Missa campal realizada em 1888 em ação de graças pela Abolição da Escravatura no Brasil, em que é possível ver a Princesa Isabel (à esq.) – Foto: Antonio Luiz Ferreira / Brasiliana Fotográfica / Domínio Público via Wikimedia Commons

Cento e vinte e nove anos depois da abolição da escravidão, e a despeito do mito da democracia racial, o preconceito de raça continua bastante disseminado na sociedade brasileira – tão disseminado que se manifesta até mesmo no interior de “famílias inter-raciais”. Esta foi a conclusão de uma pesquisa realizada pela psicóloga social Lia Vainer Schucman.

O estudo foi tema de pós-doutorado realizado na USP com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), com colaboração de Felipe Fachim e supervisão de Belinda Mandelbaum, coordenadora do Laboratório de Estudos da Família do Instituto de Psicologia (IP) da USP.

“Nosso objetivo foi verificar se e como as hierarquias raciais da sociedade se reproduzem no interior de famílias cujos integrantes se autoclassificam diferentemente em relação à ‘raça’: como ‘brancos’, ‘negros’ ou ‘mestiços’. E como essas hierarquias coexistem e interagem com os afetos”, disse Lia Schucman à Agência Fapesp.

Além de esgotar a literatura especializada, a pesquisa, que se estendeu por três anos, valeu-se de entrevistas presenciais com 13 famílias de diferentes regiões do País. Os resultados foram reunidos no livro Famílias Inter-raciais: tensões entre cor e amor, com lançamento previsto para 2017.

“O tema configurou-se a partir de minha interação com pessoas dessas famílias – pessoas que, por assim dizer, vivenciavam as ‘contradições raciais’ em suas próprias peles. Isso aconteceu no final da minha pesquisa de doutorado, que tratou da questão da ‘branquitude’ (leia a respeito dessa pesquisa anterior neste link). Nessa época, em função do estudo que estava realizando, comecei a ser bastante convidada para dar palestras. E, frequentemente, depois das palestras, pessoas se aproximavam para contar casos de sofrimento decorrentes do racismo em suas próprias famílias. Isso ocorreu muitas e muitas vezes. A partir dessas conversas, percebi que as famílias poderiam ser uma chave para entender as relações ‘inter-raciais’ no contexto maior da sociedade”, disse a pesquisadora.

Lia partiu do pressuposto de que “raça” não é um dado biológico, mas uma construção social. Trata-se, segundo ela, de uma construção, baseada no fenótipo, que engendra e mantém profundas desigualdades materiais e simbólicas na sociedade, e impacta o cotidiano de milhões de pessoas.

“Se a existência de ‘raças humanas’ não encontra qualquer comprovação no âmbito das ciências biológicas, elas são, contudo, plenamente existentes no mundo social, como afirmou o sociólogo Antonio Sérgio Alfredo Guimarães”, disse Lia. Com base nesse critério, ela selecionou, para o estudo, famílias nas quais pelo menos um dos integrantes reconhecia que o grupo familiar era composto de pessoas de diferentes raças.

“Uma mesma família pode ser considerada ‘inter-racial’ para um de seus integrantes e não ser para outro. Além disso, uma família tida como ‘inter-racial’ no Rio Grande Sul pode ser classificada como ‘branca’ na Bahia. Diante da fluidez das classificações, decidi que só consideraria uma família como ‘inter-racial’, e portanto objeto do estudo, se minha impressão subjetiva fosse corroborada por um dos membros da própria família. Se alguém me dissesse ‘eu sou negro e minha irmã é branca’, ou ‘meu pai é negro e minha mãe é branca’, ou qualquer outra afirmação desse tipo, a família se enquadraria no escopo da pesquisa”, explicou.

Segundo a literatura especializada, as relações inter-raciais iniciaram-se no Brasil, no âmbito da vida privada, desde os primórdios da colonização – principalmente a partir do estupro e de outras formas de violência cometidas por “homens brancos” portugueses contra “mulheres negras” ou “indígenas”. O censo de 1960 apontou que, naquele ano, 8% dos casamentos eram “inter-raciais” no País. Em 2010, esse porcentual saltou para 31%. Ou seja, quase um terço das uniões matrimoniais realizadas no Brasil acontecem entre pessoas que se autoclassificam como sendo de “raças diferentes”. “O fenômeno é muito comum entre as classes mais pobres, porém raríssimo entre as classes ricas”, comentou Lia.

“Atualmente, a configuração predominante é a do casamento do ‘homem negro’ com a ‘mulher branca’, ou do ‘homem pardo’ com a ‘mulher mais clara’. Alguns estudos, como os de Elza Berquó e Ana Claudia Lemos Pacheco, sugerem que tal predominância decorre de uma sobreposição de sexismo e racismo, produzindo uma hierarquia na qual o ‘homem branco’ é a principal escolha e a ‘mulher negra’ é a grande preterida”, prosseguiu a pesquisadora.

De acordo com Lia Schucman, uma peculiaridade da formação cultural do Brasil é o “racismo de intimidade”. Ao contrário do racismo segregacionista, que prevaleceu na África do Sul e no Sul dos Estados Unidos, o que temos aqui é um tipo de racismo que pressupõe a interação entre “brancos” e “negros”. E essa relação pode eventualmente ser mediada pelo afeto, sem deixar de ser racista. “Meu propósito foi analisar como as ‘famílias inter-raciais’, na sua intimidade, vivenciam, negociam, constroem ou desconstroem o racismo”, disse.

Com base nessa diretriz, suas entrevistas mostraram que a questão racial pode assumir, no contexto intrafamiliar, uma ampla gama de configurações: desde o racismo explícito e brutal, com manifestações de violência física, até negações extremamente sutis, mediadas pelo afeto.

O racismo nu e cru

“A história mais dura que recolhi foi a de uma jovem universitária que me procurou quando eu já havia dado por encerrada a fase de entrevistas. Ela era fenotipicamente ‘negra’, filha de mãe ‘branca’. E me contou que, quando pequena, sua mãe cantava assim: ‘Plantei uma cenoura no meu quintal / Nasceu uma negrinha de avental / Dança negrinha / Não sei dançar / Pega no chicote, ela dança já’. A canção de ninar da mãe não só era racista, mas também escravista’, disse Lia.

Conforme a pesquisadora, essa “mãe branca”, empregada doméstica, de olhos azuis, nordestina de Recife, tinha casado várias vezes sempre com homens “negros”. E chamava os ex-maridos de “macacos”. O pai da jovem, pedreiro, nascido na Bahia, e classificado pela filha como “preto retinto”, foi o segundo deles.

“Eles haviam se conhecido em São Paulo. E, quando entrevistei a jovem universitária, estavam separados há muito tempo. O pai já tinha 80 anos e a mãe, 70”, detalhou a pesquisadora. A jovem relatou a ela que “soube que era negra desde pequena”, devido às violências que sofria por parte da mãe. Quando brigava com ela, a mãe a chamava de “macaca” e “preta fedida”. Dizia que seu cabelo era “ruim” como o do seu pai e batia nela quando chorava ao ser penteada. “Eu olhava para o meu pai, e aquele homem, que tinha uma identidade negra extremamente negativa, se colocava como inferior mesmo”, contou a entrevistada.

Trabalho mostra como hierarquias raciais da sociedade se reproduzem entre familiares e interagem com os afetos – Foto: Wikimedia via Agência Fapesp

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Na interpretação de Lia, essa mãe, uma mulher pobre, ignorante, humilhada, com a autoestima muito baixa, usava sua “branquitude” como único valor e instrumento de poder. “Seu racismo não era do tipo meio disfarçado, meio jocoso, que é tão comum encontrar no Brasil. Era um racismo cruel, violento, em um contexto de extrema pobreza. Quando estava desempregada e não tinha um marido para ajudar, a mãe e os filhos se transformavam em pedintes, e precisavam bater nas portas de pessoas conhecidas para conseguir comida. A ‘branquitude’ foi a única coisa que lhe restou e ela a usava de maneira muito tosca, muito básica”, disse.

“Um dos precursores da área de pesquisas que hoje chamamos de ‘estudos críticos da branquitude’, o norte-americano William Du Bois, nomeou, no início do século passado, como ‘salário público e psicológico’ aquilo que confere à pessoa branca acessos e privilégios simbólicos, por pior que seja sua situação. Eu parti desse conceito e percebi que, na família em questão, a ‘raça’ era, de fato, um modulador dos vínculos afetivos. Porque os irmãos ‘mais claros’ sofriam menos. A jovem era a ‘mais escura’. E precisava dormir com um pregador de roupa no nariz, porque a mãe achava que, assim, ele iria afinar”, disse Lia.

A despeito de uma infância tão adversa, a jovem conseguiu chegar à universidade e entrou em contato com o movimento social negro. Foi por meio da atuação política e do rap que começou a reconstruir sua identidade. Mais tarde, buscou também a psicoterapia.

“Ela me disse que há duas pessoas dentro dela: uma que participa do movimento, que é militante, que assume o cabelo crespo; outra que ainda é aquela criança massacrada. Afirmou que acredita firmemente que um dia vai encontrar a redenção. Mas, por enquanto, essa criança continua lá. E dói”, disse Lia.

O outro lado da negação

Outras entrevistas mostraram à pesquisadora formas bem mais sutis de negação, levando-a a concluir que o racismo das pessoas não necessariamente impede o afeto. “Na maioria dos casos, o indivíduo ‘negro’ é amado por seus familiares. O que ocorre, isto sim, é que, por amá-lo ou para amá-lo, esses familiares muitas vezes negam sua condição de ‘negro’. Em vez de reelaborarem o seu racismo com o intuito de superá-lo, os familiares simplesmente retiram a pessoa amada do grupo estigmatizado. Utilizei o conceito de ‘negação’, de Freud, para interpretar esse comportamento”, explicou.

No caso de uma das famílias ouvidas por Lia, originária da Bahia, a mãe considerava que todos os seus familiares eram “brancos”. E que, portanto, a própria entrevista não fazia sentido. Mas um dos filhos se autoconsiderava “negro, com uma irmã branca”, vivendo, assim, em uma “família inter-racial”. Para a mãe, essa ideia do filho era “uma bobagem, que ele adotou depois de entrar na universidade”. Esse filho era o que recebia o maior afeto da mãe, mas, para que pudesse amá-lo, ela, de alguma forma, precisava negar que ele fosse “negro”. Daí o conceito de “negação”.

Por uma dessas “ironias do destino”, que parecem exemplificar o conceito psicanalítico de “retorno do recalcado”, a irmã do rapaz, que nascera “bem clara”, “bem branca”, teve um relacionamento “inter-racial” com um homem que a família classificava como “muito preto”. E ficou grávida. A expectativa em relação à cor da criança provocou o maior período de tensão na dinâmica intrafamiliar. “A mãe dessa família, portanto avó da criança, me disse uma frase altamente significativa: ‘Estávamos muito nervosos. Mas, quando vimos que minha neta havia nascido branca, todo mundo se apaixonou por ela’”, contou Lia.

Muro de escola em São Paulo fotografado pela pesquisadora. Segundo ela, a frase que expressa um ponto de vista racista foi pichada depois de a instituição promover uma festa junina com motivos de origem africana – Foto: Lia Schucman via Agência Fapesp

Quando a pesquisadora entrevistou a família, a menina tinha já 14 anos e se autoclassificava ora como “morena”, ora como “mulata”, dizendo que não era “negra” porque as “negras” tinham cabelo crespo e ela alisava o dela. “Assim como seus familiares, ela precisava negar sua ‘negritude’ para legitimar o afeto que recebia”, disse.

Segundo Lia, os traços fenotípicos do filho provinham provavelmente de seu pai. Mas este era o grande ausente, o grande desconhecido, cuja presença nenhuma foto documentava e sobre o qual nada se dizia. Por outro lado, a mãe, apesar da pele clara e dos cabelos alisados, tinha visivelmente ancestrais negros, embora não os reconhecesse como tal.

No caso de outra família entrevistada, de São Bernardo do Campo, no Estado de São Paulo, o pai não era desconhecido, desaparecido ou ausente. A família convivia com ele, o amava, mas a mãe nunca admitiu que seu marido fosse “negro”.

De acordo com a pesquisadora, a filha do casal sofreu ainda outros tipos de negação. Quando era criança e ia passar os finais de semana com suas primas por parte de pai, voltava sempre com os cabelos trançados, no estilo afro. Ao chegar em casa, a mãe lhe dizia que aquilo estava horrível, e imediatamente desmanchava as tranças. E, mesmo quando adulta, se colocava brincos muito grandes ou vestia roupas mais coloridas, a mãe a criticava por “usar coisas de negro”.

“Ela me disse: ‘Minha mãe falava que eu era quase branca, mas que meu nariz não era de branco. Quando pequena, sempre tive a sensação de tentar ser algo que não era, a sensação de ser corporalmente inadequada. Mais tarde, quando tive filho, minha mãe falou para eu passar bastante a mão no narizinho dele enquanto ainda era bebê, e a cartilagem era molinha, para afinar a forma”, disse Lia.

A conclusão da pesquisadora é a de que, no Brasil, é possível ser contra o racismo, achar que o racismo é um mal a ser combatido, casar com “negro” e, mesmo assim, ser racista. Racista no sentido de hierarquizar as pessoas a partir do fenótipo, de achar o “cabelo do branco” mais bonito, o “nariz do branco” mais bonito, e assim por diante. “Mas, se a ‘família inter-racial’ é, muitas vezes, o lócus de vivências racistas, ela também pode ser um espaço privilegiado para o acolhimento e o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento do racismo da sociedade envolvente, como pude verificar em mais de uma entrevista”, disse.

José Tadeu Arantes / Agência Fapesp 

Adaptado de Pesquisa investiga marcas do racismo em “famílias inter-raciais”

Fonte: Jornal da USP