A POSTURA DE ELON MUSK em relação ao Brasil, especialmente em confronto com o judiciário brasileiro, não é usual. Com desafios regulatórios em diversos países, o bilionário geralmente coloca em segundo plano seu ativismo de extrema direita para facilitar a entrada das empresas de seu conglomerado em outras nações.
Na Índia, por exemplo, o X (antigo Twitter) até se posicionou contrário a decisões judiciais do país, chefiado pelo primeiro-ministro Narendra Modi, do partido de extrema direita Bharatiya Janata Party, há mais de uma década. Mas fez questão de dizer que acataria cada uma delas. Lá, Musk pretende investir US$ 3 bilhões em fábricas da Tesla para frear o avanço da sua principal concorrente, a chinesa BYD, na região.
No Brasil, no entanto, o bilionário seguiu outra linha. Ao comprar o Twitter e transformá-lo no X, Musk comprou também uma poderosa ferramenta política, que reúne lideranças mundiais, comunicadores e pesquisadores de todo o mundo. Agora, ele está usando esse poder comunicacional para desestabilizar o país e impulsionar seus próprios negócios.
A investida foi coordenada: primeiro, no dia 4, os Twitter Files, que mostram os advogados da empresa reclamando das ordens de Alexandre de Morais, que pediu o bloqueio de contas envolvidas em manifestações golpistas.
Depois, um tuíte provocativo do próprio Musk, como apito de cachorro, para mobilizar bolsonaristas contra a ‘censura’. O circo foi armado: Bolsonaro pai e Eduardo fizeram uma live, Nikolas Ferreira, Paulo Figueiredo e Allan dos Santos, que estava banido, fizeram outra.
A extrema direita se mobilizou, Musk usou sua rede para peitar uma ordem judicial do Supremo Brasileiro – o que é ilegal, segundo o Marco Civil da Internet – e pedir o impeachment de Alexandre de Moraes. O nosso ministro, por fim, acabou incluindo o bilionário em seu extenso inquérito de milícias digitais.
O que explica a escalada de Elon Musk sobre o STF? Não é só alinhamento político com a extrema direita, golpismo e nem uma defesa incondicional da liberdade de expressão. É uma estratégia comercial que envolve interesses de outras empresas do conglomerado: a SpaceX, a Starlink e a Tesla.
A corrida pelo ‘petróleo branco’
Já na segunda-feira, 8, seguinte às afrontas ao ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, Elon Musk começou a seguir um poderoso investidor norueguês. Nicolai Tangen é CEO do Norges Bank Investment Management, um fundo de investimentos que tem negócios em várias partes do mundo – muitos deles na área de mineração.
Os dois marcaram uma conversa em um círculo, a ferramenta de áudios ao vivo do X (antigo Twitter). Só Tangen divulgou o encontro; Musk foi mais discreto.
O Norges Bank Investment, em 2023, tinha investimentos em mais de 8 mil empresas de 72 países. O Brasil está entre eles. O banco é dono de pouco mais de 1% da Petrobras, 3% da Cosan, 5% da construtora Tenda, só para citar alguns exemplos.
Também é um investidor das mineradoras canadense Sigma (com 17,6 milhões de dólares, menos de 1% da empresa) e da anglo-australiana Rio Tinto (com 2,5 bilhões investidos, mais de 2%). Também tem mais de 2% da metalúrgica holandesa AMG.
‘Vamos dar golpe em quem quisermos! Lide com isso’, tuitou Musk.
É aqui que os interesses do CEO do Norges Bank e de Musk começam a se cruzar.
Em 2023, uma reportagem da Bloomberg mostrou que Elon Musk estaria interessado em comprar a Sigma Lithium, uma das maiores mineradoras de lítio no mundo. O metal é fundamental na produção dos carros elétricos da Tesla. Uma das fornecedoras da empresa de Musk é a brasileira Vale, que vende lítio e níquel.
Em 2022, quando Musk veio ao Brasil – oficialmente para lançar sua internet por satélite, a Starlink –, duas pesquisadoras da USP levantaram dúvidas sobre os reais interesses da visita. Em um artigo, Eliane Cristina Silva dos Santos, do Instituto de Estudos Avançados, e Maria da Penha Vasconcellos, professora da Faculdade de Saúde Pública, mostraram que a visita aconteceu em um momento extremamente estratégico na produção de lítio brasileiro.
O lítio, o metal mais leve que existe, é considerado o “petróleo branco”. O material é essencial na produção de baterias, energia solar e eólica, além dos carros elétricos. Ou seja, em tempos de transição energética, é fundamental. A América Latina, sobretudo Argentina, Bolívia e Chile, concentra 68% das reservas mundiais do metal.
Foi lá mesmo na Bolívia, em 2020, que Elon Musk se envolveu em uma intromissão semelhante à do Brasil. Naquele ano, o bilionário respondeu a um tuíte crítico ao seu apoio ao golpe contra o governo de Evo Morales por interesse no lítio boliviano. “Vamos dar golpe em quem quisermos! Lide com isso”, Musk respondeu. (O tuíte foi apagado, mas foi registrado nesta reportagem).
Voltando ao Brasil: nos últimos anos, o Serviço Geológico brasileiro descobriu várias reservas de lítio, sobretudo no Vale do Jequitinhonha, norte de Minas Gerais. Três empresas exploram o minério na região: a Companhia Brasileira de Lítio, a canadense Sigma e a AMG Mineração.
Só a primeira era nacional – o governo de Minas tinha 33% da companhia. O cenário parecia promissor para fabricarmos nossas baterias brasileiras. Só que a empresa parceira na empreitada, Oxys Energy, faliu em 2021– e o governo de Minas passou a defender que o estado não deveria entrar no negócio.
Em outubro de 2022, a parte estatal foi vendida à britânica Ore Investimentos. O Vale do Lítio estava entregue; no final de 2023, o governador Romeu Zema, do Novo, foi à Nova York conseguir novos investimentos estrangeiros para a região.
Segundo o Observatório da Mineração, que cobre o tema, três empresas, Latin Resources, Atlas Lithium e Lithium Ionic, já sondam a área para conseguir novas reservas de lítio. A Sigma Lithium e a AMG já estão em produção – e as duas têm investimentos do Norges Bank Investment.
A Sigma, fundada em 2011, viu suas ações explodirem após descobrir reservas de lítio por aqui, e a demanda mundial pelo metal aumentar. Em 2023, a empresa confirmou que estava negociando com potenciais compradores.
As negociações com Musk, no entanto, não avançaram, e o tema ficou urgente para o bilionário: neste ano, entrou uma concorrente chinesa no jogo.
A chinesa BYD avança no mundo e assume a liderança no Brasil
Em janeiro, o jornal Financial Times noticiou que a chinesa BYD, a principal concorrente da Tesla na produção de carros elétricos, atropelou Musk e começou a negociar a compra da Sigma. O negócio é avaliado em R$ 14,3 bilhões.
O Brasil é umas peças do tabuleiro da guerra comercial, já que virou centro da estratégia global de investimentos da BYD. A empresa anunciou que vai ampliar seus investimentos no Brasil em até 1 bilhão de euros. Em outubro do ano passado, a BYD assumiu a fábrica da Ford em Camaçari, na Bahia, e terá capacidade inicial para produzir até 150 mil veículos por ano.
O crescimento meteórico da BYD no Brasil é visível nas ruas do país: em 2023, foram vendidos 17.947 carros da empresa chinesa no Brasil, um crescimento de 6.900%. Mais que isso: a venda dos modelos elétricos BYD superou todos os outros modelos elétricos somados.
Se no Brasil a BYD ganha terreno, o cenário é ainda mais preocupante para Musk no restante do globo. Em 2023, a fabricante chinesa vendeu 1,57 milhão de veículos elétricos, um crescimento de 73% em relação a 2022, e adicionou 1,44 milhão de carros híbridos ao mercado. Com isso, ultrapassou a Tesla, que entregou 1,8 milhão de unidades no mesmo ano, e enfrenta a previsão de queda nas vendas para 2024.
Diante desse cenário, Musk tem contrariado seu auto propagado perfil anti-estado. Durante a apresentação de resultados da Tesla, em janeiro, Musk cobrou do governo norte-americano a implementação de medidas protecionistas, como a criação de barreiras tarifárias para a chinesa BYD.
Eleição de Biden: bilhões em jogo
A proximidade das eleições presidenciais nos Estados Unidos também pode explicar a investida de Musk no Brasil. O bilionário é notório apoiador do ex-presidente Donald Trump contra o atual mandatário, o democrata Joe Biden. Um tweet compartilhado por Musk no domingo ajuda a explicar a estratégia: pintar a suposta censura no Brasil como a realidade de um segundo mandato de Biden.
“O presente do Brasil é o nosso futuro se os Democratas atingirem seu sonho de aumentar o número de juízes da Suprema Corte”, diz a legenda de uma publicação do empresário David Sacks. Na imagem, o print de uma manchete diz: “Democratas querem introduzir lei para aumentar de 9 para 13 o número de ministros do Supremo”. Musk compartilhou o post escrevendo a seguinte mensagem: “Eles querem trapacear”.
Só que a manchete apresentada na imagem é de abril de 2021, e não de agora. E, de fato, Biden nomeou uma comissão bipartidária para estudar possíveis reformas na estrutura da Suprema Corte, mas a Comissão não recomendou o aumento do número de juízes.
A oposição à candidatura de Biden, assim como os ataques a Moraes, estão relacionados a interesses bilionários. Um exemplo do que está em jogo ganhou as manchetes da imprensa norte-americana na semana passada, quando Biden revelou planos de taxar empresas que utilizem o espaço aéreo americano para lançamentos de foguetes, como faz a SpaceX. O dinheiro seria usado para financiar o trabalho dos controladores de tráfego aéreo.
Nas últimas semanas, Musk tem intensificado as demonstrações de apoio a Trump, ainda que durante o mandato de Biden o empresário tenha sido pragmático: manteve relações relativamente cordiais com a Casa Branca, onde chegou a fazer uma visita, em 2021.
Só que, desde março deste ano, quando encontrou Trump e potenciais doadores, mergulhou de vez na campanha eleitoral. E, como ele próprio não faz questão de esconder, o Brasil faz parte desse jogo.
Como Musk instrumentalizou o X
A atual crise Musk-Moraes foi impulsionada pela divulgação, na última quinta-feira, 4, dos chamados Twitter Files Brazil, uma série de e-mails internos da empresa divulgados pelo jornalista norte-americano Michael Shellenberger.
As mensagens, trocadas entre funcionários do antigo Twitter em 2020 e 2022, revelam a contrariedade da equipe jurídica com decisões da Justiça brasileira que determinaram exclusão de conteúdos em investigações envolvendo a disseminação de fake news.
Com base nos e-mails, Shellenberger acusa Alexandre de Moraes e o sistema judiciário brasileiro de quatro ilegalidades: exigir que o antigo Twitter revelasse detalhes pessoais sobre usuários que subiram hashtags que ele “não gostou”; exigir acesso aos dados internos da rede social, em violação à política da plataforma; censurar unilateralmente postagens de parlamentares brasileiros; e tentar transformar as políticas de moderação de conteúdo da rede social em uma arma contra apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Apesar de propagandeadas por Musk, as revelações do Twitter Files Brazil contradizem uma mentira que o próprio bilionário propagou: a de que a antiga gestão do Twitter teria favorecido a esquerda nas eleições de 2022.
“Tenho visto muitos tweets preocupantes sobre as recentes eleições no Brasil”, escreveu Musk em 3 de dezembro de 2022, enquanto os apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro estavam acampados do lado de fora de bases militares exigindo um golpe de estado.
“Se esses tweets forem precisos, é possível que o pessoal do Twitter tenha dado preferência a candidatos de esquerda”, afirmou Musk. Porém, os documentos do Twitter Files Brazil demonstram que a empresa não apenas discordava de Alexandre de Moraes, como chegou a ter um funcionário denunciado por descumprir decisões judiciais.
O Twitter Files chegou em um momento de dilemas empresariais do X. A aquisição da plataforma por US$ 44 bilhões, em outubro de 2022, resultou em uma queda de 70% do valor. A plataforma passou a ser avaliada em US$ 12,5 bilhões. A avaliação foi divulgada por um dos principais acionistas.
O Brasil é o terceiro maior público do X, com 16,6 milhões de usuários ativos. É uma audiência que, em condições normais, certamente Musk não desprezaria – como faz ao provocar Moraes. Mas, como o empresário tem negócios muito mais valiosos por aqui, parece disposto a colocar a perder.