Artigo de Matheus Gato, doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo e membro do Núcleo Afro/CEBRAP.
O lançamento da série Revolta dos Malês, uma parceria do SescTV com a Giros Filmes, oferece ao telespectador brasileiro a rara experiência de ver e interpretar o país através de corpos, sentimentos, angústias e expectativas frequentemente rasurados na produção de cinema, televisão e audiovisual no Brasil. Desde o clássico filme Quilombo, de Cacá Diegues, centrado na história de Zumbi e dos Palmares, têm sido poucos os diretores e roteiristas a explorar todo o manancial épico das inúmeras revoltas e rebeliões conduzidas por pessoas escravizadas em nosso país. Episódios como a Revolta de Manuel Congo (Rio de Janeiro, 1832), Sabinada (Bahia, 1838–1837), Balaiada (Maranhão, 1838–1841) e Cabanagem (1835–1840), ainda estão à espera de produções artísticas a altura de sua magnitude histórica e suas aspirações de liberdade e igualdade, barbaramente reprimidas e sufocadas na formação do Estado nacional brasileiro.
Nesse sentido, a postura obtusa do meio audiovisual frente as potencialidades estéticas dessas histórias já seriam motivos de sobra para elogiar a realização dos diretores Jeferson De e Belisario Franca, entretanto, eles foram bem mais longe. Revolta dos Malês é uma produção que reflete as conquistas do cinema negro no que tange ao debate crítico acerca das formas de representação do negro na arte. Um dos elementos mais belos da série é a construção da luz para a pele negra no estúdio. Todos os episódios são construídos em jogos de claro e escuro que conferem enorme beleza aos diferentes tons de pele escura dos atores principais, bem como deixam explícito pela linguagem própria das imagens que aquele mundo da Salvador de 1835 é um mundo divido entre brancos e negros. Um detalhe dos mais importantes é que, se em novelas como Escrava Isaura em exibição na RecordTV, a crítica da escravidão é construída pela centralidade e exibição ostensiva do mundo senhorial, na série Revolta dos Malês, esses senhores de terras e de gente estão literalmente nas sombras da imagem, sombras essas que informam sobre a opressão e exploração que engendram a vida social.
Por outro lado, ainda neste aspecto da construção da imagem, uma crítica possível a esta série e a outros esforços que buscam representar negros no período da escravidão é a oclusão de imagens em torno da intimidade dessas pessoas. Desde as clássicas ilustrações de Debret e Rugendas, passando pelas famosas fotografias de Pierre Verger, o espaço público, da festa ou do trabalho, é o lugar privilegiado para estabelecer onde os negros devem ser esteticamente representados, em contraposição às novelas e séries brasileiras que, retratando o passado ou o presente, contam com inúmeras cenas em casas e apartamentos luxuosos, mas o mundo privado dos negros parece não gozar de nenhum interesse artístico. Até quando?
Um ponto alto da narrativa é que, se o senso comum sobre revoltas e rebeliões é aquele para o qual o heroísmo e a vontade de ser livre se confundem com a idealização machista acerca das virtudes da força e virilidade, Revolta dos Malês coloca no primeiro plano a história de Guilhermina e seu esforço para libertar sua filha das garras da escravidão. “Aqui, negócio não é só uma questão de dinheiro”, diz o senhor de Guilhermina ao informá-la que não libertará sua filha, embora ela tenha conseguido a quantia suficiente para comprar a carta de alforria da menina.
A pesquisa histórica que originou a minissérie mostra que grande parte das revoltas e rebeliões de pessoas escravizadas emergiam como respostas a ações e práticas consideradas injustas dentro do próprio mundo do cativeiro; Outro exemplo que reforça essa ideia é o momento em que a liderança religiosa dos malês é presa de maneira arbitrária, suscitando o inconformismo. A pesquisa histórica também atravessa a construção dos corpos das personagens, destacando marcas étnicas que evidenciam as diferenças e hierarquias entre a gente escravizada: A mais flagrante era aquela que distinguia os crioulos do Brasil dos nascidos na África, divisão essa que, conforme o livro Rebelião Escrava no Brasil: História do levante dos malês em 1835, escrito por de João José Reis, foi uma das principais razões para o fracasso desta e outras rebeliões. Derrota assentada na persistente habilidade das elites brasileiras em dividir os seus subalternos em categorias de cor e status que minam as possiblidades de reconhecimento e solidariedade social.
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ASSISTA A “REVOLTA DOS MALÊS”
Todos os episódios da minissérie Revolta dos Malês estão disponíveis no site do SescTV, e podem ser assitidos gratuitamente e sem necessidade de cadastro.
A produção estreou no canal em 23 de novembro, e os cinco episódios estão sendo exibidos aos sábados, 20h30.
O SescTV pode ser sintonizado no canal 128 da OiTV e em operadoras independentes em todo o Brasil.
Fonte: https://medium.com/sesctv/outra-narrativa-outra-imagem-ccbdb7467921