Roberto Romano da Silva é professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Autor de vários livros, entre eles “Brasil, Igreja contra Estado” (Editora Kayrós, 1979), “Conservadorismo romântico” (Editora da Unesp), “Silêncio e Ruído, a sátira e Denis Diderot” (Editora da Unicamp), “Razão de Estado e outros estados da razão” (Editora Perspectiva).

​As  universidades públicas brasileiras foram tomadas de estupor com o suicídio cometido pelo Dr. Luiz Carlos Cancellier Olivo, reitor da UFSC.  A tragédia evidencia problemas éticos, científicos e políticos que marcam os tratos entre poder e conhecimento em nossa terra. O primeiro traço a chamar nossa memória encontra-se em algo que desagrega toda sociedade, em especial a reunida nos campi. Trata-se da abjeta delação que volta a ser empregada como instrumento repressivo por agentes do Estado, em setores midiáticos e na própria universidade. No caso em pauta, o estopim da crise reside numa delação contra o reitor. O dirigente foi preso e submetido ao escárnio público sem os mínimos requisitos de justiça, como o direito de ser ouvido antes de encarcerado.  Os repressores e seus aliados da imprensa não se preocuparam um só instante com a sua honra e a dignidade do cargo por ele ocupado. Ele foi exposto à execração popular sem nenhuma prudência. Em país onde ocorrem a cada instante casos como o da Escola Base, os linchamentos reiteram a barbárie.

Todos os pesquisadores e docentes que pensam e agem com prudência, recordam os procedimentos impostos à academia após o golpe de 1964. As cassações de funcionários, lentes, estudantes, anunciaram a posterior tortura, morte e aniquilação dos direitos. Delatores surgiram como cogumelos nas escolas de ensino superior, com os dedos em riste contra adversários ideológicos ou concorrentes bem sucedidos aos cargos, pesquisadores com maior notoriedade junto aos poderes públicos, à comunidade universitária mundial, ao público. O Livro Negro da USP traz relatos nauseantes de prática acusatória e anônima, na qual as baixezas emulavam a covardia. Quem foi delatado perdia tudo e foi tangido rumo às prisões ou exílio. O indigitado, não raro, era posto na “cadeira do dragão” e outros tormentos, após seguir o caminho de orgãos como o Dops em veículos oficiais, cedidos por dirigentes universitários ao aparato policial.

De certo modo o Brasil, na ditadura e na aparente democracia atual,  retoma a proeza que tornou infame parte da antiga democracia grega. Nela existiu uma lei, tida como exemplo de injustiça, que punia os “atimoi”.  Ao surgir um indivíduo com força para vencer eleições, os seus inimigos o acusavam de desvios comportamentais (por exemplo, de ter mantido relações eróticas com adultos, pagas por presentes). O candidato era destituído dos direitos cidadãos, condenado sem julgamento e passava a ser vítima dos piores abusos coletivos. Os processos registram em casos semelhantes: quem perdia assim os direitos, não tinha a sua culpa declarada pelos tribunais. Bastava a acusação, que trazia desconfiança, para definir a pena. Daí a tese de juristas nossos contemporâneos segundo a qual aquelas pessoas seriam na verdade apenados sem ter sido declarada sua culpa. Douglas M. MacDowell: (The Law in Classical Athens, Cornell Un. Press, 1978) diz que os acusados de prostituição deviam “evitar o exercício dos direitos de cidadania, ao serem tidos como “atimoi”, pois eles seriam processados se ignorassem tal veto”. A pena era a morte. Na dokimasia, exame para ingresso e saída dos cargos públicos, é assumido que “a atimia (perda dos direitos) pode caber como pena aos acusados de prostituição, mas só para os políticos, não para os cidadãos privados”, segundo S.C. Todd (The Shape of Athenian LawOxford, Un. Press, 1993). Este “só” não tranquiliza, porque o grego é animal político. As penas de atimiatambém eram aplicadas aos magistrados que, sem deixar o cargo, não pagavam os seus débitos aos tribunais e à Assembleia. Também os cidadãos que, chamados para integrar o exército, não compareciam, eram submetidos à plena atimia. A honra e a desonra de um político eram entregues aos delatores, interessados na sua expulsão da cena pública.

Na ditadura de 1964, os acusados eram tidos, ipso facto, como “sem honra”, visto que tinham sido denunciados por “cidadãos honestos”. Recordo o exemplo edificante de um indivíduo conservador, mas honesto, naqueles dias de bacanal acusatória. O bispo de Marília, Dom Hugo Bressane de Araújo, erudito especialista em Machado de Assis e pessoa facilmente ajustável “à direita”, ao receber delatores que erguiam o dedo contra “comunistas” e “corruptos” pedia o seguinte: “o senhor (senhora) vá ao Cartório, escreva a sua denúncia, reconheça a firma e me envie, para que eu a estude”. Desapareceram os acusadores anônimos da Cúria. Mas nem sempre autoridades religiosas e políticas, sobretudo as policiais, mantiveram tal retidão ética. E mesmo após o regime autoritário, a prática hedionda dos sicofantas se manteve. Ao ser reiterada em todos os ambientes, ela se transformou em ética cujo automatismo gera boa consciência nos desonestos. Afinal, imaginam, eles fazem tudo pelo bem do país ao denunciar, sem provas e sem fundamentos, os seus concorrentes, pares, adversários políticos ou ideológicos. Nos processos judiciais, a “delação premiada” corrói impedimentos éticos. Para garantir a diminuição de penas, a língua do prisioneiro articula frases cujo conteúdo, não raro, avança inverdades e calúnias.  Quase todas a eles ditadas pelos proprietários do poder.

Quando alguns procuradores da República, falando em nome de milhões mas sem mandato para tal múnus, apresentaram ao país as “Dez Medidas contra a Corrupção”, fui chamado para a Comissão Especial da Câmara que analisava o projeto de lei resultante. Ali critiquei o uso dos delatores pagos – seu lucro, segundo o texto das Dez Medidas, seria de 5% sobre o butim amealhado – e recordei os sicofantas atenienses, genitores de todos os que delatam desde então. Ademais, indiquei o quanto era nociva a “sugestão” de armar processos a partir de provas ilícitas, mas elaboradas “de boa fé” (conferir o site oficial da Câmara dos Deputados: “Especialistas apontam falhas em medidas de combate à corrupção sugeridas pelo MP”, 22/08/2016).

Além do vício ético reunido no vocábulo “delator”, usado e abusado para perseguir quem pensa de modo diferente ao costumeiro, com prisões espetaculares e reportagens idem, precisamos examinar a prática política no interior dos campi. A Universidade Federal de Santa Catarina, a mesma do reitor falecido, tem uma história melancólica a ser exposta. Antes de indicar o caso concreto, uma premissa ética essencial. Se um reitor é alheio ao saber e ao ensino, e age tendo em vista os ditames do poder de Estado, ele representa apenas aquele poder no campus. Se traz para o interior da instituição universitária os interesses dos comprometidos de modo imediato com o poder (oligarquias, mercado, forças religiosas ou econômicas), ele é nocivo à universidade, pois na companhia daqueles interesses chegam a intolerância, ódio, falta de respeito aos outros, fanatismo.

Na Universidade Federal de Santa Catarina, existiu durante longo tempo o vezo indicado acima. Tal procedimento trouxe para a instituição os mesquinhos interesses políticos do Estado federal, estadual, municipal. A rivalidade interna foi acrescida pelas técnicas empregadas para manter o controle da reitoria. Até data recente, nas eleições reitorais da UFSC, “todos os nomes sufragados pelas urnas pertenciam às forças políticas que vinham dirigindo a UFSC desde a sua criação e que mantinham com os governos militares uma convivência pacífica ou um apoio entusiasta (…) O processo eleitoral não possibilitou, portanto, como esperavam ou aspiravam as forças de oposição ao regime militar, neste caso as organizações dos docentes, servidores técnico-administrativos e estudantes, que grupos políticos não alinhados com as elites locais e nacionais pudessem ocupar os mais altos cargos da universidade” (Pedro Antonio Vieira, A armadilha das urnas: 20 anos de Eleições Diretas e de Continuísmo na UFSC, in Waldir José Rampinell (ed.): O preço do Voto. Os Bastidores de uma eleição para reitor. Florianópolis, Ed. insular, 2008).

O costume viciado das delações, jungido aos interesses múltiplos presentes no campus, ajuda a compreender a morte do reitor. É tempo dos setores acadêmicos despertarem, antes que seja tarde, para a recusa das acusações sumárias, sem direito de defesa. É preciso, em nome da correta ética, impedir os delatores anônimos. Se tal coisa não for efetivada, logo voltaremos aos anos 60 ditatoriais, quando os sicofantas eram acarinhados pelo regime político, assumiam cargos que não mereciam, destruíam os vínculos de confiança e companheirismo que devem imperar na vida intelectual. Se os delatores não forem detidos e se continua a subserviência acadêmica aos poderes – Executivo, Legislativo, Judiciário e Mercado –  logo todos os que não curvarem a cerviz aos inquisidores serão postos entre os “atimoi”. A morte do reitor é um aviso sinistro. Saibamos aproveitá-lo.

Fonte: Jornal da Unicamp.br