Clodoaldo Meneguello Cardoso
Observatório de Educação em Direitos Humanos

Unesp, campus de Bauru-SP

Numa entrevista online, a pequena Flor pergunta ao entrevistado:
 -­-­ Vô, o que você aprendeu com a pandemia? Ele pensou, pensou
 e respondeu lá do fundo: -­-­ É, minha neta, tenho aprendido tanta coisa. 
Quão provisória é a vida! Gilberto Gil jogou um beijo para a neta Flor
e sorriu contido…

A transitoriedade e fragilidade da vida humana é a percepção mais forte neste tempo de tristeza e ausências que a Covid 19 nos impõe. Falar de direitos humanos torna-se mais imperativo ainda neste momento, em que alastra pelo mundo o sofrimento pelas demandas básicas: acesso aos serviços de saúde, remuneração para sobrevivência, alimentação…

Por isso, é importante reafirmar o compromisso de cada um com atitudes e ações que indicam a necessidade de transformação de estruturas sociais que causam um sofrimento humano injusto. Esse compromisso ético-político exige humildade para aprender ou reaprender algumas lições desse tempo de pandemia.

(Re)aprendemos a deixar de lado muitas preocupações corriqueiras para lembrar que a vida, e vida digna, é o primeiro valor e direito fundamental. E quão frágil e efêmera ela é!

(Re)aprendemos que, mesmo com o distanciamento social necessário numa pandemia, não há sobrevivência isolada. Há um fortalecimento da ideia de comunidade global pela consciência da interdependência na defesa da vida. Nenhum indivíduo, grupo ou povo poderá ter imunidade isolada e permanentemente sem imunização pela vacina. Portanto, cuidar e da própria vida e da vida do outro é o primeiro grande dever ético.

(Re)aprendemos que a sobrevivência da humanidade depende do equilíbrio da vida do planeta Terra. Somos uma parte ínfima da vida planetária e, portanto, a ela pertencemos. Mas, nosso modo de ser antropocêntrico, consumista e extrativista agride e destrói a natureza; e ela reage buscando o seu equilíbrio. O novo coronavírus não representa uma crise pontual. Ele surge numa conjuntura histórica que sinaliza há pelos menos 50 anos um colapso socioambiental em curso. Muitos pesquisadores e povos tradicionais já anunciaram o que agora caminha para ser um consenso mundial. É preciso repensar o curso civilizatório e nele, seu projeto da ciência moderna baconiana-cartesiana, fundada no princípio da dominação da natureza e, por consequência, na dominação do outro. Como aprender a viver, não mais na arrogância de senhor da natureza, mas na humildade de um transformador cuidadoso?

(Re)aprendemos que a volta à normalidade, que tanto queremos, significa a liberdade pessoal de ir e vir, de conviver, de abraçar…, todavia, é evidente que a realidade social, há muito não está em “normalidade” no Brasil, com a pobreza, a cultura da violência, a matança da juventude nas favelas, o racismo estrutural, a violência contra a mulher e a população LGBT, o desemprego em massa, a perda dos direitos trabalhistas, a destruição das florestas e dos povos indígenas, o autoritarismo e as constantes ameaças à democracia. Quais as formas de luta, na quarentena, não para voltarmos à “normalidade”, mas para construirmos uma nova “normalidade no Brasil? E, como participante da comunidade humana, contribuir para um outro mundo possível?

(Re)aprendemos, com a pandemia, que — neste momento — o distanciamento social possível é muito mais do que uma obrigação; é, sobretudo, um direto humano de todos de proteção à vida. Sendo um direto, o Estado (e classes sociais abastadas) tem o dever constitucional (e ético) de garantir as condições sociais e econômicas para todos terem, no isolamento social, uma vida digna e protegida. Como garantir esse distanciamento social em favelas, onde faltam condições básicas de moradia, higiene e alimentação? Além da solidariedade emergencial digna, a pandemia reafirma a necessidade de justiça social profunda para a superação das desigualdades sociais, uma verdadeira pandemia histórica no Brasil.

(Re)aprendemos que com a presença da autoridade do Estado democrático de direito e socialmente justo é possível intervir técnica e humanamente para salvar vidas na pandemia, em parceria com as instituições e movimentos sociais. Já o Estado neoliberal, refém das flutuações das bolsas, prefere tentar salvar a economia a proteger vidas. E isso revela ser um falso dilema. Não há economia em vidas, mas é possível proteger vidas se a economia, mesmo em crise, estiver voltada para o bem estar de todos e não para o lucro de poucos.

(Re)aprendemos que somente a ciência pode nos livrar definidamente do novo coronavírus. A ciência, construída na modernidade ocidental, foi sem dúvida alguma uma das grandes conquista da humanidade. Todavia, esta mesma ciência, que hoje endeusamos como tábua de salvação, também traz as contradições históricas do capitalismo. O discurso científico moderno, ao lado filosófico e do religioso, serviu também como justificativa para o projeto de expansão e dominação da cultura europeia na colonização dos outros povos. Ainda hoje, a ciência da saúde, por exemplo, produzida em grande parte dos cursos de medicina, não prioriza estudos sanitaristas e doenças decorrentes das péssimas condições de vida de mais da metade da humanidade. Que mundo é esse, em que os bens da ciência estão ao alcance apenas de 30% da humanidade?

(Re)aprendemos que o fundamento ético dos direitos humanos, numa humanidade tão diversa culturalmente, não está em um princípio filosófico universal. O diálogo sobre o respeito à dignidade humana pode ser estabelecido entre pessoas, grupos e povos a partir de um sentimento comum: a empatia com o sofrimento do outro. Sim, a sensibilidade ética para com o sofrimento do outro, pudemos presenciar pelo mundo afora neste tempo de pandemia. O respeito ao mistério da morte e à dor das famílias enlutadas — contrapondo-se à insensibilidade, ao descaso e até mesmo ao desrespeito em relação ao sofrimento alheio — é uma conquista civilizatória a ser cultivada e expandida na educação desde a infância.

(Re)aprendemos que a ética tem nome: solidariedade. Diante das imagens chocantes da miséria esquecida e ocultada, do desespero na porta dos hospitais e da dor do luto aflorou o valor da empatia. Este enorme sofrimento despertou na sociedade todo tipo de ajuda pessoal e empresarial: alimentação, remédio, material de higiene, aparelhos hospitalares etc. Realmente o tempo de pandemia revelou ser um tempo de solidariedade para muitos. Todavia, é uma solidariedade “emergencial” que pode passar e sempre reaparecer nas catástrofes A solidariedade terá um poder transformador, ao longo do tempo, se tornar engajamento pessoal numa luta coletiva contra as desigualdades sociais, contra os preconceitos, a destruição ambiental, o individualismo e pela defesa dos direitos humanos, na construção de uma sociedade democrática, plural e com justiça socioambiental.

(Re)aprendemos que o diálogo estreito entre a escola, a família e a comunidade é uma exigência para a realização mais qualitativa do direito à educação, seja presencial ou, excepcionalmente, a distância. E que a educação, além da qualidade científica e técnica deve ter necessariamente também uma qualidade ética e social, aquela que nos torna sujeito de direitos na convivência respeitosa e solidária com o outro, também sujeito de direitos.

(Re)aprendemos, enfim, que a humanidade só é humanidade se for para todos. Senão, não é humanidade. A seleção natural é seleção natural, não é humana. A nossa vida humana é justamente humana, porque nós — contrariando a seleção natural excludente — criamos uma ética que propõe a inclusão de todo mundo numa comunidade plural, solidária e com igualdade de diretos para todos sem exceção.

A pandemia do novo coronavírus vem trazendo muitas tristezas e ausências, e também revelando ignorâncias arrogantes e projetos fascistas. Entretanto, em nossa solidão solidária, ela nos chama para refletirmos sobre o sentido de nossa vida pessoal, comunitária e sobre o futuro que queremos como humanidade.

Fonte: https://oedh-unesp.webnode.com/licoes-de-dh-na-pandemia-introducao/