CALDEIRA, A.M.S.A. A apropriação e construção do saber docente e a prática cotidiana, In: Cadernos de Pesquisa – n.º 95, São Paulo: Cortez, Novembro de 1995, pp.5-12.

Partindo da problemática da formação inicial do professorado, da necessidade de incorporar nos cursos de formação de professores os conhecimentos produzidos na prática cotidiana e da formação permanente dos professores, se realiza o estudo da prática docente cotidiana de uma professora no contexto da escola em que trabalha e dos saberes que foram produzidos e/ou apropriados por ela durante sua trajetória profissional e pessoal, numa escola pública de ensino fundamental, na periferia de Barcelona. Sob a influencia das investigações de Rockwell e Mercado, se tomou como referencial teórico os estudos sobre a vida cotidiana de Agnes Heller: os conceitos de vida cotidiana, entendida como “o conjunto de atividades que caracterizam a reprodução dos individuos particulares, os quais, por sua vez, criam a possibilidade da reprodução social”, de alienação da vida cotidiana, do individuo como sujeito da vida cotidiana, de ruptura com o cotidiano, de saber cotidiano e da dimensão histórica do cotidiano foram trabalhados. Partiendo desses referenciais, a análise dos registros permitiu considerar a professora como sujeito concreto e histórico, que ao mismo tempo que está determinado por suas condições históricas de trabalho, pela classe a que pertence, pelo grupo imediato, por sua história, etc, também contribui para a constituição de todas estas situações. “Portanto, os docentes, em seu trabalho de ensinar, objetivam sua concepção de mundo, produzindo e/ou apropriando práticas e saberes que podem ou não reproduzir a realidade social. Dessa forma, rompem ou podem romper com o ‘estabelecido’, com a continuidade alienada da vida cotidiana escolar, hierarquizando e sintetizando suas atividades distintas em uma unidade coerente com sua concepção de mundo. A aquisição dessa consciência vai depender da relação que o professorado mantém com o conhecimento científico.” (p. 8) Também foi considerado que “a prática docente integra diversos tipos de saberes como os saberes das disciplinas, os saberes curriculares, profissionais e os da experiência, e que, portanto, o saber docente cotidiano é constituído tanto pelo conhecimento científico como pelo saber da experiência.” (p. 8) Para estudar os saberes implícitos na prática docente da professora, construidos e apropriados por ela ao longo de sua trajetória profissional e pessoal foi necessário reconstruir sua trajetória histórica a partir da reconstrução de sua história de vida, da trajetória da escola em que trabalha e do movimento de renovação pedagógica na Catalunha. A metodologia escolhida para compreender a prática e o saber docente em toda sua complexidade e historicidade é a etnografia, entendendo que “a teoria vai-se construindo paralelamente ao processo de pesquisa, como propõe Rockwell (1987, 1989). Nesse sentido, as categorias de análise não foram preestabelecidas mas se construíram durante o processo da pesquisa.” (p. 8) O trabalho de campo se estendeu de forma continuada e em tempo integral por todo um ano escolar e seu principal foco de informação foram as observações das aulas da professora, complementadas por entrevistas com ela e com alguns dos docentes da escola. Esse longo trabalho de campo facilitou a construção progressiva da análise da prática docente da professora, registrando uma variedade de situações da vida escolar, tanto rotineiras (aulas, recreios) como ocasionais (festas e comemorações, saidas, acampamentos), assim como diferentes momentos do trabalho pedagógico da professora como a etapa de negociação dos termos em que se devia dar a interação professora-estudantes, o desenvolvimento completo de um projeto de trabalho, atividades didáticas diversas, avaliações, etc. Durante esse longo período de tempo, buscava-se dar respostas a tudo o que se observava, buscando constuir, progressivamente, uma análise que integrasse a construção teórica e a realidade observada. Em relação aos ámbitos da análise, foi escolhida a sala de aula como o local central para realizar as observações, mas sem limitar-se a ela, já que a escola consitituiu o primeiro e principal âmbito de contextualização da prática docente. Porem, para compreender e construir o processo de conformação da prática e do saber docente era necessário integrar informações extraídas de outros contextos, para lo qual foram reconstruidas diferentes histórias pela memória oral e documentada. Assim, foi possível adquirir uma visão resumida do nascimento e evolução do movimento de renovação pedagógica na Catalunha, suas características e ideologia, as relações com o Estado e a sociedade catalães no sentido de facilitar o surgimento dos elementos mínimos que permitissem contextualizar a escola no momento atual. Em seguida, se procedeu à reconstrução da trajetória da escola, utilizando informações de diferentes fontes, terminando esta contextualização com a voz da professora, falando da sua propria história. A descrição analítica foi construida a paratir de três eixos de análise: as condições materiais da escola que funcionam como elementos possibilitadores ou limitadores do trabalho docente; as dimensões históricas que dão sentido a sua prática docente e explicam-na; e os processos de produção/apropriação dos saberes que constituem a prática docente, em seus momentos de continuidade e ruptura. Para ordenar a descrição foram utilizadas três dimensões: “estruturando a situação de ensino”, onde se analisa como a professora constrói a situação escolar, no contexto das condições materiais da escola, por medio da organização do espaço, do tempo, dos materiais e da interação; “interatuando com os estudantes”, onde se descreve e analisa as diferentes formas de intervenção da professora na interação com o alunado, tanto com o grupo-classe como com cada estudante individualmente; e “articulando os conteúdos”, onde se considerou o trabalho da professora com os diferentes conteúdos escolares nas diferentes disciplinas. Como conclusão, se sintetizam os pontos mais marcantes do estudo no sentido de trazer uma contribuição ao campo da formação do professorado: 1. Os docentes em seu trabalho cotidiano produzem um saber “valioso”. A professora em seu saber docente cotidiano se apropria e constrói uma quantidade de saberes (saber docente) que constituem os fundamentos de sua prática profissional. Entretanto esses saberes son desvalorizados pela sociedade, reconhecendo e valorizando apenas as contribuições teóricas (conhecimento científico). 2. A prática construída pelos docentes no cotidiano escolar é histórica e social, no sentido de considerá-la como resultado da influência de aspectos mais amplos e globalizantes como os processos culturais, econômicos, sociais e políticos, embora isto não signifique ignorar que os próprios indivíduos contribuem para a formação desses contextos. 3. As práticas e saberes construídos pelos docentes no cotidiano de seu trabalho resultam de um processo de reflexão realizado coletivamente na escola. A escola constitui o espaço fundamental para a reflexão coletiva da prática cotidiana do professorado e, como consequência, para seu aperfeiçoamento contínuo. A reflexão coletiva da equipe docente na escola sobre sua própria prática resulta em crescimento e formação conjunta. Destaca-se o papel do “assessor”, que deve-se constituir num facilitador de material teórico, trabalhando “junto” ao corpo docente. 4. As “condições materiais e institucionais” como elementos possibilitadores ou limitadores da prática docente. “Sabe-se que a prática docente não é uma situação dada e homogênea para todos, mas que se realiza em condições específicas na relação singular entre sujeito e escola. Ela começa a se definir a partir de um marco de referência formal, regulamentado pela administração educativa (…) e prossegue a partir de um marco institucional real dado pela escola específica.” (p. 11-12) Embora determinante, essas situações não se definem sem a participação dos docentes que, como sujeitos ativos, podem interferir na concretização de seu trabalho. Conclui-se que a qualidade da prática docente e, por consequência, do ensino está determinada pelas condições materiais e institucionais da escola e, quando se deseja incidir nela, é indispensável modificar essas condições. Por último, se planteam novos interrogantes e problemas suscitados pelo estudo.