Cientista defende que o grande potencial econômico da floresta é mantê-la em pé, mas que é preciso um forte combate ao crime organizado para zerar a degradação o quanto antes
O climatologista Carlos Nobre é uma das principais vozes da ciência que alertam para os riscos de savanização da Amazônia caso o desmatamento não seja freado e zerado até, no máximo, 2030. Em entrevista ao EL PAÍS por telefone às vésperas da Cúpula do Clima, o cientista afirmou que ou o Governo Jair Bolsonaro muda sua conduta ou corre o risco de sofrer sanções econômicas. “Se o Brasil quiser deixar de ser o pária ambiental do planeta, não dá para ficar em cima do muro nem deixar para mudar de postura depois, para a COP-26”, explica o cientista, referindo-se à conferência do clima da ONU que será realizada em novembro deste ano, em Glascow (Escócia). “Eu acho que vai ter muita sanção econômica. Podem enterrar de vez o acordo entre Mercosul e União Europeia, por exemplo. Por isso, é muito importante que o desmatamento caia ainda neste ano. Já se sabe que não vai cair muito, mas não pode crescer”, alerta ele.
Atualmente, pouco mais de 80% da cobertura original da Amazônia está preservada. O número parece alto, mas estudos científicos indicam que a floresta está “na beira do precipício da savanização”: a estação seca está três ou quatro semanas mais longa no sul da região e a floresta absorve menos carbono e recicla menos água, explica Nobre. “Há colegas meus que dizem que savanização ja começou. Eu ainda acho que dá para evitar o pior se a gente zerar rapidamente o desmatamento e restaurar grandes áreas, gerando chuvas e diminuindo temperaturas. Mas isso tem que acontecer a jato”. Para salvar a Amazônia, o mundo também precisa ter sucesso na aplicação do Acordo de Paris e não deixar que a temperatura do planeta suba mais que 1,5 grau celsius. Caso contrário, todo esforço de preservação será em vão, explica Nobre. Os desafios são enormes.
Durante seu discurso de três minutos na Cúpula do Clima nesta quinta-feira, Bolsonaro garantiu que o Brasil tem a meta de zerar o desmatamento ilegal até 2030. De acordo com Nobre, mais de 90% de todo o desflorestamento da Amazônia é ilegal e não tem a ver com produção agrícola, mas sim com o mercado de terra. Para mudar esse quadro, é preciso combater o crime organizado, o que praticamente zeraria toda a degradação da floresta, explica. Em sua fala, Bolsonaro reconheceu que medidas de comando e controle são parte da reposta. “Apesar das limitações orçamentárias do Governo, determinei o fortalecimento dos órgãos ambientais, duplicando os recursos destinados a ações de fiscalização”, assegurou o presidente. As metas apresentadas pelos países em desenvolvimento, incluindo o Brasil, foram elogiadas pelo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, em seu discurso de encerramento nesta sexta.
Porém, um dia depois do pronunciamento de Bolsonaro, aconteceu exatamente o inverso do que ele prometeu diante de 40 líderes internacionais: entre os vetos no Orçamento de 2021, o Governo federal cortou nesta sexta-feira 19,4 milhões de reais do Ibama, sendo que 11,6 milhões seriam destinados para atividades de controle e fiscalização ambiental e seis milhões para a prevenção e controle de incêndios florestais. Bolsonaro também retirou sete milhões do ICMBio, outro braço da fiscalização ambiental, que seriam destinados à criação, gestão e implementação de unidades de conservação. Também cortou 4,5 milhões do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima. No total, os cortes do Ministério do Meio Ambiente somam 240 milhões de reais para o ano de 2021.
“Tem que haver um esforço de guerra para acabar ou diminuir o crime na Amazônia. Não pode ser só um discurso de tolerância zero, porque na prática o crime continua acontecendo”, enfatiza Nobre. Os anos de 2019 e 2020 registraram um importante aumento no desmatamento. Em 2021, o mês de março foi o pior dos últimos 10 anos. “O general Mourão [vice-presidente e responsável pelo Conselho da Amazônia] afirmou que o Exército iria sair da Amazônia no dia 30 de abril e que o Ibama iria contratar 700 fiscais temporários. Até agora não contratou nenhum. Muitos fiscais foram aposentados por idade ou estão fora de campo com a pandemia”, alerta o cientista, que teme novo aumento do desmatamento a partir de maio, quando começa o período mais seco na região amazônica.
Nobre explica que o desmatamento das florestas tropicais representa 15% das emissões de gás carbônico no planeta, enquanto que a maior parte, 70%, vem dos combustíveis fósseis. Porém, o objetivo global de zerar as emissões até 2050 passa, necessariamente, por zerar o desmatamento ao mesmo tempo que se investe “em um mega projeto de restauração florestal em todos os trópicos para retirar gás carbônico da atmosfera”. Além disso, proteger as florestas significa, também, proteger a biodiversidade. “Existe um simbolismo imenso na proteção da Amazônia”, explica o cientista. Para ele, Biden percebeu essa preocupação dos consumidores de todo o mundo com a proteção da Amazônia. “E o Brasil tem a maior parte da floresta, o maior desmatamento, a maior incidência do crime organizado, de grilagem de terra, de roubo de madeira… Em função dos dois últimos anos de discurso do Governo federal contrário à proteção das florestas tropicais, o país se tornou o centro das atenções.”
Novo modelo econômico para a Amazônia
Nobre defende que a restauração da Amazônia não deve acontecer para compensar novas áreas desmatadas. Zerar o desmatamento e promover a restauração de áreas devem andar juntos. “Há áreas degradadas e baixa produtividade sem valor econômico. Há estudos indicando que poderíamos aumentar 35% da produção agropecuária reduzindo em 25% as áreas de pastagens. Só nessa brincadeira poderíamos liberar 150.000 quilômetros quadrados de áreas ruins que poderiam ser restauradas”, explica. Ele defende que parte dessa restauração seja feita para construir sistemas agroflorestais, “que são florestas com uma densidade maior de espécies com valor econômico”. Como exemplo cita a cooperativa de Tomé-Açu, no Pará, que gera “140 produtos diferentes a partir de 70 espécies, sendo a mais conhecida o açaí”.
Assim, ele reforça que “o grande potencial econômico da Amazônia” é mantê-la em pé. Também rebate a ideia, muito propagada pelo Governo, de que os mais 20 milhões de habitantes da região recorrem ao desmatamento para poderem sobreviver. “Os empregados do garimpo e da extração de madeira estão em semiescravidão e não ganham nem um salário mínimo por mês. São paupérrimos, estão na classe E. Não podemos dizer que isso é um modelo econômico”, argumenta. Além disso, argumenta que o minério e a madeira extraídos ilegalmente são contrabandeados. Não pagam impostos e nem geram riqueza ao país. “E veja o açaí, movimenta um bilhão de dólares [cerca de 5,5 bilhões de reais] na região e muitos produtores estão na classe C”.
O custo maior da mudança de modelo econômico seria na restauração florestal, garante Nobre. Com pouco investimento, afirma, é possível dobrar ou triplicar a produtividade da pecuária. Ele acredita que no setor privado o momento é positivo, com as grandes companhias de carne investindo em rastreabilidade para não comprar de áreas desmatadas. Sabem que o risco é perder mercados internacionais e investimentos. “O que precisamos, agora, é de uma grande mudança de postura nas políticas públicas, de efetividade no combate ao crime e na valorização da bioeconomia”, destaca.