Termo está em voga após declarações de Michelle Bolsonaro na Avenida Paulista e ideário já é adotado por grandes e endinheiradas igrejas ligadas ao bolsonarismo
O termo “teologia da dominação” entrou no radar da opinião pública a partir da manifestação realizada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) na Avenida Paulista em 25 de fevereiro. Na ocasião, a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro fez um longo discurso misturando questões religiosas e políticas. Dentre as obviedades, a de que seu marido teria sido um “escolhido por Deus” para construir o “reino” no Brasil.
“Por um bom tempo fomos negligentes ao ponto de dizer que não poderiam misturar política com religião. E o mal tomou e o mal ocupou o espaço. Chegou o momento, agora, da libertação. ‘Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará’ foi o versículo que ele [Bolsonaro] usou em toda campanha e eu creio que isso foi gerado no mundo espiritual, porque eu acredito em um Deus vivo. Um Deus todo poderoso que é capaz de restaurar e curar a nossa nação. Não desistam, mulheres, homens, jovens, crianças. Não desistam do nosso país. Continue orando, continue clamando porque eu sei que o nosso Deus, do alto dos céus, irá nos conceder um socorro”, disse, ao lado do pastor Silas Malafaia.
O discurso fez com que parte da cúpula do PL passasse a considerar Michelle como a opção mais viável para substituir Bolsonaro nas urnas. Nas entrelinhas, de maneira não tão óbvia, Michelle tornava explícito o projeto de poder dos setores evangélicos envolvidos com a teologia do domínio. O professor João Cezar de Castro Rocha, historiador da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), foi quem chamou a atenção para o perigo da nova modalidade teocrática.
Em entrevista à Agência Pública, ele explica que a teologia do domínio, muito utilizada por Michelle, Nikolas Ferreira e figuras como Silas Malafaia, é oriunda dos EUA e já domina uma série de igrejas brasileiras, como a própria Igreja Batista da Lagoinha, onde o deputado mineiro professa sua fé.
“Eles não estão brincando, os evangélicos estão de fato partindo para o momento em que a teologia do domínio tentará chegar ao poder político”, afirmou Castro Rocha, que vê a possibilidade, em caso de sucesso desse projeto de poder, de que tenhamos uma espécie de teocracia que busque subordinar toda a vida brasileira a essa específica variação do cristianismo.
Os “Sete Montes” e o “ungido de Deus”
Já Pietro Nardella-Dellova, doutor em Ciência da Religião pela PUC-SP, explicava ao Congresso em Foco ainda em 2022, e motivado por discursos de Michelle, o que significam os “Sete Montes” da teologia do domínio.
O acadêmico diz que ao longo da trajetória humana, os cristãos teriam perdido o seu domínio sobre esses tais “Sete Montes”. Seriam eles: família, religião, educação, mídia, lazer, negócios e governo/política. E agora, a teologia do domínio propõe uma “reconquista”. O objetivo é uma ampla reconstrução do mundo e da própria vida humana a partir desses valores.
“A Teologia do Domínio tem um abordagem pesada: é preciso tirar o diabo do poder. É preciso dominar o poder político fazendo com que os ungidos do Senhor tomem conta do poder político, que é o discurso da Michelle Bolsonaro. Segundo Michelle, havia demônios, havia pacto com demônios, eles estavam presentes no Planalto, e o Senhor ungiu o ‘mito’, o ‘Messias’, que foi batizado no Rio Jordão para libertar o povo. Perceba a montagem da narrativa”, analisou Dellova.
Nesse sentido, uma figura central é o chamado “ungido de Deus”. Como apontou Castro Rocha, a inspiração fica por conta da história do Rei Davi.
Mas não o astuto Davi jovem, que derrotou o gigante Golias. O ungido de Deus é o Davi Rei, que cometeu todo tipo de crime e pecado contra seu próprio povo mas, mesmo assim, era considerado um “abençoado”.
A narrativa se encaixa, no Brasil atual, na figura de Jair Bolsonaro, o político do baixo clero, expulso do Exército, que declarou estar “Deus acima de tudo” e governou a nação apesar dos seus inúmeros defeitos. Não por acaso grupos evangélicos partidários da teoria do domínio tiveram as portas abertas para participar do Governo Bolsonaro nos últimos anos.
“Bolsonaro, então, mostra fotografias sendo batizado no rio Jordão, pelo pastor Everaldo (preso em 2020). Há um preparo do Bolsonaro para transformá-lo num homem ungido que veio para “libertar” e o papel da Michelle é a de serva do Senhor. O discurso, a narrativa são muito fortes”, completou Dellova ainda em 2022, antes de que a ex-primeira-dama fosse cotada como uma herdeira política do então presidente.
As etapas de Gary North
O economista Gary North, um neoliberal defensor da escola austríaca, é também um dos principais ideólogos da teologia da dominação. Em sua obra marcada por reflexões acerca de economia, política e cristianismo, propunha duas etapas para a implantação de um projeto de poder a partir da visão religiosa.
Numa primeira etapa, a “liberdade de culto ainda é assegurada”, coloca o pensador. Esse é o momento em que os partidários da teologia do domínio vão fundar suas igrejas e expandir a doutrina para o maior número de congregações e fieis possível, até que tenham gente suficiente para entrar na política.
Nesse momento entra a segunda etapa, que é quando os fieis deste tipo específico de cristianismo começam a dar as cartas no cenário político e tentam expandir sua influência. O objetivo final é uma espécie de ‘revolução teocrática’ que fará o Estado girar em torno do específico cristianismo adepto de tal teologia.
Anos 90, Igreja Universal e os primeiros candidatos
A Igreja Universal do Reino de Deus, uma das pioneiras no Brasil a seguir esses preceitos, parece desenvolver as etapas. Fundada em 1977, passou pouco mais de 10 anos tentando se expandir, ainda de forma menos suntuosa como nos dias atuais. Em 1988, não se opôs à Constituição Federal que instituía um Estado laico no Brasil.
Pelo contrário, a liberdade de culto e as isenções de impostos permitiram o crescimento da instituição, sobretudo durante os anos 90. Na mesma década foi feita a compra pelo seu líder, o bispo Edir Macedo, de canais de rádio e televisão. Mais especificamente do grupo Record.
Na mesma época, os primeiros candidatos identitariamente evangélicos – não necessariamente da Iurd – eram lançados na política: Anthony Garotinho no Rio, que mais tarde, em 2002, chegaria em terceiro lugar na disputa presidencial; e Francisco Rossi, ex-prefeito de Osasco (SP) que começou sua carreira política na Arena e terminou no PL, concorreu à prefeitura de São Paulo como um “candidato das igrejas”. Ele havia participado da Constituinte e se converteu ainda nos anos 90.