Thais Carrança
Da BBC News Brasil em São Paulo
“Fui fazer um procedimento médico e, em duas ocasiões, cheguei ao local e fui informado de que meu plano de saúde estava suspenso por falta de pagamento pela empresa. Diante do constrangimento, me ofereci para pagar a sessão, mas disseram que não poderia ser assim e que eu precisaria remarcar”, conta um professor do Colégio Palmares, escola de alto padrão da capital paulista, que falou à BBC News Brasil sob condição de anonimato.
A suspensão do plano de saúde por falta de pagamento é apenas uma das faces da crise financeira enfrentada pela escola, que cobra de seus alunos mensalidades de cerca de R$ 5 mil e foi comprada por um grupo de investimentos — o LIT Capital Group — em novembro de 2020, por R$ 150 milhões.
Desde então, alunos, professores e funcionários voltaram parcialmente às aulas presenciais em meio à falta de insumos básicos como toalha para secar as mãos, álcool, sabonete e pão para o café da manhã dos trabalhadores auxiliares, conforme relatos dos profissionais.
Em junho, vieram os primeiros atrasos de salários, que se repetiram em agosto e chegaram acompanhados de uma onda de demissões.
Alguns funcionários dizem que foram informados de que seriam demitidos e que deveriam buscar a Justiça para receber seus direitos, ou então poderiam continuar trabalhando, mas recontratados como pessoa jurídica (“pejota”), com salários menores.
“Estamos extremamente abalados, funcionários chorando pelos corredores porque não sabem o que fazer. Como isso chegou para o pessoal da manutenção primeiro, eles acham que nós somos mais leigos no assunto. O clima está péssimo, todos se sentido ameaçados. Eu mesma estou com crise de ansiedade e não estou dormindo”, disse uma funcionária, que foi demitida na semana seguinte após conversar com a BBC News Brasil, por não aceitar ser “pejotizada”.
O SinproSP (Sindicato dos Professores de São Paulo), entidade que representa os professores de escolas particulares do Estado, está acompanhando o caso e deve apresentar denúncia contra a escola ao Ministério Público do Trabalho nesta semana.
Em nota, o Colégio Palmares confirmou o atraso de salários em duas ocasiões, mas disse que os pagamentos referentes a julho 2021 deverão ser quitados nos próximos dias. Por telefone, a equipe de marketing da escola confirmou as demissões, mas negou a informação de que os trabalhadores teriam sofrido ameaças.
O funcionário disse ainda que “não tinha informação” sobre as alegações dos trabalhadores auxiliares de que eles estariam sendo demitidos sem receber as verbas rescisórias e mediante proposta de “pejotização” com redução salarial.
Ainda segundo ele, as demissões e atrasos de salários acontecem como resultado das dificuldades enfrentadas pela escola na pandemia. “A demissões estão ocorrendo devido à situação atual do país. É uma questão de sobrevivência, em consequência da pandemia”, disse o porta-voz.
A demanda da BBC News Brasil foi respondida pelo funcionário do marketing, após a assessoria de imprensa externa contratada pelo Palmares informar que não poderia fazer o atendimento porque também não estava recebendo da escola.
A entrada dos investidores financeiros na educação básica brasileira
A crise enfrentada pelo Palmares após sua aquisição por um grupo de investimentos é a materialização dos piores medos de pais, professores e funcionários quando uma fusão ou aquisição acontece no setor de educação privada.
Segundo consultores especializados no mercado de educação, o movimento de entrada de investidores financeiros e grandes grupos no setor teve início no ensino superior e chegou à educação básica ainda antes da pandemia.
Agora, com as dificuldades financeiras enfrentadas por muitas escolas privadas em meio à perda de alunos e concessão de descontos, o movimento de consolidação do setor — jargão do mundo empresarial para a junção de empresas através da compra e união de negócios, que leva a uma maior concentração de mercado — deve se intensificar.
“O que estamos vendo no setor de educação básica é o que aconteceu no século passado — no final dos anos 1990 — nas instituições de ensino superior”, diz Francisco Borges, consultor da Fundação FAT (Fundação de Apoio à Tecnologia).
“O setor de serviços no Brasil ainda é muito pouco profissional, ele é familiar. Então é muito comum que haja o interesse de setores financeiros para tentar ‘atacar’ o serviço fazendo a aquisição dessas instituições”, completa o especialista.
“A expectativa é ganhar em escala. Dado que uma instituição familiar não tem orçamento ou recursos para crescer, eles enxergam que esses grupos têm marcas fortes o suficiente para aumentar em escala”, observa.
Medo na comunidade escolar
Uma característica comum quando uma aquisição é anunciada no setor de educação básica é o temor de alunos, pais, professores e funcionários de que a escola perca suas características, como a linha pedagógica, e demita trabalhadores em busca de redução de custos.
O consultor Francisco Borges, da Fundação FAT, avalia que as preocupações fazem sentido.
“Todos esses movimentos [de fusões e aquisições] são uma dúvida, uma incógnita”, diz o especialista.
“Via de regra, o que nos coloca numa escola é a confiança naquele método de ensino. Não é certo que quem comprou vai respeitar o projeto pedagógico original, é muito comum esse grupos comprarem, enxergarem alguns ganhos operacionais, mas em geral eles tendem a baratear o custo.”
“O sindicato dos professores é o que tem mais que se preocupar, pois quando houve a compra das instituições de ensino superior, houve uma padronização de qualidade, e essa padronização foi ‘da base para baixo'”, observa.
Fábio Zambon, diretor do SinproSP que está acompanhando o caso do Colégio Palmares pelo sindicato, é crítico ao novo modelo.
“É um desastre para a educação do Brasil, porque são grupos de investimento que visam lucro, vão tratar a educação como mercadoria”, afirma. “Eles não estão preocupados com o modelo pedagógico, mas sim com o que a escola pode trazer de lucro.”
Zambon afirma, porém, que o caso da Palmares é particular dentro do panorama das escolas compradas por grupos em São Paulo. “Teve problemas assim: o grupo investidor entra, manda gente embora, reestrutura tudo. Esse tipo de problema, teve. Mas não teve esse problema de não pagar as pessoas”, observa.
Segundo ele, o empresário que atualmente responde pelo LIT Capital Group, Carlos Augusto Melke Filho, argumentou ao sindicato que o atraso nos pagamentos se deveu a um bloqueio pelo banco da conta garantia em que a escola recebe as mensalidades, em meio a um processo de transição em que Melke Filho está assumindo diretamente a administração da escola.
Esse não é o primeiro negócio do empresário no setor de educação.
Presidente do Lide MS (Grupo de Líderes Empresariais de Mato Grosso do Sul), o empresário se tornou réu em 2019, suspeito de participar de suposto esquema de comercialização de vagas para curso de medicina e de fraudes de R$ 500 milhões no Fies, programa do governo federal de bolsas de estudo para o ensino superior privado.
Melke Filho foi um dos alvos da Operação Vagatomia, da Polícia Federal, que investigou a Universidade Brasil, instituição de ensino do interior paulista.
A BBC News Brasil tentou contato com o advogado Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, que representava Melke Filho em 2019 neste caso, mas o escritório Advocacia Mariz de Oliveira informou que o criminalista não está mais à frente da defesa.
A pandemia e o setor de ensino privado
“Assim como muitas empresas brasileiras, o Colégio Palmares também teve suas atividades afetadas pela pandemia”, justificou a empresa em nota, quanto ao atraso de salários.
De fato, o setor de ensino privado foi duramente atingido pela pandemia — impacto que deve intensificar as fusões e aquisições no setor, segundo analistas.
Conforme o Censo Escolar 2020, o ensino básico de maneira geral perdeu 579 mil alunos entre 2019 e 2020, como resultado da crise de saúde pública que impediu as aulas presenciais em todo o país durante meses.
No entanto, apesar de o ensino privado representar apenas 18,6% da oferta total de vagas, ele foi responsável por quase 60% das perdas de matrículas. Foram 235,4 mil matrículas perdidas no ensino público (-0,6%), contra 343,6 mil no privado (-3,8%).
Em uma pesquisa num universo mais restrito, de cerca de 2 mil escolas, a consultoria educacional Rabbit descobriu que a perda de alunos continuou na passagem de 2020 para 2021. Segundo levantamento da empresa, entre janeiro de 2020 e 31 de março deste ano, o universo de escolas analisadas teve uma redução de 34% no número de alunos.
Para Christian Coelho, presidente do Grupo Rabbit, o desemprego e a perda de renda das famílias teve peso importante na redução do número de matrículas nas escolas privadas. Ele avalia, porém, que também houve uma descrença dos pais com relação à migração do ensino para o ambiente virtual.
“Na educação infantil, os alunos saíram logo no começo”, lembra Coelho. “Virou a chave da pandemia, os alunos saíram da educação infantil, porque é muito difícil fazer online com os menores. Já as escolas maiores [que oferecem do ensino infantil ao médio] perderam matrículas durante todo o ano, mesmo oferecendo uma média de pouco mais de 20% de desconto.”
“Houve uma parcela gigantesca de medo [da contaminação], e também os pais associaram a aula online a não-aula. Por exemplo, o pai pagava R$ 1 mil pelo período integral, agora por uma hora de aula online por dia queria pagar R$ 100, sem conseguir enxergar a mudança metodológica”, considera.
Borges, da Fundação FAT, observa que essa combinação de perda de alunos e concessão de descontos fragilizou a situação financeira de muitas escolas. E que isso deve resultar em novas fusões e aquisições no setor.
“A pandemia deve ser um grande catalisador desses processos, porque colégios muito bons, que não tinham muito lucro, mas tinham saúde financeira, se tornaram deficitários”, afirma. “O mantenedor, não tendo outra opção, acaba tendo que vender a instituição dele. Então a pandemia deve ser um grande marco de muitas instituições de ensino sendo compradas por outros grupos de educação ou por grupos de investimento.”
Para o consultor, o problema é que esse tipo de negócio pode colocar em risco a continuidade de instituições tradicionais, caso a aquisição não resulte no resultado esperado pelo investidor.
“Os grupos investidores chamam escolas de ‘ativos’. Ativo é um bem e esse grupos não têm coração ou alma, por assim dizer. Se a escola que eles investirem não der certo em três, quatro anos, eles encerram o negócio e pronto”, afirma.
Já Coelho, da Rabbit, avalia que há riscos iguais numa empresa familiar ou numa adquirida por um grande grupo. “Uma aquisição mal sucedida pode comprometer sim [a continuidade da empresa]. Mas é o mesmo risco que corre uma empresa familiar que tem uma gestão mal feita, o risco é igual para todo mundo”, considera.
Concorde-se com um ou com outro, o sentimento dos funcionários da Palmares após a venda da escola fundada em 1975 é de frustração.
“Os pais já estão sabendo que os professores não estão sendo pagos, no entanto, ele [Melke Filho] atende os pais dizendo que haverá a construção de um novo colégio”, diz o professor que optou pelo anonimato por temor de represálias. “É desesperador, a gente entra no colégio, tem funcionários chorando, vários com problemas de saúde. A grande sensação que temos é que é uma estratégia de falência, que eles querem falir o colégio.”