Carolina Cincurá Barreto, candidata que passou na ampla concorrência, conseguiu uma medida cautelar e tomou posse da vaga no dia 27 de agosto. A medida contraria decisão do STF e fere regimento do próprio edital do concurso da UFBA.

Por Andressa Franco

 

Depois de se submeter a provas teórico-prática, de didática, de títulos, defesa de memorial, banca de heteroidentificação e ser aprovada para a vaga de docente na Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA), a médica otorrinolaringologista, Lorena Pinheiro Figueiredo, foi surpreendida no último dia 21 de agosto com a perda da vaga por uma liminar judicial.

Lorena é mestre e doutora em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina da UFBA, e disputou o concurso (edital nº01/2023) da universidade, que disponibilizou, ao todo, 30 vagas de professor de magistério superior. Ela foi aprovada na quarta posição e, como havia a reserva para pessoas negras, foi declarada vencedora, com publicação no Diário Oficial da União de 13 de agosto de 2024. Os outros candidatos negros aprovados sob a mesma regra do edital, foram nomeados. Exceto Lorena, cuja vaga foi arrebatada por uma liminar judicial a favor de outra candidata.

“É uma situação difícil, muito desafiadora para mim, enquanto cidadã e mulher negra, e enquanto representante de um número muito grande de pessoas que não têm acesso, oportunidade, que têm seus direitos violados”, desabafa a médica.

Carolina Cincurá Barreto, candidata que passou em primeiro lugar na ampla concorrência, acionou a Justiça Federal e conseguiu uma medida cautelar no dia 21 de agosto. A juíza da 1ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária da Bahia, Arali Maciel Duarte, acatou o entendimento de que, como apenas uma das vagas era para a disciplina de Otorrinolaringologia, a UFBA não poderia estipular a reserva de vagas para pessoas negras.

Assim, a magistrada concedeu o pedido de tutela de urgência para suspender a nomeação de Lorena e, com isso, Carolina foi convocada na última terça-feira (27).

Para Lorena, a decisão desrespeita a Lei de Cotas e fere o regimento do edital do concurso, que prevê reserva de vagas de 20% do número total de vagas, e não por área de conhecimento. 

“Por mais que essa explicação fosse dada, e conste nos autos judiciais, houve a decisão. E isso não aconteceu com as outras áreas de conhecimento, todas foram respeitadas em relação à aplicação das cotas. Todos já foram convocados e nomeados professores. Isso só aconteceu com a vaga para a Faculdade de Medicina, e a gente percebe que tem também um peso social grande nessa decisão”, observa Lorena.

Reserva de vagas por cotas da UFBA segue decisão do STF

Em documento com esclarecimentos à juíza, a UFBA lembrou que a lei que assegura a aplicação do sistema de cotas raciais nos concursos públicos (Lei 12.990), quando promulgada em 2014, previa que houvesse reserva de vagas para concursos cujas vagas fossem superiores a três. No entanto, apesar de implementar a normativa nos seus concursos de 2014 a 2018, a UFBA não alcançava o percentual estabelecido, já que a maioria dos concursos são para apenas uma vaga.

“Sendo assim, a partir do Edital nº 02/2018 foi adotada uma nova redação e a reserva passou a ser aplicada sobre o número total de vagas”, justifica a UFBA, que fez a mudança também baseada em um voto do Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 41 de 2017. Na decisão, ele argumenta que os órgãos de Estado não devem utilizar a divisão de vagas por especialidade como motivação para não aplicação da reserva, pois isto implica em descumprimento da Lei 12.990. Como o Concurso Docente é uma seleção de um único cargo, a universidade passou então a aplicar o novo método de distribuição de vagas a partir do segundo semestre de 2018.

Felipe Jacques, advogado que representa Lorena, reforça o respaldo da UFBA na decisão do STF, de que o percentual de 20% tem que se incidir sobre todo o número de vagas do concurso, não sendo possível distinguir especializações. Ele explica que embora os candidatos concorram a áreas de conhecimentos diferentes, eles formam um cargo único: de professor do magistério superior. De modo que a Lei de Cotas não teria efetividade se fosse permitido utilizar a divisão de vagas por especialidade.

“Nunca vai ter cota para pessoa preta em concurso com uma vaga. A UFBA, pioneira como é, consultou sua Procuradoria, que deu um parecer confirmando que a universidade poderia passar a fazer incidir o percentual sobre todas as vagas do concurso”, pontua o advogado. Ele afirma ainda que outras universidades começaram a copiar a UFBA. “Até por determinação do Ministério Público Federal, que viu que o sistema dava certo e era correto”, complementa.

Como o concurso feito por Lorena possuía um total de 30 vagas, seis delas, em diferentes áreas, formariam os 20% previstos pelo edital para cotistas. Entre os candidatos autodeclarados negros, a otorrinolaringologista teve a melhor nota. 

A própria lista divulgada pelo Diário Oficinal da União com o resultado do concurso ressalta: “Vagas: 1, sendo esta preferencialmente ocupada por candidato autodeclarado negro, conforme Lei nº 12.990/2014 e Edital nº 01/2023”. 

Diante da violação das normas, Lorena acredita que a situação não a prejudica apenas individualmente, mas a população negra de maneira coletiva. Vale destacar que outros candidatos negros aprovados em concursos públicos já tiveram suas vagas ameaçadas por ações judiciais em diferentes universidades federais sob a mesma argumentação. 

“A UFBA teve que acatar essa decisão, que não é favorável no sentido estrutural da universidade, e pode abrir precedentes negativos para a aplicação da Lei de Cotas de agora em diante. É passar por cima de algo que já está muito bem estabelecido” ressalta Lorena.

A defesa da médica negra já entrou com recurso para anulação da medida liminar, e ela está disposta a levar o caso até a instância suprema se necessário.

Felipe reconhece que a batalha judicial não será fácil, mas acredita que o arcabouço bem estabelecido da decisão do STF está a favor de Lorena. “A meu ver existe um descumprimento e um desrespeito à decisão do STF. Tenho otimismo de que vamos conseguir demonstrar que deve ser garantido o sistema de cotas, que atende a uma finalidade de reparação histórica no país”, finaliza.

Tentamos contato com Carolina Cincurá Barreto pelo instagram, mas até o fechamento da reportagem não tivemos retorno. 

Lorena foi responsável por importante pesquisa de sequela da Covid-19

Lorena Pinheiro Figueiredo ficou conhecida nacionalmente em 2022 quando a sua pesquisa de doutorado na UFBA foi apontada como um dos estudos mais avançados do Brasil no tratamento da perda de olfato pós Covid-19.

O estudo propôs um tratamento para o fenômeno, chamado parosmia, onde 128 pacientes foram acompanhados. “Foi um tratamento excelente, tivemos um bom avanço e o esclarecimento foi uma questão muito importante desde que a Covid-19 se formou um problema mundial com a pandemia”, recorda Lorena.Várias reportagens foram publicadas na imprensa nacional na época, e o Programa Fantástico, da TV Globo, deu destaque ao estudo com uma matéria veiculada em 2022

Fonte: https://revistaafirmativa.com.br/cotista-negra-perde-vaga-para-candidata-branca-em-concurso-para-docente-na-ufba-apos-decisao-de-juiza/