Débora Motta

O livro desvela um Rio de Janeiro que parecia improvável: o da leitura e escrita dos grupos populares do século XIX. “O analfabetismo era muito alto no século XIX, mas apesar de ter existido um sistema excludente, isso não significou que as camadas populares não tivessem acesso, em absoluto, à cultura letrada, e nem que elas concentrassem suas formas de transmissão cultural apenas nas práticas orais. Esse segmento populacional também lidou com a questão do letramento. Havia práticas de escrita e letramento de homens e mulheres pobres, negros e mulatos na sociedade imperial”, destacou Giselle, que é professora e coordenadora do programa de Pós-Graduação em História na Universidade Federal Fluminense (UFF) e Cientista do Nosso Estado da FAPERJ.Havia educação acessível às camadas populares na época do Império? Se sim, como ela era? Fazia parte de uma política de Estado? A historiografia oficial brasileira frequentemente parte da premissa de que esses setores da população eram excluídos, ou muito distanciados, do acesso ao ensino e do mundo letrado nessa época. As trajetórias brilhantes dos expoentes das Letras Machado de Assis, Lima Barreto e Francisco de Paula Brito – todos nascidos no Rio do século XIX, e que tinham em comum o fato de serem negros ou mestiços, com origem familiar pobre – costumam ser apontadas como exceções à regra social de exclusão educacional. Um outro olhar sobre a educação na sociedade imperial, no entanto, é proposto em Cartografias da Cidade (In)Visível – setores populares, cultura escrita, educação e leitura no Rio de Janeiro imperial, uma coletânea organizada por Giselle Martins Venancio, María Verónica Secreto e Gladyz Sabina Ribeiro (Ed. Mauad X, 2017, p. 262).

Na obra, que apresenta uma coletânea de artigos sobre o tema, estão os resultados de pesquisas sobre os modos de circulação da escrita na época, realizadas em diferentes fontes históricas, como processos criminais, inventários e testamentos, que revelam a relação dos populares com a cultura escrita na época. “A ideia de escrever o livro surgiu a partir de um seminário realizado no Departamento de História da UFF, em 2015, intitulado ‘Setores populares, cultura escrita, educação e leitura no Rio de Janeiro imperial’. Nesse encontro, levantamos questões iniciais sobre o tema, e as distribuímos a diferentes pesquisadores, de áreas multidisciplinares, como História, Educação e Economia”, contou. As pesquisas nortearam a elaboração dos dez artigos reunidos na coletânea, que foi publicada com recursos do programa Apoio à Produção e Publicação de Livros e DVDs Visando à Celebração dos 450 Anos da Cidade do Rio de Janeiro, da FAPERJ.

Na primeira parte do livro, intitulada “Usos populares da leitura e da escrita”, Giselle apresenta, no artigo “Em primeira pessoa”, a história de Maria Rosa, uma escrava liberta que pediu, por meio de uma carta escrita em primeira pessoa e enviada à imperatriz Teresa Cristina, a libertação da sua filha, chamada Ludovina, pois não tinha recursos para pagar pela alforria. “Havia a tradição de, no dia do aniversário da imperatriz, outorgar alguns pedidos de libertação gratuita de escravos. E assim ocorreu quando, em 14 de março de 1886, o nome de Ludovina constou na lista de 176 escravos libertados por ação da Câmara Municipal da Corte, ela que havia sido propriedade do médico José Pereira Peixoto, que tinha consultório no bairro de São Cristóvão”, informou a historiadora.

A carta, que apelava à caridade e ao amor materno da imperatriz, gerou desdobramentos positivos. “Maria Rosa, certamente, conhecia o poder da palavra escrita e, mais particularmente, o papel das correspondências, narrativas, sempre de mão dupla, que sugerem, necessariamente, uma resposta, em forma escrita ou em forma de ação. Ao apostar na carta que escreveu à imperatriz, Maria Rosa transformou esperança em atitude e pôde conhecer o poder das cartas – a dela e a de alforria da sua filha – como sinônimos de libertação”, disse Giselle, que acaba de apresentar as conclusões do livro no “21º COLE – Leituras dissonantes”, evento realizado no início do mês de julho na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

A primeira parte do livro ainda reúne os artigos “Posta em cena: educação moral e estética e heterogeneidade social no teatro oitocentista”, de María Verónica Secreto e Viviana Gelado; “Saber ler, contar e poupar: reflexões entre economia popular e cultura letrada no Rio de Janeiro, 1831/1864”, de Luiz Fernando Saraiva e Rita de Cássia da Silva Almico; e “Escrever como custo de transação dos pequenos agentes do Rio de Janeiro na metade do século XIX”, de Carlos Eduardo Valencia Villa.

A segunda parte, intitulada “Práticas educativas de populares no Rio de Janeiro oitocentista”, apresenta os artigos “Ler, escrever e contar: cartografias da escolarização e práticas educativas no Rio de Janeiro oitocentista”, de Alessandra Frota Martinez de Schueler e Irma Rizzini; “A educação no Rio de Janeiro joanino nas páginas da Gazeta do Rio de Janeiro: espaços abertos para a mobilidade social”, de Camila Borges da Silva; “Camadas populares e higienismo no Rio de Janeiro em fins dos anos 1870”, de Jonis Freire e Karoline Carula; “Cidade solidária: beneficência educacional no cotidiano popular da Corte imperial”, de Marconni Marotta; “Aulas do Comércio: mundo da educação versus mundo do trabalho livre e pobre na cidade do Rio de Janeiro”, de Gladys Sabina Ribeiro e Paulo Cruz Terra; “A educação popular no Rio de Janeiro oitocentista: o caso do Liceu Literário Português (1860-1880)”, de Alexandro Henrique Paixão; e “Pelo caminho da liberdade: sujeitos, espaços e práticas educativas (1880-1888)”, de Alexandre Lima da Silva e Ana Chrystina Venancio Mignot.

No artigo “Ler, escrever e contar (…)”, por exemplo, as autoras destacam a existência de estabelecimentos de ensino denominados “Colégios Ticos-Ticos”, que se destinavam, no século XIX, à instrução elementar básica, ou seja, eram as escolas que só ensinavam a ler, escrever e contar. Esses colégios particulares com baixas mensalidades, voltados a pessoas muito pobres, foram citados pelo jornalista e cronista do início do século XX Luiz Edmundo, no livro O Rio do meu tempo. A partir do relato presente nessa obra literária, as pesquisadoras indagam questões como: O que sabemos, de fato, sobre essas escolas da capital daqueles tempos do Império ou nos primeiros tempos republicanos? Como se estabeleciam as relações entre público e privado em matéria educacional? Qual a relação entre a criação dessas escolas com a demanda por escolarização, tendo em vista a densidade e a composição populacional das áreas urbanas e suburbanas?

A afirmação da gratuidade da instrução primária foi inscrita no rol dos direitos dos cidadãos brasileiros no artigo 179 da Constituição outorgada de 1824, regulamentado em 1827 para todo o território nacional. “Essa regulamentação (…) é considerada uma das primeiras tentativas de impor uma política nacional de instrução pública, ao determinar que em povoados e vilas mais populosos fossem estabelecidas escolas, uma para cada sexo, destinadas à instrução elementar da população livre”, relatam as autoras. A presença da escola particular era significativa. “Em 1830, por exemplo, quando havia seis escolas públicas no Rio de Janeiro – todas masculinas –, o número de estabelecimentos particulares registrados elevou-se para 53. Esses estabelecimentos de ensino estavam concentrados na Cidade Velha, então composta pelas freguesias da Candelária, Sacramento, Santana, São José e Santa Rita, área central e portuária da cidade”, destacam. Por outro lado, crescia a importância da instrução pública primária, devido ao projeto político de “formação do povo” na constituição do Estado imperial. Havia também locais de ensino mantidos por associações beneficentes, ligadas aos grupos abolicionistas, além dos professores particulares.

Alessandra e Irma apresentam uma cartografia das práticas de escolarização no Rio imperial. Considerando a localização, a distribuição das escolas e os mecanismos de difusão do ensino da leitura e da escrita, assinalam uma maior incidência de iniciativas educativas nas regiões centrais da cidade. Historicamente, afirmam, essas regiões, que eram locais de moradia, comércio, trabalho e práticas culturais da população trabalhadora, escravizada e livre, também foram as de mais altos índices de matrículas nas escolas públicas, sobretudo a partir de 1870.

Com base em dados oficiais, as autoras concluem que parte do público escolar era composta pela população trabalhadora e seus filhos, incluindo parcelas da população negra, e assim inscrevem seu trabalho no diálogo com os estudos historiográficos concernentes às lutas históricas pela educação escolar. “De acordo com os mapas estatísticos escolares analisados na pesquisa, defendemos a hipótese de uma presença significativa da oferta de instrução pública primária nas áreas centrais da cidade [São José, Candelária, Sacramento, Santa Rita, Santo Antônio, Santana, Espírito Santo], que englobavam o 2º e 3º distritos escolares. Igualmente, na zona sul da cidade [1º distrito], que abrangia Gávea, Lagoa e Glória, havia número expressivo de escolas. No ano de 1892, por exemplo, a Diretoria de Instrução Pública registrou o quantitativo de 120 escolas públicas e 8.500 alunos, sendo que os dois distritos centrais (2º e 3) concentravam 40 escolas e 3.882 alunos”, afirmam no artigo.

Para Giselle, o desafio do projeto é cartografar um Rio de Janeiro (ainda) invisível. Mapear uma cidade para a qual pouco se atentou, embora ela ali estivesse, contida no traçado das ruas, no cotidiano de seus moradores, na vida comum. “Trata-se da cidade que se inscreve, no território, por meio das práticas de cultura escrita vivenciadas por homens e mulheres pobres no Rio de Janeiro Imperial. Não se trata de voltar uma vez mais sobre Machado de Assis e Lima Barreto para dizer como eles foram excepcionais, mas para mostrar o que eles tiveram em comum com outras pessoas pobres, negros, mulatos ou não: a aprendizagem do ler e escrever, e evidenciar como ela aconteceu”, conclui Giselle.

Fonte: FAPERJ