A revolta das novas elites é contra a democracia, mas a inversão é a de que é feita em nome do povo.

José Ortega y Gasset é um pensador do século XX em grande medida esquecido, um inusitado filósofo espanhol cujo trabalho de ciência social mais importante, a Revolta das Massas, expressou seus receios sobre um mundo no qual indivíduos liberais estavam desaparecendo e o “homem da massa” estava surgindo.

A ideia de homem da massa de Ortega não era uma imagem do pobre, do destituído ou da multidão proletariada, mas de uma massa do homens medianos que tornaram-se semelhantes pelos seus gostos, disposições e valores, e não por serem desapropriados. Assim, Ortega assemelha-se mais aos não tão antigos críticos norte-americanos dos homens em “terno cinza de flanela”[1] do que com os críticos da Escola de Frankfurt da sociedade de massa. De todo modo, Ortega foi um dos primeiros a perceber nas massas, de qualquer tipo, uma revolta contra os ideais liberais do século XIX.

Volto a Ortega agora porque penso que o século XX esgotou as principais formas de revolta de massa e que entramos em uma nova época caracterizada pela “revolta das elites”. Essas elites em revolta são aquelas que apoiam, cercam, promovem e elogiam as novas autocracias de Narendra Modi, Donald Trump, Recep Tayyip Erdogan, Jair Bolsonaro, Boris Johnson, Viktor Orbán e vários outros que criaram o que poderia ser chamado de “populismo de cima” – quando as pessoas são ferramentas eleitorais para uma erupção da democracia.

Por que chamar esse comportamento das novas elites autocráticas de “revolta” ao invés de simplesmente capitalismo predatório, carisma, neoliberalismo em sua última roupagem, capitalismo do desastre, todos esses termos já disponíveis? Quem são essas novas elites e contra quem estão se revoltando?

Primeiro, eles estão se revoltando contra todas as outras elites que desprezam, odeiam e temem: elites liberais, elites midiáticas, elites seculares, elites cosmopolitas, elites de “Harvard”, elites WASP[2], elites econômicas mais antigas, intelectuais, artistas e acadêmicos (essas categorias são um universo do qual diferentes populistas nacionais escolhem os termos nacionais e culturais apropriados). Portanto, uma elite que disfarça seu próprio elitismo em um discurso antielitista.

Segundo, essa revolta é contra todos aqueles que se acredita que teriam traído as elites reais e conquistado poder ilegitimamente: negros nos EUA, muçulmanos e secularistas na Índia, pessoas de esquerda e LGBT no Brasil, dissidentes, jornalistas e ativistas de ONGs na Rússia, minorias religiosas, culturais e econômicas na Turquia, imigrantes, trabalhadores e sindicalistas no Reino Unido. Essa é uma revolta daqueles que pensam que são a verdadeira elite contra quem consideram usurpadores ou elites falsas.

Terceiro, a revolta dessas novas elites é contra os grilhões que os ataram na época da democracia liberal. Eles odeiam liberdade, igualdade e fraternidade, exceto para eles mesmos. Eles odeiam freios e contrapesos, que consideram restrições ilegítimas à sua liberdade de agir sem restrições. Eles odeiam regulações de qualquer tipo, especialmente as de privilégios corporativos, as quais entendem como uma conspiração contra o capitalismo, que tomam, por sua vez, como uma jurisdição privada. Acima de tudo, eles odeiam a racionalidade deliberativa e de procedimentos, uma vez que envolvem escuta, paciência e aderência a racionalidades coletivas. Eles também não acreditam na separação dos poderes, exceto quando seus amigos controlam o legislativo e o judiciário.

Isso significa, basicamente, que a revolta das novas elites é contra a democracia, mas a inversão é que essa revolta é feita em nome do povo. Em outras palavras, a ideia moderna de povo foi completamente apartada das ideias de demos e democracia. Trata-se de uma revolta – no sentido de que insurgências para capturar o poder são sempre revoltas – mas não de uma revolução, voltada a mudar algo na ordem fundamental do governo ou da economia. Essa revolta é um esforço de uma elite para substituir outra.

Tudo isso pode parecer excessivamente genérico ou historicamente familiar se nós não fizermos algumas perguntas sociológicas. Qual é a natureza dessa nova elite? Quem define suas condições de entrada? Quem fala por ela? Quais são suas raízes sociais? Essas questões nos trazem rapidamente para Estados e sociedades específicos.

No caso dos Estados Unidos, a elite da qual Trump é porta-voz e que compartilha com ele uma trajetória histórica similar: eles não alcançaram os estratos acadêmicos mais altos, eles são empreendedores digitais ou políticos, eles são líderes republicanos no Senado, o lado republicano na câmara dos deputados e a escória do Tea Party[3] em todos os níveis de política. Ademais, eles incluem os CEOs mais megalomaníacos e neofascistas (incluindo ícones do Vale do Silício como Peter Thiel[4]), a grande maioria da mídia televisiva e radiofônica e a extensa rede de doadores, igrejas e pastores racistas e gananciosos. Adicione-se a este grupo alguns malandros carreiristas dos principais think-tanks[5] de direita.

No centro desta rede de elites sem raízes culturais óbvias, status ou história, estão redes secretas tais como a Sociedade Federalista[6], com ligações com grupos transnacionais como a Opus Dei. São redes de oportunismo, ganância e avidez de lucro sem quaisquer outros valores ou conexões tradicionais.

Uma imagem similar poderia ser feita das elites do atual governo na Índia, abertamente desdenhoso em relação a qualquer instituição democrática a não ser as eleições. Ele é composto por economistas medianamente treinados, bandidos de carreira, magnatas de negócios cleptocráticos que operam por meio de monopólio, lobby e corrupção direta, e a nova classe de políticos e legisladores desavergonhadamente criminosos. A revolta dessa elite é contra todas as pessoas ou grupos associados ao socialismo, secularismo e pluralismo nehruviano[7].

É uma elite que acredita que a direita Hindu (seu próprio clube) é a salvadora adormecida da história indiana, acordando após o longo sono dos domínios de Mughal, da Grã-Bretanha e do Congresso[8], uma aliança forjada no cadinho de ideologias, políticas e pogroms anti-muçulmanos. Não há unidade de classe verdadeira para essa elite revoltosa a não ser o controle dos meios de impunidade política, social e econômica. Assim como os parceiros de Trump, essa é uma elite de oportunismo, lubrificada pelo desprezo por instituições participativas de todos os tipos.

Apesar de não conhecer o suficiente sobre as origens sociais e os ódios de estimação do pessoal de Erdogan, Putin, Bolsonaro e Duterte, estou preparado para especular que cada uma dessas elites revoltosas tem um perfil similar: ressentimento em relação às elites culturais e sociais tradicionais, desprezo pelo procedimentalismo liberal, ódio por intelectuais, acadêmicos, artistas, ativistas, socialistas, feministas, admiração pelo capitalismo, desde que seja regulado para favorecê-las, e um ódio à democracia combinado com sua devota busca pelo eleitor (e não pelo povo, como dizem).

Orbán acabou de declarar seu poder eterno e absoluto na Hungria, Trump exigiu que seu nome fosse impresso nos cheques de socorro pela COVID-19 e disse que ele pode usar poderes emergenciais para fazer o que bem deseja na crise atual. Modi declarou-se, na prática, acima da constituição da Índia, publicamente compartilhou da causa de Bolsonaro, Trump e Netanyahu e usou a crise do COVID-19 para estender a toda a Índia políticas de toque de recolher, espancamentos por policiais, prisões sem motivos reais e repressão generalizada, táticas essas testadas anteriormente em Kashmir. Em todos esses movimentos, seus líderes sustentam-se em uma rede de simpatizantes e colaboradores que acreditam que vão prosperar se agirem de acordo com seu Líder Supremo.

Portanto, se as elites que caracterizam as novas autocracias populistas do mundo são elites “populistas de cima” revoltando-se contra elites anteriores, revoltadas com a democracia liberal, como dar conta de seus seguidores, seus eleitores e suas bases, o “povo” em nome do qual, e com seu caloroso consentimento, eles desfazem muitas tradições, crenças e estruturas democráticas?

Tem algumas respostas conhecidas para essa questão bastante perturbadora. Uma é a de que esses autocratas entendem e usam instrumentos de afeto (sentimentos de amor, perda, sacrifício, ódio e raiva) enquanto seus oponentes estão à deriva no mar de argumentos quase-acadêmicos sobre conceitos, normas e lógica que perderam sua capacidade de mobilização popular. A segunda é a de que existe algo sobre o aparecimento global de tecnologias da aspiração (propaganda, bens de consumo, cultos de celebridade, lucros corporativos) que fez com que as classes pobres e subalternas ficassem impacientes com a lentidão dos processos deliberativos liberais. Elas querem prosperidade e dignidade agora e esses líderes prometem esses resultados para elas.

Outro argumento é o de que as classes mais baixas estão tão cansadas da exclusão, empobrecimento e humilhação que se identificam com seus lideres predatórios (os quais simplesmente fazem o que querem), tornando-os, assim, mais suscetíveis às distrações da etnofobia (contra muçulmanos, refugiados, chineses, ciganos, judeus, migrantes, dentre outros). Todos esses argumentos fazem sentido em alguns contextos nacionais.

Todavia, sugiro que o maior insight que Ortega y Gasset oferece é nos ajudar a ver que estamos no início de uma época em que a revolta das massas foi capturada, cooptada e deslocada pela revolta das elites. A coisa mais perturbadora nessa captura, como o uso contínuo das eleições pelos autocratas revela, é que as massas (seja lá quem são) vieram a acreditar que a revolta das novas elites é, de fato, a sua revolta e que tudo o que elas precisam fazer é torcer (e se possível emulá-los) por seus líderes demoníacos, os quais podem lhes oferecer uma solução mais rápida do que um esforço genuinamente popular ou insurrecional para mudar a ordem das coisas.

De certa maneira, as novas massas eleitorais começaram a sentir que os benefícios da predação de seus líderes logo chegarão para eles. O principal resultado dessa percepção é o de que as classes pobres e subalternas agora podem impunemente matar, mutilar e humilhar seus bodes expiatórios mais fracos. Todavia, a conquista de benefícios mais cotidianos – como empregos, assistência médica, renda mais alta e cidades mais seguras – ainda exige paciência sem fim daqueles que estão na base da pirâmide. Mas eles vivem na esperança de que, se o ódio chega até eles, talvez a prosperidade também pode chegar.

Arjun Appadurai    (1949)

Arjun Appadurai é antropólogo e professor em Nova Iorque e Berlin. Seu livro mais recente, escrito em conjunto com Neta Alexander, é Failure (Londres: Polity Press, 2019). No Brasil, uma coletânea de artigos seus foi publicada com o título de A vida social das coisas (Niterói: Eduff, 2006).

Notas

[1] The man in the gray flannel suit (o homem em terno cinza de flanela) é um livro escrito por Sloan Wilson, publicado em 1955 e adaptado para o cinema, com o mesmo título, no ano seguinte. A história narra o drama de Tom Rath, um veterano da segunda guerra que tenta equilibrar a vida cotidiana de trabalhador, marido e pai de família com as lembranças traumáticas do conflito. O personagem foi tomado por sociólogos e críticos culturais como uma ilustração do homem norte-americano comum, submetido a um padrão de classe-média, mas incapaz de construir novos horizontes de vida, já que sentia-se emocionalmente corroído (N. do T.).

[2] WASP, sigla para White Anglo-Saxon Protestant (branco, anglo-saxão e protestante), refere-se à tradicional elite norte-americana (N. do T.).

[3] Tea Party (partido do chá) é um movimento conservador nos Estados Unidos que reúne, além de vários outros grupos sociais, a ala mais radical à direita do Partido Republicano. Apesar de levar partido no nome, não se trata de um partido institucionalizado (N. do T.).

[4] Peter Thiel, nascido na Alemanha e com cidadania norte-americana, é um investidor, empreendedor e diretor-executivo de empresas tecnológicas vinculadas a negócios digitais. Esteve envolvido na fundação da PayPal e na direção financeira do Facebook. Thiel é filiado ao Partido Republicano (N. do T.).

[5] Think-tank significa literalmente tanque-de-pensamento. É por essa expressão que centros de pesquisa, de elaboração de intervenções públicas, de ações de lobby e de orientação política são conhecidos nos Estados Unidos. São eminentemente particulares, alguns têm ligações com universidades e se espalham por todo o espectro político, da esquerda à direita (N. do T.).

[6] A Sociedade Federalista é uma instituição conservadora norte-americana que defende, em linhas gerais, uma interpretação literal da Constituição do país. Sua influência no mundo do direito é bastante significativa (N. do T.).

[7] Nehruvianismo é a tradição política que surgiu na Índia a partir do governo de Jawaharlal Nehru, Primeiro Ministro do país entre 1947 e 1964, etiquetada como uma proposta secular, aberta à diversidade cultural, desenvolvimentista e distributiva (N. do T.).

[8] Mughal é o império que dominou, entre outras regiões, o que é hoje a Índia entre 1526 e 1857. Assim, neste trecho, o autor está se referindo a um período de longuíssima duração, afirmando que a elite que sustenta Modi, o atual presidente indiano, se vê como o despertador de um sono político que começou em Mughal, continuou no período de domínio inglês (1858-1947) e prosseguiu no momento parlamentarista (1947-presente) (N. do T.).

Publicado originalmente em: https://graduateinstitute.ch/communications/news/revolt-elites?fbclid=IwAR0uv-lx6XP0WWstG6X9Z1n4uSHsMggV65ms6JmGaFL-8SJYADxCAfvUSv0