Vitor Paiva
Mais do que desconhecer, o Brasil diariamente maltrata sua própria história – repleta de figuras inspiradoras e lutadoras, que ofereceram a própria vida pelas mais importantes causas. É o caso de Esperança Garcia, uma mulher negra e escravizada que viveu em Oeiras, primeira capital do estado do Piauí, e que é hoje considerada a primeira advogada do país – por conta de uma carta que escreveu ao governador do estado em tom de petição, reivindicando a própria liberdade: o direito à própria vida.
O documento foi escrito e enviado em setembro de 1770 e vinha da fazenda Algodões, a pouco mais de 300 km de Teresina, onde Esperança vivia como mulher escravizada, então com 19 anos. Hoje sabe-se pouco sobre a história de Esperança, que foi casada, teve o primeiro filho aos 16 anos – não se sabe, por exemplo, como uma mulher escravizada foi alfabetizada, feito raro à época. Mas a coragem de seu gesto, a clareza de sua carta, a dura beleza de sua escrita, enviada para o governador do Piauí, Gonçalo Botelho, foram descobertas pelo historiador Luiz Mott em 1979, em cópia da carta no Arquivo Público do estado. A carta, pedindo que as precárias leis concedidas aos escravos fossem respeitadas, segue abaixo, na íntegra.
Eu sou uma escrava de V.S. Administração do Capitão Antonio Vieira de Couto, casada. Desde que o Capitão para lá foi administrar, que me tirou da fazenda dos Algodões, onde vivia com meu marido, para ser cozinheira da sua casa, onde nela passo muito mal. A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho meu sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca, em mim não posso explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo de peiada; por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar a três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Pelo tão peço a V.S. pelo amor de Deus e do seu Valim ponha aos olhos em mim ordinando digo. Mandar a procurados que mande para a fazenda aonde ele me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha. De V.S. sua escrava Esperança Garcia (MOTT, 1985:106)
Trata-se do mais antigo documento conhecido de reivindicação de uma mulher negra e escravizada a uma autoridade no Brasil. Para a Ordem dos Advogados do Brasil do Piauí (OAB-PI), o tipo de texto de Esperança segue nomenclaturas do direito que a reconhecem como uma petição. Assim, por decisão da OAB-PI, em 2017 o título de advogada foi concedido à Esperança Garcia, oficialmente reconhecida, portanto, como a primeira advogada do Brasil: uma mulher negra, escravizada, inspiradora, corajosa, que desafiou os cruéis poderes de sua época, que traz no nome a fagulha para a luta contra o racismo, e que não pode jamais ser esquecida.
A história inspirou a diretora timonense Carmen Kemoly a realizar o curta “Esperança”, uma ficção performática em curta metragem que percorre a vida da primeira advogada do Brasil.