Em entrevista ao Brasil de Fato, Daniel Cara afirma que há disputa na área, mas “urnas escolheram a educação pública”
Thalita Pires
Cara: educação cívico-militar faz oposição equivocada entre a disciplina autoritária, que não funciona para o aprendizado, e as ciências pedagógicas que de fato funcionam –
Jane de Araújo/Agência Senado
O Grupo de Trabalho de Educação da transição é composto por atores diversos: gestores, fundações empresariais, membros de universidades, representantes de trabalhadores e parlamentares. Entre eles, está em disputa o tipo de projeto de educação que o Brasil terá nos próximos quatro anos: investimento em educação 100% pública ou parcerias com a iniciativa privada.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Daniel Cara, integrante do GT, dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e coordenador do curso de licenciaturas da Universidade de São Paulo, afirma que, apesar disso, o grupo está em acordo sobre a revogação de uma série de políticas destrutivas aplicadas pelos governos Bolsonaro e Temer.
Entre elas está o fim das escolas cívico-militares, da alfabetização focada em um aplicativo, da atual política de formação de professores e da Política de Educação Especial, considerada excludente.
Outro ponto, esse ainda em discussão, é a aplicação de mudanças no Novo Ensino Médio, aprovado no governo Temer. “É preciso, no mínimo, reformar a reforma do Ensino Médio. Ela é catastrófica, caótica, foi uma irresponsabilidade promovida pelo Michel Temer junto a vários aliados e fundações e associações empresariais”, diz Cara. “Todos hoje reconhecem que ou a reforma é reformada ou ela tem que ser revogada. Então a sentença está dada, estamos discutindo a dosimetria.”
Cara afirma, ainda, que o próprio presidente Lula pautou suas prioridades. “Na educação básica, ele quer fazer uma recuperação de aprendizagem pós-pandemia e recompor o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae)”, afirma. “Em relação à educação superior, ele exige que o grupo de transição se paute essencialmente sobre a recomposição orçamentária das universidades e institutos federais de educação superior”.
Confira a entrevista na íntegra:
O que existe até agora de diagnóstico em relação à educação no GT? Qual é o resumo do governo Bolsonaro em relação a esse tema?
O governo Bolsonaro na prática desligou o Ministério da Educação da tomada. Foi uma das áreas mais atacadas pelo governo, junto com ciência e tecnologia, pelo fato de que, para o governo Bolsonaro, essas áreas têm que servir como uma caixa de ressonância à propaganda bolsonarista.
Com isso, o Ministério da Educação foi completamente debelado. O último fato que ocorreu [na semana passada] foi um bloqueio dos recursos das universidades federais. Ele bloqueou os recursos, em sequência, por conta da pressão dos reitores e da sociedade civil, ele desfez o bloqueio para seis horas depois refazer o bloqueio. Então é um governo que de fato não se preocupa com a educação, pelo contrário, ataca a educação, porque sabe que tanto educação quanto as ciências servem como espaços de racionalidade, de construção democrática, construção republicana. É exatamente isso que o governo Bolsonaro não quer que aconteça.
Numa primeira análise, entregue no dia 30 de novembro, apresentamos um relatório com quatro tópicos: alertas a respeito da desconstrução que foi feita da política educacional, com relatórios do Tribunal de Contas da União (TCU), do Parlamento, do Ministério Público Federal (MPF) e de órgãos de controle externo, pautados pela sociedade civil; sugestão de reorganização da estrutura do Ministério da Educação; recomposição orçamentária e revogaço de medidas tomadas pelo governo que precisam ser extirpadas.
São políticas totalmente equivocadas, como a educação cívico-militar, de uma lógica absurda, que faz uma oposição equivocada entre a disciplina autoritária, que não funciona em termos de ensino-aprendizado, e as ciências pedagógicas que de fato funcionam. Nesse sentido nós já tomamos algumas decisões. A escola cívico-militar é um caso do revogaço.
Desses pontos que vocês já analisaram e entregaram para Lula, quais são os piores diagnósticos?
São muitas coisas, então vou falar aquilo que interessa objetivamente às pessoas. Um ponto é a Política Nacional de Alfabetização. O governo Bolsonaro acreditou que era possível alfabetizar uma criança por um aplicativo em seis meses. Utilizavam um aplicativo que é um dos componentes do processo de alfabetização na Finlândia, o mais irrelevante, diga-se de passagem.
Trouxeram esse aplicativo da Finlândia e fizeram uma propaganda absurda de que a aplicativo pode substituir professoras e professores. Então a política de alfabetização é toda pautada em uma ciência antiquada, num método antiquado, que é o método fônico. Inclusive cientificamente já vem sendo comprovado como um método ineficaz especialmente para línguas complexas e irregulares como a língua portuguesa. Para dar um exemplo bem fácil: no método fônico é muito difícil a criança perceber a diferença entre ‘osso’ e ‘aço’. São palavras com grafias completamente distintas e a separação silábica não é simples.
Outra política que tem que ser revogada é a política Nacional de Educação Especial, que Bolsonaro transforma em uma política discriminatória, não em uma política inclusiva. A gente também está revendo essa questão.
Há outro debate que não é simples no grupo. É preciso revogar a Política de Formação de Professores proposta pelo Conselho Nacional de Educação na forma da Resolução 02/2019 (Base Nacional Comum Formação). Por que é preciso revogar essa medida? Porque ela sequer foi implementada, de tão ruim que ela é. Quem propôs essa política nunca formou um professor sequer.
Nesse momento sou professor da Universidade de São Paulo, essa é a minha filiação principal em termos profissionais. Sou coordenador do curso de licenciaturas de toda a USP pela Faculdade de Educação. Nesse semestre nós formamos 2.761 professores que vão trabalhar nas redes públicas brasileiras. Já as fundações e associações empresariais e também as pessoas do Conselho Nacional de Educação não podem falar sobre algo que elas desconhecem, que é formação de professores.
Para além disso, há uma preocupação enorme na recomposição orçamentária das universidades e Institutos Federais [IFs] de educação superior. Os IFs são o nosso ponto estratégico para democratizar o acesso ao ensino, são as instituições que de fato vão fazer com que o acesso ao ensino seja nacionalizado, pois conseguem regionalizar.
É claro que, Lula e Dilma criaram muitas universidades e as interiorizaram. Mas os IFs têm demonstrado uma capacidade mais eficaz de interiorização, porque é uma estrutura mais dedicada ao ensino. Eles têm também um trabalho efetivo e qualificado de pesquisa e extensão, mas em relação ao ensino são imbatíveis, conseguem chegar a lugares em que as universidades não chegam.
Então a gente precisa recompor esse orçamento. E aí tem uma grande facilidade, porque essa é a obsessão do presidente Lula. Se tem um presidente da República com a compreensão de que o Brasil precisa da educação, ciência e tecnologia para se desenvolver, é o Lula. Nesse sentido a gente está tranquilo. O nosso trabalho é muito mais indicar caminhos, porque a agenda está estabelecida por quem foi eleito.
Considerando o histórico dos governos Lula e Dilma, que você mencionou, existe a necessidade de alguma mudança de rota daquilo que já foi realizado nas administrações do PT?
Na educação básica, há algumas coisas, como a primazia das avaliações de larga escala na educação. O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), índice que é fruto de um exame, o Sistema de avaliação da Educação Básica (Saeb), e outras avaliações de larga escala precisam ser redimensionadas em relação ao seu tamanho dentro da área de educação.
O Brasil, desde 2007, se acostumou a fazer política de educação orientada para a avaliação, sendo que deveria ser o contrário, a avaliação deveria mostrar como foi aplicada a política de educação. Ou seja, quando você transforma a avaliação, que é um instrumento, no fim da política, o resultado é que você faz tudo, menos educar com qualidade as crianças, adolescentes, jovens adultos e idosos que cursam a educação básica. O Brasil tem uma grande quantidade de adultos e idosos que não completaram a educação básica, cerca de 30 milhões de brasileiros já têm mais de 15 anos e estão em uma situação de analfabetismo funcional.
Outro tema que tem que entrar na agenda é discutir Fies e Prouni. São programas que devem ser tratados como emergenciais, mas precisam ter forte regulação do Governo Federal em termos de qualidade. Especialmente nos governos Temer e Bolsonaro, serviram essencialmente para enriquecer as universidades [privadas]. Já tinha acontecido esse problema com o Lula, mas com Temer e Bolsonaro isso se tornou muito pior, até pela relação que o governo Bolsonaro tem com o setor privado.
A família do Paulo Guedes e o próprio Paulo Guedes investem ou já investiram na área. Hoje outros membros da família dele investem na área, são lideranças da área da educação superior privada. Isso precisa ser revisto. Não porque eu estou aqui querendo dizer que a educação privada não tem que existir, não é disso que eu estou falando. Eu estou dizendo que a educação superior privada precisa ter qualidade. E se ela recebe apoio do poder público, ela precisa ter duas vezes mais qualidade, porque é o dinheiro do contribuinte que financia o Fies e o Prouni. O Prouni é de forma indireta, porque é uma renúncia fiscal, é um dinheiro que deixa de ser arrecadado, e o Fies é um sistema de empréstimo que tem um impacto muito grande no Tesouro Nacional.
O Tesouro Nacional pertence a todas e todos nós. Nós construímos o Tesouro Nacional. Em termos de contribuição, as pessoas mais pobres do Brasil contribuem mais do que as mais ricas, porque mais do bolso delas é retirado para o financiamento das políticas públicas. Então as políticas públicas têm que priorizar as pessoas que mais contribuem para o orçamento público, que são os mais pobres. Por isso é preciso rever a forma como se dá a regulação do Fies e também do Prouni.
A gente tem uma perspectiva de atualização das políticas do governo Lula e Dilma, mas não adianta pensar só no passado, olhar só para o retrovisor, a gente precisa começar a construir o futuro, e é nisso que estou dedicado dentro da área da educação na transição governamental.
Hoje na educação existe disputa pelo recurso público. Muitas vezes se defende que ele vá de fato para as empresas privadas. Isso vem acontecendo em alguns estados, há projetos de lei para que a gestão seja privatizada. Existe essa disputa dentro do grupo de transição?
Tem pessoas que pensam isso, mas não têm coragem de dizer. Só que é importante frisar uma realidade: Lula teve 58 milhões de votos no primeiro turno. Bolsonaro teve isso no segundo turno. Com 900 mil votos a mais, Lula já venceria o Bolsonaro, mas ele teve três milhões a mais. Aliados que chegaram no segundo turno não podem querer determinar toda a agenda do que vai ser o futuro governo, não em relação só à educação, mas a toda a transição.
Espero que o Lula nomeie Fernando Haddad como ministro da Fazenda, porque é um sinal claro de quem vai comandar o governo, de quem tem a responsabilidade de fazer um processo de gestão com aquilo que foi votado pelo eleitor. O eleitor indicou o Lula no primeiro turno. É importante frisar que o anti-Bolsonaro é o eleitor do segundo turno, não o do primeiro. Então nesse sentido, quem defende a educação privada tem que saber lidar com o tamanho que eles têm, um tamanho muito menor do que quem defende a educação pública de qualidade. É claro que nesse momento não estou querendo criar uma cisão, só estou dizendo que as forças têm que ser dimensionadas, porque esse é nosso compromisso com o eleitor, quem votou no Lula não quer educação privatizada, mas educação pública de qualidade.
Quais são os principais pontos que a equipe de transição já entrou em acordo para as sugestões para o futuro governo Lula.
Nesse momento nós acordamos a revogação da política de escola cívico-militar, revogação da Política Nacional de Alfabetização, revogação da Política de Educação Especial. Nós acordamos que é preciso debater a revogação da formação de professores conforme o Bolsonaro propôs, que é uma desconstrução dos de licenciaturas e de pedagogia. Nós também acordamos que é preciso, no mínimo, reformar a Reforma do Ensino Médio. Essa reforma é catastrófica, caótica, foi uma irresponsabilidade promovida pelo Michel Temer junto a vários aliados e fundações e associações empresariais. Todos hoje reconhecem que ou a reforma é reformada ou ela tem que ser revogada. Então a sentença está dada, estamos discutindo a dosimetria.
Há ainda duas políticas que o presidente Lula agendou em relação à educação básica e uma terceira em relação à educação superior. Ele quer fazer uma recuperação de aprendizagem pós-pandemia e recompor o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Em relação à educação superior, ele exige que o grupo de transição se paute essencialmente sobre a recomposição orçamentária das universidades e institutos federais de educação superior.
Edição: Rodrigo Durão Coelho