Um texto muito impactante do jornalista Jamil Chade publicado no site do UOL sábado, 2/07/2022
Prezada menina,
Enquanto a tua história era alvo de um dramático debate no Brasil, te conto que numa sala aqui na sede da ONU (Organização das Nações Unidas) em Genebra, homens engravatados — e algumas poucas mulheres — negociavam um texto de uma resolução sobre teu destino. O teu, o das tuas irmãs, primas e milhões de garotas que, como você, querem sonhar.
Ali, apesar das boas intenções de várias delegações, o que estava em jogo era algo mais profundo: a autonomia do teu corpo. Vocês têm ou não direito à educação sexual? O aborto deve ou não ser criminalizado? A quem pertence, enfim, o corpo de vocês?
Uma negociação palavra por palavra, num texto de um projeto de resolução. Como se a vida de cada uma de vocês pudesse ser barganhada.
Ouvindo aquele intenso debate, me passou pela cabeça uma pergunta: onde é que ficava a sala onde a autonomia do corpo masculino está sob negociação? Quem são os autores dos projetos que têm como objetivo limitar certos direitos sexuais para os homens?
Obviamente, essa sala não existe e essa negociação está fora de questão. Quem ousaria, não é?
Mas não te escrevo para ampliar teu trauma, nem muito menos fazer qualquer recomendação. Tenho um filho com a tua idade e não tenho como não constatar como, ainda hoje, a vida dele é poupada de todo o teu sofrimento. Simplesmente pelo fato de ter nascido homem.
Vim aqui, portanto, apenas constatar o nosso fracasso, gritar ao teu lado e, de forma envergonhada, pedir desculpas.
Como homem, é extremamente frustrante admitir que minha geração ainda não entendeu o significado da palavra “igualdade”. No Brasil, aqui na ONU e em dezenas de países pelo mundo, o teu corpo é um ato político. Teu ventre rende votos aos charlatães. Teu desejo é criminalizado. Teu destino não depende apenas de teus planos e medos. Teu sangue que nos dá vida é motivo de constrangimento.
Você é, no fundo, mais uma camada da história da opressão estrutural contra meninas e mulher que se confunde com a própria história da Humanidade.
Há poucas décadas ainda, mesmo nos países ricos, uma mulher precisaria de receita médica para comprar um teste de gravidez. Na Austrália até os anos 80, vocês só podiam entrar de saia nos tribunais.
Em vários países europeus, o passaporte apenas era concedido a uma mulher com o consentimento do marido ou irmão. Em outros, o cartão de crédito apenas ia para a mulher com a assinatura de um homem ao seu lado.
Aqui na Suíça, as mulheres apenas puderam votar nos anos 70. Sim, anos 70 do século 20. Sabe qual era o argumento de grupos contrários ao direito ao voto para as mulheres? A sua participação política minaria o caráter feminino de vocês, além de ameaçar a criação dos filhos.
E sabe como eram chamados os grupos que lutavam contra o voto das mulheres? Pró-Família. Acho que já ouvi esse termo em algum lugar nos trópicos, nos últimos anos.
Em pleno século 21, homens têm carreiras. Mulheres têm emprego. De acordo com o Fórum Econômico Mundial, no atual ritmo de avanço das condições salariais entre homens e mulheres, a equivalência de renda vai ser atingida em 209 anos. Ou seja, as netas de tuas netas talvez poderão sonhar. Estamos prontos para aceitar isso?
O “não” que a Justiça emitiu inicialmente no teu caso, portanto, faz parte de uma negação perene em relação às meninas e mulheres.
Com apenas onze anos, você descobriu da forma mais perversa a luta que uma menina enfrenta para existir. Uma luta numa sociedade que começa desde cedo a determinar o que vocês devem ser, o que não podem ser, onde devem estar, do que podem brincar, que palavras usar. Gosto quando Chimamanda Ngozi Adichie diz que saber cozinhar não é algo que vem pré-instalado na vagina.
Uma luta diante de um poder estabelecido por nós homens, arrogantes o suficiente para julgar a todas vocês com réguas diferentes àquelas usadas para nossos filhos homens.
Nos últimos 30 anos, avanços reais foram obtidos em lei em algumas partes do mundo. Mas a transformação que tais mudanças promoveram gerou hoje uma contrarreforma, violenta, repleta de ódio e poderosa.
Apesar de o aborto inseguro ser a maior causa de morte materna no mundo e de que quase metade de todos os procedimentos — por serem feitos de forma clandestina — ameaçam a vida da mãe, a Corte Suprema dos EUA decidiu ir em uma direção contrária à expansão de direitos. Só posso concluir que a morte de mulheres não tem o mesmo peso que a de um homem.
Se a criminalização da mulher for a resposta, nós homens teremos de ter a audácia então de propor: “prendam-me junto”.
A luta por tua emancipação precisa ser a luta de uma sociedade. Mas qualquer debate passa em primeiro lugar, pela autonomia do teu corpo. O ponto inicial de todas as lutas.
Não há nada que eu possa te dizer que vá reduzir tua dor. Mas é urgente que possamos mudar a forma de criar uma nova geração para que ela considere inconcebível a violência que você está sofrendo. Como pai de dois meninos, tento trazer a subversão contra essa opressão ao nosso café da manhã diário, às nossas conversas. Temos de criar uma ruptura profunda e isso envolve cada uma de nossas famílias.
Mas não podemos esperar até que as crianças de hoje assumam o poder. Teu sofrimento imediato é intolerável. A tortura pela qual você foi submetida desumaniza toda uma sociedade.
Com um enorme sentimento de revolta e solidariedade, deixo aqui uma mensagem de resistência.
Tua dor é nossa dor. Tua luta é a nossa luta.
Saudações democráticas,
Jamil Chade