e estreitar o fosso da desigualdade social brasileira existem. E certamente passam por escolas públicas de qualidade, que incluam alunos de diferentes classes sociais. “Misturar alunos de diferentes origens é sempre uma boa medida, não só como forma de ensinar um convívio mais tolerante e mais inclusivo, mas também como uma forma de aumentar a troca de conhecimentos, aumentando as chances de os alunos mais pobres aprenderem.”
A valorização do ensino técnico como forma de encurtar caminho para o mercado de trabalho, qualificando a mão de obra e tornando-a mais produtiva seria outra iniciativa neste sentido, assim como a cobrança de impostos maiores dos mais ricos e iniciativas de proteção à primeira infância, como uma política de creches. Algumas outras iniciativas teriam igualmente reflexos positivos. Se o programa Bolsa Família vem cumprindo um papel nesse sentido entre as camadas mais baixas da população, outros mecanismos podem contribuir, como a criação de um imposto sobre herança, a exemplo do que funciona em alguns países europeus; e impostos redistributivos, em que os mais ricos pagam proporcionalmente mais do que os mais pobres. “No Brasil, o imposto de renda é regressivo, ou seja, incide mais sobre as camadas de renda mais baixas, uma vez que, além do imposto de renda propriamente dito, que, acima de determinado patamar, é o mesmo para todos, ainda pagamos taxas embutidas em todos os produtos que consumimos. Se, por exemplo, pagamos um imposto incluso de R$ 2,00 num determinado produto, isso terá um peso maior sobre os que recebem menor salário.”
No conjunto, Costa Ribeiro resume: “Quando o Estado oferece um bom sistema educacional, creches, um sistema de proteção para os trabalhadores e proteção social para famílias e para mulheres com filhos, um sistema de coleta de impostos progressivo, aumentando de acordo com o crescimento da renda dos indivíduos – principalmente dos muito ricos – e outras formas de organização e regras que favoreçam o bem-estar social, maiores serão as oportunidades e chances que o indivíduo terá na vida.” O que, em outras palavras, significa que tanto a presença de um mercado dinâmico e livre quanto de um Estado atuante e forte são fatores importantes para promover a criação de oportunidades para as pessoas. “Certamente assim encurtaremos a distância entre o topo e a base da pirâmide social, diminuindo essas históricas desigualdades.”
*Reportagem originalmente publicada em Rio Pesquisa, Ano VIII, Nº 32 (Setembro de 2015)
Fonte: FAPERJ