Pode-se discordar dos métodos do Movimento dos Sem Terra, mas a verdade é que ele combate o pior mal do Brasil: a injustiça social. E é bem-sucedido nisso.

Philipp Lichterbeck

 

Fiquei alguns dias em Eldorado do Carajás, no sul do Pará, para uma reportagem para a imprensa suíça. Em 17 de abril de 1996 ocorreu, perto dessa pequena cidade, o maior massacre de integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A polícia militar matou 19 pessoas que marchavam na BR-155.

Elas tinham como destino a capital do estado, Belém, para pedir a desapropriação de uma fazenda improdutiva – conforme a Constituição, que prevê a divisão de terras que não cumpram sua função social. Os sem-terra defendiam a Constituição, o Estado a trucidou.

Depois de disparar sem aviso contra os sem-terra, os policiais executaram os feridos. Mesmo um jovem que protegia mulheres e crianças foi morto à queima-roupa. Alguns cadáveres desapareceram, e duas pessoas morreram mais tarde em consequência de seus ferimentos. No total, 21 pessoas indefesas foram assassinadas pela polícia brasileira.

O massacre aconteceu há 27 anos, e, desde então, todos os anos o MST bloqueia a BR-155 no dia e no local do massacre. Paralelamente, organizam um acampamento da juventude na beira da estrada.

Até aqui, meu contato com o MST havia sido mínimo, apesar de eu, claro, já conhecer o movimento. Ele me era simpático, e não apenas porque o ex-presidente Jair Bolsonaro – o que mais se poderia esperar desse homem? – ter defendido os assassinos de então, que, para ele, agiram em legítima defesa contra vagabundos. Em 2021, Bolsonaro disse em Rondônia que o MST era uma “organização terrorista”, e que os fazendeiros deveriam se proteger dela com armas.

Mais bem-informados do que a média

Fiquei impressionado sobretudo com a organização, disciplina e dedicação dos jovens do MST. Cerca de 100 deles se reuniram, vindos de vários assentamentos do MST na região. Dormiam em redes, havia uma cozinha comunitária e workshops diários sobre literatura, teatro e educação política.

Cantaram-se canções e, ao redor do acampamento, foram expostas grandes fotografias em preto-e-branco feitas por Sebastião Salgado, o renomado fotógrafo brasileiro que acompanhou a evolução do Movimento dos Sem Terra.

Todas as manhãs, ouvia-se um apelo na forma do hino do MST: “Vem, lutemos, punho erguido, nossa força nos leva a edificar nossa pátria livre e forte.”

De qualquer um a que eu me dirigisse, recebia respostas eloquentes, gentis e bem-informadas. Minha impressão foi de que essa juventude formada pelo MST é mais bem-informada e sabe se expressar melhor do que a média dos brasileiros.

Muitos desses jovens estudam Agroecologia em Marabá, na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. Querem se tornar pequenos agricultores e têm orgulho da história e da luta dos pais. No sudeste do Pará era comum que migrantes vindos do Nordeste com o sonho da terra própria se tornassem força de trabalho barata para grandes proprietários de terras, com longas jornadas e más condições de trabalho. Quando cansaram de viver como subalternas e o MST surgiu, elas se uniram ao movimento, pois defendia os interesses delas: reforma agrária, a posse da terra, autonomia pessoal, democracia.

A má distribuição da terra

Pode-se discordar sobre os métodos do MST, sobre suas antiquadas palavras de ordem socialistas e a atuação de sua liderança. Mas é fato que o movimento, desde 1984, combate o pior mal do Brasil: a injustiça social.

O Brasil é um dos países com a pior distribuição de terras do planeta. Apenas 1% dos brasileiros detêm mais da metade da área agricultável, enquanto os pequenos agricultores, que são três quartos de todos os produtores, detêm apenas 20%. E milhões de famílias não têm terra alguma.

É uma herança da era colonial que, até hoje, pouco foi modificada, porque o poder dos fazendeiros segue intacto, e o lobby deles no Congresso e na imprensa é muito forte.

A Constituição de 1988 permite a desapropriação e distribuição de terras improdutivas, mas a resistência é grande. Nos locais onde o MST conseguiu obter a posse de terras, pequenos agricultores produzem grandes quantidades de alimentos para a população brasileira, muitos deles orgânicos. Assim, essa “organização terrorista” se tornou o principal produtor de arroz orgânico da América Latina.

Com meio milhão de famílias, o MST é hoje o maior movimento social latino-americano. E possivelmente também o mais bem-sucedido. Os brasileiros teriam todos os motivos para valorizar o que o MST alcançou. Mas, em vez disso, muitos o encaram com ignorância, rejeição e até ódio.

O Brasil seria um país mais pacífico e rico se o campo tivesse uma estrutura democrática. E é por isso que a extrema direita tenta criminalizar o MST, agora criando uma CPI para investigar o movimento. É um espetáculo com um único fim: manter os privilégios de poucos.

Um dos jovens no acampamento, um estudante de 19 anos do assentamento do MST Palmares 2, me disse: “O MST é a minha família, e tenho orgulho de ser parte dessa luta.” Os brasileiros também o deveriam ter.

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Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para jornais da Alemanha,Suíça e Áustria  Ele viaja frequentemente entre Alemanha, Brasil e outros países do continente americano. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.

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Fonte: https://www.dw.com/pt-br/o-brasil-deveria-ter-orgulho-do-mst/a-65440705