Nossa equipe acompanhou uma operação de agentes ambientais que lutam contra o tráfico de madeira mesmo sob um governo hostil ao controle do desmatamento.
terça-feira, 3 de setembro de 2019
Por Scott Wallace
Em 4 de julho, em uma estrada de terra vicinal a sudoeste do estado de Rondônia, perto de Espigão d’Oeste, um polo de exploração madeireira, criminosos desconhecidos pararam um caminhão-tanque, expulsaram o motorista da cabine e atearam fogo no veículo. O caminhão transportava combustível para abastecer os helicópteros do governo que apoiavam uma operação contra madeireiras ilegais. Temendo novos ataques, os agentes do Ibama suspenderam a ação e abandonaram a região.
O fogo não se espalhou além das cinzas dos escombros deixados para trás naquela estrada em meio à floresta equatorial. Comparado aos incêndios florestais em Rondônia e em toda a Amazônia, que despertaram protestos pelo mundo, um mero caminhão em chamas pode parecer insignificante.
Mas, ainda assim, trata-se de um retrato da batalha atualmente travada na maior floresta tropical do mundo – uma batalha em que o principal órgão responsável por proteger a floresta está cada vez mais acuado.
Nos últimos 30 anos, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), esteve à frente na árdua luta contra a destruição da Amazônia. Seus agentes expulsaram de territórios indígenas criminosos garimpeiros e madeireiros. Seus fiscais descobriram elaborados esquemas de fraudes cujo objetivo era derrubar a mata e se apropriar de terras públicas para a produção agropecuária. Eles fecharam o cerco a cartéis de tráfico de animais selvagens em extinção e aplicaram multas pesadas a poderosos que buscavam lucros com as riquezas da Amazônia.
Contudo, com a aceleração do ritmo de destruição da floresta equatorial neste ano – até julho, houve um aumento de 60% comparado a 2018, segundo dados do Inpe – o Ibama enfrenta hoje mais do que a ira de seus tradicionais inimigos. Ele também está sendo confrontado pelo novo presidente, Jair Bolsonaro, que chamou de “mentirosos” os dados dos satélite – e que não guarda segredo sobre seus planos para reverter proteções ambientais e abrir a Amazônia para a exploração madeireira, mineração e agropecuária em escala industrial.
Bolsonaro reprova as práticas consagradas adotadas pelo Ibama de aplicação de multas pesadas para infrações ambientais, apelidando-as de “indústria das multas”. Ele cobrou que agentes de campo parassem de destruir os tratores e escavadeiras de madeireiros ilegais em regiões remotas da mata – medida que os fiscais alegam ser raramente empregada e, ainda assim, apenas para impedir que os desmatadores retomem as atividades ilícitas. Em fevereiro, Ricardo Salles, o ministro do Meio Ambiente de Bolsonaro, demitiu 21 dos 27 superintendentes estaduais do Ibama. Muitos desses cargos permanecem vagos.
Foi nesse contexto que eu e o fotógrafo Felippe Fittipaldi nos juntamos ao Ibama em meados de julho no lançamento de uma grande operação de resposta ao ataque ao caminhão de combustível. A emboscada tinha ocorrido em um pequeno distrito fronteiriço chamado Boa Vista de Pacarana, ao norte do município em expansão de Espigão d’Oeste. Rondônia é um estado da Amazônia famoso pelos conflitos de terras e desmatamento desenfreado. Servidores do Ibama afirmam que a indústria madeireira de Espigão é sustentada majoritariamente pelo comércio ilegal de madeiras de lei extraídas de territórios indígenas. O plano era que cerca de 35 fiscais do órgão – apoiados por uma equipe de proteção em helicópteros, mais de 50 policiais fortemente armados e quase 100 soldados do exército – surpreendessem em flagrante operações ilegais de extração de madeira e serrarias.
No entanto, ao deixar Porto Velho, a capital do estado, conforme nosso comboio de SUVs, viaturas policiais e caminhões militares avançava pelo estado, um dos agentes ouviu nas redes sociais uma entrevista com o chefe da associação dos madeireiros de Espigão – o homem falava justamente sobre a iminente operação do Ibama. O ministro Salles viria de Brasília a Espigão no dia seguinte, disse o madeireiro. Ele pedia que os munícipes viessem cumprimentar o ministro, que, segundo ele, daria ouvidos às preocupações da categoria.
Não restou dúvidas de que a indústria madeireira tinha sido alertada sobre a operação.
“Como sabem que estamos indo, vão retirar todos da floresta. Encontraremos o crime, mas não os criminosos”, resmungou um sargento da polícia em nosso comboio.
A operação contina
Na manhã seguinte, Salles não decepcionou as várias centenas de apoiadores que se reuniram do lado de fora da prefeitura de Espigão.
“O que acontece hoje no Brasil, infelizmente, é o resultado de anos e anos e anos de uma política pública de produção de leis, regras e regulamentos que nem sempre guardam relação com o mundo real”, disse ele. Era uma referência ao regime de supervisão que norteava a política ambiental brasileira durante as três últimas décadas – e que contribuía para um forte declínio no desmatamento, ao menos até poucos anos atrás.
Os comandantes de campo do Ibama encarregados da batida prestes a iniciar não se deixaram abalar pelas observações de Salles.
“Não recebemos nenhuma ordem direta dele para interromper nenhuma operação. Faremos tudo que for necessário para desempenhar nosso trabalho”, contou Givanildo dos Santos Lima, coordenador geral da operação.
Lima, 46, é um homem esquio com uma semelhança impressionante com o ex-presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. Agente de campo veterano com quase 15 anos de experiência na mata, ele é admirado pelos colegas por ser um fiscal astuto e corajoso. Ele é criticado na mesma medida pelos defensores de interesses comerciais contrários a suas atividades de fiscalização. Já foi alvo de inúmeras ameaças, geralmente disseminadas pelas redes sociais. Há lugares para onde ele não vai sem escolta policial.
Após o discurso de Salles, nosso comboio avançou por propriedades rurais com vegetação escassa de Espigão a Boa Vista de Pacarana, um distrito fronteiriço com mil habitantes que vivem em pequenas casas de alvenaria ao longo de uma rede de estradas de terra cheias de buracos. Pacarana possui um único posto de gasolina, algumas lojas, um bar ao ar livre, uma igreja católica e vários templos evangélicos. É contornado, em três fronteiras, por territórios indígenas, onde pastos escaldantes fazem divisa com grandes paredões verdes de mata.
A extração comercial de madeira é expressamente proibida em terras indígenas no Brasil. Entretanto, a exploração madeireira é a força vital da economia de Pacarana. Os agentes afirmam que o labirinto de estradas de terra do distrito se transformou nas artérias de um comércio ilícito de madeira que alimenta as serrarias de Pacarana.
Uma escola de ensino fundamental vazia por estar em período de férias serviu de centro de comando e alojamento para a operação. Tropas e oficiais montaram barracas e cabanas nas salas de aulas e no pátio. Comboios partiam da escola, a cada manhã, rumo à meia dúzia de serrarias situadas fora da cidade, escondidas atrás de grandes paredes de tábuas.
Em uma manhã, um grupo de sete veículos 4×4 verdes e brancos do Ibama e uma escolta de picapes policiais contornaram pilhas de enormes troncos de árvores alinhados na borda de um imenso depósito. Estacionaram em frente a um grande galpão desgastado. Espessas nuvens de poeira encobriam a ofuscante luz solar quando os agentes saíram de seus veículos.
O galpão estava deserto e assustadoramente silencioso. Sob seu telhado de latão corrugado, a equipe encontrou um conjunto de fresas novas recém-tiradas da embalagem, ao lado de um emaranhado aleatório de fios expostos, latas de óleo descartadas e amontoados de serragem. Sob os rangidos das tábuas do assoalho, os fiscais, com coletes à prova de balas, fizeram um inventário das esteiras transportadoras, compressores e lâminas de serras de fita.
Do lado de fora no pátio, Lima parou para examinar uma pilha de troncos de árvores ainda não serrados. Muitos tinham mais de um metro de diâmetro. Algumas das toras eram vermelho-escuras, outras, amarelo-ouro. Gotas de seiva pingavam das extremidades, soltando um cheiro doce e forte.
“Aqui tem angelim, ipê, maçaranduba”, disse Lima, recitando os nomes das nobres madeiras de lei, algumas das quais são as mais valiosas da Amazônia.
“O único lugar da região em que ainda existe madeira desse tamanho e qualidade é dentro das terras indígenas”, explicou. Em sua análise, quase toda a madeira era ilegal.
Gato e rato
Nos dias seguintes, quando acompanhei os fiscais por helicóptero em áreas indígenas e por terra nas serrarias de Pacarana, ficou claro que o Ibama estava preso a um jogo de gato e rato com um inimigo bastante organizado e engenhoso. “Eles monitoram nossa movimentação. Sabem onde estão nossas equipes”, contou Lima.
Espiões informam o paradeiro de agentes de campo às equipes madeireiras por rádio. “Quando uma equipe vai a Pacarana, por exemplo, os madeireiros que operam dentro da terra indígena deslocam os caminhões e tratores e os escondem”, explicou Lima.
Agentes do Ibama descobrem uma carga de madeira em uma estrada vicinal em Boa Vista de Pacarana (RO). Os agentes afirmam que as serrarias da região dependem da extração ilegal de madeira de três reservas indígenas próximas, já que sobraram poucas árvores nobres fora delas.
As madeireiras utilizam tinta de camuflagem e folhagem para esconder os equipamentos; abrem trilhas estreitas sob as copas da floresta até alcançar as árvores valiosas, confundindo o monitoramento aéreo. Geralmente transportam as toras para as serrarias durante a noite. Intermediários inescrupulosos subornam burocratas para emitir documentos e forjar a origem da madeira em florestas licenciadas com manejo sustentável, o que permite que as madeireiras levem a madeira ilegal ao mercado com uma aparência de legitimidade.
“A complexidade desta estrutura e o enorme volume de recursos necessários para concretizar a atividade criminosa nos leva a afirmar que esta é uma atividade do crime organizado. Este esquema foi muito bem montado. É uma verdadeira máfia”, contou Daniel Lobo, procurador da República lotado em Porto Velho.
Lobo afirma que só recentemente o Ministério Público e os investigadores de polícia passaram a compreender a natureza conspiratória desses crimes e a processá-los apropriadamente. “Não são crimes isolados com um único culpado. É uma organização com comando e controle.”
As madeireiras de Espigão se enfurecem com a menor sugestão de ilegalidade de suas operações. “Como em qualquer lugar, pode haver algumas empresas que atuam na clandestinidade”, afirmou Cleodimar Balbinot, advogado da indústria madeireira que apareceu para confrontar Lima em uma serraria, enquanto os agentes anotavam uma série de violações. Mas seus clientes eram operadores legítimos, insistiu ele, escolhidos injustamente para saciar a sede de vingança do Ibama pelo ataque ao caminhão-tanque.
Durante a operação testemunhada por mim, quase 6 mil m3 de madeira ilegal foram apreendidos, segundo o Ibama. Os fiscais encontraram “irregularidades” em 20 serrarias e emitiram multas no total de R$ 4 milhões. Três serrarias foram lacradas definitivamente.
Caminho para o desmatamento
A extração ilegal e seletiva de madeira não é a principal causa do desmatamento– ou seja, o corte raso — muito menos os incêndios devastadores que alarmaram o mundo todo. Mas a extração madeireira seletiva permite que mais luz solar alcance o chão da floresta, secando-o e tornando-o mais propenso a incêndios. Investigadores afirmam que, normalmente, esse é o primeiro passo para uma empreitada criminosa ainda maior que envolve o corte raso em grandes áreas: a apropriação de terras públicas para a venda de loteamentos ou produção agropecuária.
“A destruição da floresta é o paradigma da grilagem”, afirmou o procurador Lobo. “É uma tentativa de invadir e ocupar terras públicas, algo muito comum na Amazônia.” Assim como a exploração madeireira ilegal, o crime implica uma grande rede que oculta os principais arquitetos da empreitada. “Os grileiros tomam a terra com a expectativa de que o roubo seja legalizado”, contou Lobo, em parte, com a compra e venda de falsos documentos de propriedade com o objetivo de ocultar suas atividades.
Em toda a Amazônia, as estradas utilizadas pela exploração madeireira abrem caminho para penetrar na floresta intocada. “É geralmente a extração da madeira que financia o desmatamento – a derrubada da floresta. As árvores mais nobres são vendidas e, com o dinheiro da venda, é paga a derrubada da floresta. Não é barato desmatar”, conta Lima.
Com o avanço do processo e o esgotamento de recursos valiosos por toda parte, há cada vez mais pressão sobre os extensos territórios nativos do Brasil, que cobrem cerca de um quarto da Bacia Amazônica brasileira. Todas as 22 reservas indígenas de Rondônia sofrem com alguma forma de invasão, explicou Lobo, seja de madeireiros, grileiros, produtores rurais ou garimpeiros ilegais.
A complexidade vai muito além de uma simples vitimização. Líderes indígenas que favorecem o desenvolvimento sustentável e a preservação de tradições comunitárias entram em conflito com membros da própria tribo que são atraídos por altas quantias oferecidas por forasteiros ansiosos por cortar suas árvores e garimpar em seus territórios. Algumas tribos se unem para enfrentar as atividades predatórias. Mas outras estão cada vez mais divididas entre preservar a floresta ou explorá-la para obter ganhos de curto prazo.
Dentro dos quase 2,5 mil km2 da terra indígena Sete de Setembro, a oeste de Pacarana, sete comunidades suruís se uniram para combater a exploração madeireira e o garimpo em seu território. Plantaram café e cacau e estão vendendo seus produtos a distribuidores nacionais e até internacionais. No entanto, eles são minoria na própria tribo – 20 outras aldeias suruís colaboram de certa forma com madeireiros e garimpeiros.
Na aldeia de Lapetanha, o ancião Agamenon Suruí contou que ele e sua família receberam ameaças de morte por expulsar madeireiros das florestas vizinhas. “Eles anunciaram. Citaram meu nome. Disseram: ‘Se o virmos, o mataremos’”, contou ele. Outros aldeães receberam ameaças semelhantes. Ninguém sai da comunidade sozinho.
A situação é ainda pior para os uru-eu-wau-wau e karipunas, porque garimpeiros e produtores rurais estão de olho em suas terras no oeste de Rondônia. Líderes de ambas as tribos foram ameaçados repetidas vezes. Dezenas de ocupantes ilegais foram expulsos do território dos karipunas em junho em uma operação conjunta do Ibama, de oficiais da Fundação Nacional do índio (Funai) e das polícias militar e federal. Investigadores indiciaram nove pessoas por desmatamento ilegal, fraude e lavagem de dinheiro.
Os próprios servidores do Ibama afirmam ter sido alvos de várias ameaças durante a operação para expulsar os invasores da reserva Karipuna. Todos no cumprimento de seu dever, afirma Givinaldo Lima.
Um órgão alvo de ataques
Mas alguns agentes do Ibama acreditam que o desânimo esteja tomando conta deles no governo Bolsonaro e se questionam se poderão contar com os superiores ao confrontar criminosos em campo.
“Sempre ficamos com a impressão de que fizemos algo errado”, disse um agente que pediu para não ser identificado, por medo de represália.
Apesar da retórica exaltada do governo Bolsonaro, funcionários de alto escalão do Ibama afirmam que não houve alteração substancial na forma pela qual os agentes conduzem as operações no campo. Após a operação em Rondônia, fui a Brasília para entrevistar Eduardo Bim, presidente do Ibama, na sede do órgão.
“Estamos fazendo as inspeções como previsto na lei. O que vejo são interpretações e rumores fora de contexto que dão a impressão de que não estamos combatendo crimes ambientais. Estamos combatendo e continuaremos a combater esses crimes”, disse ele.
Mas muitos de seus agentes de campo estão mais céticos.
“Bolsonaro não vai acabar com o Ibama. Ele precisa do Ibama para mostrar ao mundo que o Brasil está cuidando da Amazônia. Mas ele menospreza o órgão. Cria obstáculos para enfraquecer a instituição e nos impedir de fazer nosso trabalho”, contou um dos agentes.