Projeto de lei interfere diretamente no compromisso assumido pelo Brasil junto à ONU para reduzir emissões. Críticos dizem que ele retira base de cálculo, coloca critérios na mão de Bolsonaro e não prevê a antecipação obrigatória do fim do desmate para 2025, como previa proposta inicial.

Por Laís Modelli, g1

Às vésperas da conferência das Nações Unidas sobre mudanças climáticas, a COP 26, o Congresso deu o primeiro passo para mudar as regras de compromissos que o Brasil assumiu para frear o aquecimento global. Senadores aprovaram um projeto de lei que é alvo de críticas de especialistas, apesar de os parlamentares apontarem avanços da proposta.

Aprovado na quarta-feira (20), o PL 1.539, da senadora Kátia Abreu (PP-TO), altera artigos da lei da Política Nacional sobre Mudança do Clima. Na visão dos críticos, a decisão dos senadores foi uma “sandice” e precisa ser corrigida pelos deputados federais que ainda vão analisar e votar a proposta.

Pesquisadores e cientistas do clima criticam o PL 1.539 sobretudo por quatro pontos:

  • Retirada base de cálculo: Para a base de cálculo da meta de redução de emissões, o texto do PL troca um valor real usado desde 2015 para adotar o conceito de “emissões projetadas”;
  • Presidente sozinho pode definir rumos: A nova base de cálculo (emissões projetadas) e as ações serão definidas em regulamento que virá de decreto presidencial;
  • Não prevê obrigatoriamente fim do desmate: A proposta de antecipar “obrigatoriamente” o fim do desmatamento ilegal para 2025, que estava na versão original do texto, não consta no projeto. Agora está prevista a “ênfase na eliminação do desmatamento” para alcançar as metas de emissões;
  • Duas metas em conflito: Caso seja aprovada e sancionada, lei fará que o Brasil tenha duas metas de redução de emissões: uma que já foi apresentada para a ONU em dezembro e outra que pode permitir maior prejuízo ambiental.

Veja abaixo o detalhamento destes e outros pontos:

Retirada da base e a PNMC

O projeto de lei aprovado no Senado mira trechos da Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), que é a legislação que consolida as metas internacionais assumidas pelo Brasil junto à ONU.

A meta climática brasileira foi inicialmente definida em 2015, quando o Acordo de Paris reuniu países que aceitaram se comprometer em limitar o aquecimento global a um aumento de até 1,5ºC neste século.

Em 2020, os países renovaram as metas por eles mesmo estipuladas. Nesta renovação, o Brasil foi um dos únicos países que retrocederam em sua meta, permitindo ao país chegar a 2030 emitindo 400 milhões de toneladas de gases do efeito estufa a mais do que o previsto na meta original.

Agora, o projeto de lei aprovado no Senado sobrepõe à atual meta de redução de emissões de gases do efeito estufa apresentada na ONU em 2020 uma nova que será determinada por projeção de emissões que será definida no futuro por um decreto do presidente Jair Bolsonaro.

Enquanto o texto apresentado na ONU fala em redução de 37% das emissões em 2025 e 43% em 2030, o PL 1.539 promete reduzir em 43% as emissões em 2025 e 50% em 2030.

Presidente sozinho poderá definir rumos

Diferentemente do PL, a meta apresentada em 2020 dá um valor exato de redução, estipulando que o Brasil poderá chegar em 2025 emitindo 1,7 bilhão de toneladas de gases de efeito estufa.

Para chegar a esse valor, a redução foi calculada com base no volume total de gases emitidos no ano de 2005. Tal valor é calculado pelo relatório chamado “Inventário de Emissões de Gases de Efeito Estufa”, que é editado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia. O documento revisa periodicamente o valor absoluto de emissões de gases usado no cálculo.

Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, explica que, agora, os congressistas decidiram desconsiderar o Inventário de Emissões de Gases de Efeito Estufa e não detalham com qual base será feito o cálculo da redução de gases que o Brasil deverá alcançar em 2025.

“No PL 1.539, o governo acaba com a base de cálculo e diz que ele próprio definirá quanto o Brasil poderá emitir até 2025, mas não diz como irá calcular esse dado”, diz Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima.

O diretor-executivo do WWF-Brasil, Maurício Voivodic, explica que o projeto de lei abre margem para que o governo federal beneficie grandes setores responsáveis por emissões de carbono. “Por decreto, o governo pode inflar as projeções de 2025, trazendo premissas exageradas para dar margem para os emissores”, diz Voivodic.

A emissão líquida do Brasil atualmente é de cerca de 1,6 bilhão de toneladas de gases – o país é o sexto maior emissor de gases do planeta. Os maiores emissores de carbono no país são o desmatamento e a agropecuária.

Desmatamento ilegal sem foco

O desmatamento ilegal é o principal emissor de carbono no Brasil, seguido pela agropecuária. Contudo, o projeto de lei não aborda a meta do país para zerar o problema.

Segundo o monitoramento do Observatório do Clima, o texto do PL chegou a ter duas versões: uma de 27 de abril, que foi protocolada na Mesa do Senado e deu origem ao texto aprovado nesta quarta-feira, e uma de 28 de abril, publicada apenas no Diário do Senado, mas ignorada desde o início da tramitação.

A versão que desapareceu da tramitação estabelecia a data de 2025 para zerar o desmatamento ilegal, além de estabelecer um teto de 1,2 bilhão de toneladas nas emissões em 2025 a despeito de qualquer mudança na metodologia que altere as emissões no ano-base.

O texto previa para 1º parágrafo do artigo 12: “O detalhamento das ações para alcançar o objetivo expresso no caput será disposto por decreto em até 120 dias, que deverá prever, obrigatoriamente, ações e instrumentos para a eliminação do desmatamento ilegal nos termos da lei 12.651, de 25 de maio de 2012, até o ano de 2025″.

Mas o texto aprovado não preservou a obrigatoriedade e também tirou o prazo de 120 dias. Segundo o conteúdo aprovado, agora o detalhamento das ações para alcance dos objetivos deve ter “ênfase na eliminação do desmatamento ilegal e na promoção da agropecuária sustentável”.

“Se o Brasil atingir a meta de redução de desmatamento já em 2025, nossos produtos, em especial os agropecuários, terão acesso facilitado aos maiores e mais exigentes mercados consumidores, além da atração de bilhões de dólares em investimentos diretos”, afirmou Kátia Abreu após a aprovação do projeto. Kátia disse que já há acordo para que o texto seja votado rapidamente na Câmara dos Deputados.

Entre os senadores, houve reações contra a falta de diretrizes no PL. “A gente precisa dizer o prazo, mas a gente também precisa definir os caminhos para poder chegar a esse determinado prazo”, comentou Eliziane Gama (Cidadania-MA).

Duas metas conflitantes

O Observatório do Clima destaca que o PL 1.539, apesar de contradizer a meta climática já existente, não extingue o compromisso climático apresentado pelo Brasil ao Acordo de Paris, fazendo com que o país tenha duas metas de redução conflitantes.

“A lei [PL 1.539/21] cria uma situação paradoxal: a partir do momento em que ela for promulgada (caso aprovada na Câmara), o país passa a ter duas NDCs, e, ao mesmo tempo, nenhuma. Ficaremos com a meta atual, internacional, depositada junto à Convenção do Clima da ONU, (37% em 2025 e 43% em 2030), e a nova, nacional (43% em 2025 e 50% em 2030), ainda sem regulamentação e sequer sem uma base de cálculo, à espera da canetada de Bolsonaro”, diz nota do Observatório do Clima.

O consultor jurídico do Instituto Socioambiental (ISA), Maurício Guetta, lembra que o Acordo de Paris estabelece que os países devem melhorar a ambição de suas metas climáticas a cada revisão, e não retroceder.

Por isso, segundo Guetta, “se o PL não for corrigido na Câmara, o Congresso Nacional fará o Brasil passar um vexame ainda maior na Conferência do Clima [COP 26].”

O PL segue para votação na Câmara dos Deputados, onde poderá passar por mudanças ou ser mantido como está. Na sequência, irá para promulgação.

“Se o Congresso aprovar este PL tal como se encontra, tudo o que já está ruim pode piorar. O PL cairia como uma bomba em plena conferência de clima, afetando ainda mais a imagem do país. De quebra, dão a Bolsonaro a desculpa perfeita para retroagir nas metas climáticas”, afirma Astrini.

Nova ‘pedalada’ climática

De acordo com os especialistas, esta não é a primeira vez que políticos e o governo de Jair Bolsonaro enfraquecem o compromisso do Brasil de reduzir as emissões de gases do efeito estufa.

Em 2020, o Observatório do Clima apontou que houve pedalada do Ministério do Meio Ambiente na renovação da meta: o então ministro Ricardo Salles manteve o mesmo percentual de redução definido na meta de 2015, de reduzir em 43% as emissões até 2030 e de chegar em 2025 com redução de 37%, ambas em relação aos níveis de emissões de 2005. Entretanto, não atualizou a base de cálculo utilizada para calcular as emissões.

Com isso, se em 2015 a meta de redução de 43% significava emitir 1,2 bilhão de toneladas de gases até 2030, a nova meta, com a mesma taxa de redução, permite o Brasil emitir 1,6 bilhão de toneladas no mesmo período. Já a meta intermediária para 2025 passa as emissões de 1,3 bilhão de toneladas para 1,7 bilhão de toneladas.

Para apenas manter a meta climática já assumida anteriormente pelo Brasil no Acordo de Paris, o Ministério do Meio Ambiente deveria ter se comprometido a diminuir 57% das emissões até 2030, e não apenas 43%.

Reações à tramitação

Abaixo, veja outros posicionamentos de entidades e pesquisadores

“O projeto de lei deveria apresentar metas mais ambiciosas para o Brasil, especialmente no que se refere à restauração florestal e à contenção do desmatamento. A emergência climática exige compromissos efetivos do Governo e da sociedade com políticas públicas de meio ambiente.” -Malu Ribeiro, Fundação SOS Mata Atlântica

“O PL está desalinhado com o Acordo de Paris, na forma e no conteúdo. Não amplia a ambição climática do Brasil e confunde as mensagens para a COP26. O Brasil pode reduzir entre 66% e 82% as emissões até 2030, e ainda crescer e se desenvolver, conforme estudos recentes.” – Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa

Fonte: https://g1.globo.com/meio-ambiente/noticia/2021/10/23/projeto-aprovado-no-senado-da-brecha-para-recuo-em-meta-ambiental-alertam-especialistas-veja-analise.ghtml