Por Joyce Cardoso, da Repórter Brasil
Apesar de a Anvisa ter autorizado a imunização para a faixa de 5 a 11 anos em dezembro, até o momento, 7,5 milhões de crianças seguem totalmente desprotegidas; falta de empenho do governo e fake news são apontadas como causas
Quando a empresária Cassia Mitikami comprovou que a filha de 9 anos estava com Covid-19, a preocupação logo deu lugar à confiança na rápida recuperação de Cora, pois a menina já tinha tomado a primeira dose da vacina. De fato, ela ficou boa em poucos dias. Mas o desfecho pode não ser o mesmo para as milhões de crianças brasileiras que ainda não foram vacinadas.
Seis meses após a Anvisa autorizar a imunização para crianças de 5 a 11 anos, quase 40% delas não tomaram nenhuma dose da vacina, segundo dados do Ministério da Saúde analisados pela Repórter Brasil. Ou seja, cerca de 7,5 milhões de meninos e meninas dessa faixa etária estão completamente desprotegidos.
Olhar para o índice dos que foram totalmente vacinados também dá a medida do fracasso: apenas 38% dessas crianças estão com as duas doses de proteção contra a Covid. Entre as crianças indígenas, a taxa é ainda pior: apenas 24% estão com a imunização completa, segundo a Secretaria de Saúde Indígena.
Os baixos índices de vacinação infantil contra a Covid lançam dúvidas também sobre o desempenho da próxima etapa da campanha, que deve mirar na faixa etária mais nova, entre 6 meses e 4 anos.
Só neste ano morreram 395 crianças de 0 a 11 anos por Covid, segundo o ministério. A proporção de mortes é semelhante à dos anos anteriores, quando o imunizante ainda não estava disponível. Em todo ano passado, foram 772 óbitos e, em 2020, 738 vítimas.
“Nós não podemos achar normal perder 50 vidas, 100 vidas, para uma doença para a qual já existe vacina”, diz Maria Claudia Matos, pediatra infectologista do Hospital Universitário da UFBA.
Vários motivos explicam o fracasso da campanha de vacinação infantil – a maioria ligada às falhas das campanhas oficiais de comunicação do governo e aos posicionamentos antivacina do Ministério da Saúde e do presidente Jair Bolsonaro (PL).
“Houve uma campanha contra [a vacina], com presidente que não vacina sua filha, e ministro que tenta passar lei que obrigue a prescrição médica para vacinar”, diz Renato Kfouri, pediatra infectologista e presidente do departamento de imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). “Os pais sempre protegem seus filhos e ficam em segundo plano, mas, pela primeira vez na história das vacinas, os pais vacinados não quiseram proteger seus filhos”, completa.
Procurado pela Repórter Brasil, o Ministério da Saúde negou atrasos e problemas na vacinação infantil e disse que já distribuiu mais de 27 milhões de doses para crianças e adolescentes de 6 a 17 anos.
A vacinação das crianças foi liberada pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) em 16 de dezembro de 2021, após a agência aprovar o imunizante pediátrico da Pfizer. Contudo, o Ministério da Saúde demorou quase um mês para incluir o grupo no plano de vacinação contra a Covid – um atraso que ajudou a gerar insegurança quanto à imunização para essa faixa etária.
Para os especialistas ouvidos pela Repórter Brasil, a hesitação do governo federal em iniciar rapidamente a vacinação, assim como declarações oficiais de autoridades contra os imunizantes, minou a confiança dos pais logo no início da campanha.
As principais críticas vieram de Bolsonaro, que mais de uma vez colocou em dúvida a segurança dos imunizantes e desaprovou a exigência da vacinação. Em dezembro, o presidente ameaçou expor os funcionários da Anvisa responsáveis por aprovar a vacina e, dias depois, afirmou que a própria filha, de 11 anos, não seria vacinada.
Além disso, o Ministério da Saúde realizou uma consulta pública antes da campanha, o que atrasou o início da vacinação. Para piorar, a pasta divulgou que a imunização não seria obrigatória – embora o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) defina que “é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”
“Isso tudo só aumentou a desconfiança da população na vacina”, diz Kfouri.
Após a aprovação do imunizante da Pfizer, a Anvisa autorizou o uso emergencial da CoronaVac, fabricada pelo Instituto Butantan, para crianças e adolescentes de 6 a 17 anos. Mesmo assim, a vacinação não decolou.
Outra justificativa para a baixa adesão é a falsa sensação de que a pandemia acabou e que a Covid não representa mais uma ameaça. Isso ocorreu, segundo os especialistas, porque a vacinação infantil teve início num momento de queda de casos e mortes. Em janeiro, a média diária de óbitos era de 523 pessoas, enquanto nesta quarta-feira (15) está em 143. Em março de 2021, no auge da segunda onda, a média diária, contudo, era de 2.971, segundo o consórcio de imprensa.
Além disso, a população acreditou, de forma equivocada, que as crianças não correm risco de contrair a doença ou ter sintomas mais graves. Embora elas adoeçam e internem menos por Covid, o risco que a doença representa não pode ser negligenciado, diz Kfouri.
Na última reunião conjunta com União, estados e municípios, no final de maio, o Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde) apontou a 2ª dose infantil como a principal cobertura “crítica” do país. Em nota à Repórter Brasil, o órgão comentou que se observa nas últimas semanas um aumento de casos de síndromes respiratórias graves em crianças – sobretudo de Covid e Vírus Sincicial Respiratório –, em especial nos menores de cinco anos, além de um aumento na demanda de leitos de UTI pediátrica.
A pediatra Matos destaca também o risco de Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica (SIM-P), que ocorre semanas após a infecção por Covid. Essa condição causa sintomas como problemas gastrointestinais, cardiovasculares e febre persistente, podendo evoluir para óbito. Até maio, houve 113 mortes pela síndrome no país, sendo 32 entre crianças de 1 a 4 anos, e 29 nas de 5 a 9 anos, segundo o Instituto Butantan.
Para os especialistas, a desinformação deveria ser combatida com boas campanhas de comunicação, o que não aconteceu. Questionada pela reportagem, a pasta não comentou este assunto.
O Ministério da Saúde afirmou que não houve atraso na aquisição e inclusão das vacinas pediátricas na campanha, disse que reservou as doses assim que a Anvisa aprovou o imunizante, e que os primeiros lotes chegaram apenas em 13 de janeiro, “considerando o menor tempo de produção e logística necessárias”.
O fracasso da campanha de imunização infantil até agora acende um alerta para a vacinação de bebês e crianças de seis meses a 5 anos, que em breve deverão ser incluídos na campanha.
“Se não corrigirmos os erros, os mesmos problemas irão se repetir com os menores”, diz Matos.
Levantamento feito pela Câmara Técnica de Assessoramento em Imunização da Covid-19 indica que o coronavírus é ainda mais grave para a faixa etária de até 5 anos. Em 2020 e 2021, foram registrados 1.449 óbitos de crianças com até 11 anos pelo Sars-Cov-2, sendo 1.148 do grupo de 0 a 4 anos (79% do total), e 301 entre crianças de 5 a 11 anos (21%).
A aplicação das doses, contudo, ainda depende de aprovação da Anvisa. Dados preliminares de um estudo apontaram elevada eficácia da vacina da Pfizer entre crianças de seis meses a 5 anos. A companhia promete apresentar pedido à agência sanitária para aplicar o imunizante no Brasil, mas não se sabe quando.
Já o Butantan tenta aprovar desde abril a CoronaVac para crianças a partir de 3 anos. Após classificar os dados apresentados pelo laboratório como “insuficientes”, a Anvisa recebeu novas informações em 1º de junho. Em nota, o órgão informou que se reuniu com representantes de sociedades médicas, e que as entidades têm até 17 de junho para enviar um parecer sobre a ampliação da indicação da vacina.
Edição: Diego Junqueira