Gilda Cardoso, doutora em Educação, explica o perigo do PL aprovado na Câmara e do apresentado no Estado, por Capitão Assumção

FERNANDA COUZEMENCO
“É um projeto de morte”, responde, taxativa, a doutora em Educação Gilda Cardoso, em relação ao Projeto de Lei nº 59/2021, de autoria do deputado estadual Capitão Assumção (Patri), que propõe estabelecer as aulas presenciais, em todos os níveis e redes de ensino do Espírito Santo, como atividade essencial, tornando obrigatório mantê-las funcionando mesmo em municípios em risco extremo e alto de contaminação por Covid-19, que é o caso de 69 das cidades capixabas na atual semana epidemiológica.

Coordenadora do Laboratório de Gestão da Educação Básica do Espírito Santo, vinculado ao Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (Lagebes/Ufes), Gilda alerta que tanto o PL de Assumção, que tramita na Assembleia Legislativa – atualmente devolvido à Procuradoria Geral – quanto o PL 5595/2020, de Paula Belmonte (Cidadania/DF), aprovado nessa terça-feira (20) na Câmara dos Deputados, são projetos “egoístas e pouco empáticos”, que trafegam na contramão do direito constitucional à vida e à saúde, e são levantados por “um grupo pequeno, mas barulhento”, que nunca defendeu as pautas verdadeiras da educação.
“A educação não é uma atividade do mercado. A Constituição Federal abre a possibilidade da coexistência de instituições públicas e privadas, desde que as mesmas sejam autorizadas, reconhecidas e credenciadas pelo poder público”, enuncia, para contextualizar de forma abrangente e constitucional a verdadeira disputa que está por trás da defesa da essencialidade das aulas presenciais durante a pandemia de Covid-19.
Na verdade, a motivação está explicitamente posta na justificativa do PL de Assumção, em que o deputado afirma que, “apesar das inúmeras evidências da importância do pleno funcionamento do setor educacional, ainda se observa a estagnação por parte do Poder Público Estadual em reconhecer tal atividade como sendo essencial, impondo o medo principalmente do setor privado, que depende da adesão de clientes (alunos) para a sua subsistência no mercado” e que, “nesse contexto, tal setor fica sempre à mercê de uma decisão autoritária e infundada que pode culminar no fechamento de tais estabelecimentos, gerando prejuízos inimagináveis não só ao gestor privado, mas também, e principalmente, ao discente”.

Para a especialista, afirmar que “o setor privado fica sempre à mercê de uma decisão autoritária infundada” é uma grande irresponsabilidade. “Estamos vivendo uma pandemia e numa fase de risco extremo. O direito à vida, o direito de professores e alunos sobreviverem a uma pandemia é soberano ao interesse do mercado, do setor privado, ainda mais com esse percentual de alunos que é inexpressivo”, consigna, referindo-se ao percentual de menos de 20% das matrículas que estão vinculadas à rede privada de educação básica capixaba.

Os parlamentares e os integrantes dos chamados “movimentos de pais pela educação”, que apoiam esses projetos de lei, expõe a coordenadora do Lagebes, “levam em conta o funcionamento da educação como se fosse um bar, uma loja de rua”, o que é inapropriado. “A educação é um direito social, como a saúde, e entre um e outro, prevalece o direito à vida e à saúde, segundo o texto da Constituição Federal”.

Esses grupos, ressalta, “sempre desconsideraram a situação da Educação antes da pandemia e nunca colocaram a Educação como serviço essencial, principalmente para melhorar as condições de trabalho de infraestrutura e de salário de professor da educação pública”. A pauta que empenham, aponta, “quer impor a lógica do mercado sobre a educação pública”.
Exclusão digital
Um segundo pilar da justificativa de Assumção para aprovação da proposta remete ao “fato de muitos alunos não terem condições de sustentar minimamente o ensino à distância (EAD), seja por falta de condições financeiras e de equipamentos capazes de proporcionar a devida conexão para a participação nas aulas, seja pela precariedade ou inexistência de ensino remoto em muitos municípios capixabas. Tais fatos estão devastando a vida educacional dos alunos, atrasando a sua formação e reduzindo a convivência escolar, que é de fundamental importância na vida deste”, aponta.
Nesse sentido, conclui o parlamentar, “o presente projeto de lei, fundamentado no bom senso e no equilíbrio, objetiva incluir as atividades escolares de qualquer natureza como sendo serviços essenciais, evitando o fechamento dos estabelecimentos de ensino em todos os níveis”.
A menção ao grande contingente de alunos que atravessam as maiores dificuldades com o ensino remoto, devido à baixa inclusão digital da comunidade escolar, realidade negligenciada pelos sucessivos governos federal, estadual e municipais, apesar de legítima, salienta Gilda Cardoso, não se relaciona com o objetivo do projeto de lei, nem considera o contexto real e abrangente da educação pública.
“As escolas não têm muitas vezes álcool em gel, ventilação, não têm sequer uma telha decente para cobrir a cabeça de professores e alunos”, elenca. “Eu fico me perguntando se esses movimentos pela essencialidade da educação estão de fato pela educação ou para fazer valer o dinheiro que estão gastando com a mensalidade. Ou, para ser mais explícita ainda, para não fechar suas empresas privadas que oferecem ensino particular”, provoca.

Experiência europeia

Outro argumento mal apresentado nos discursos dos apoiadores desses PLs, ressalta a cientista, é a de que devíamos repetir a experiência europeia, de manter as escolas abertas, como atividade essencial. “Para abrir escola, tem que fechar shopping, tem que fechar loja de rua, tem que fechar restaurante, só funcionando ônibus para o pessoal da saúde e da educação, e o resto fica fechado. Assim que foi feito na Alemanha. Mas quando a gente fala isso, o movimento de pais pela educação não apoia. Também não defende que professores e todo o pessoal que trabalha em escola sejam priorizados na vacinação”, contrapõe a educadora.
Esses grupos, que ela percebe como pertencentes à “nova direita”, tampouco criticam o governo federal em relação à sua omissão em comprar vacinas no momento certo. “Não há nenhuma menção, nesses projetos de lei, à responsabilidade do governo federal por esse quadro grave que nós estamos passando”, critica.
O momento, conclama Gilda, é de precaução, empatia e cuidado. “As pessoas que têm o mínimo de bom senso e sentimento de pertencimento a uma coletividade, uma mínima noção de cidadania, nesse momento que o Brasil é o epicentro da pandemia no mundo, deveriam correlacionar essa série de fatores e evitar esse tipo de caos que está para acontecer”.
Genocídio evitável
Na perspectiva do Lagebes, pondera a coordenadora, a situação é ainda mais preocupante quando se constata que tais propostas irão colocar em risco não só a vida de professores e alunos, mas de toda a população, já que o retorno das aulas presenciais traz maior interação entre as pessoas no transporte público, nas ruas e nos comércios, para além das salas de aula, o que favorece a maior contaminação pelo vírus e a formação de novas mutações, cada vez mais transmissíveis e, em alguns casos, mais letais.
“A gente está com uma série de variantes circulando no Estado, inclusive a inglesa, que é mais transmissível e talvez mortal, e foi por isso que houve lockdown na Inglaterra, e as pessoas não querem saber de nada disso. Então eu acho que é um verdadeiro assassinato em massa, para não dizer genocídio, o que essas pessoas propõem”, alerta.

Fonte: https://www.seculodiario.com.br/educacao/exigir-essencialidade-da-aula-presencial-e-projeto-de-morte-alerta-doutora-em-educacao