Anna Ortega e Grégorie Garighan

 

Entrevista | Professora da Faculdade de Educação da UFRJ discute a problemática do acesso ao ensino superior no Brasil e as responsabilidades da academia

Rosana Heringer, professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tem contato direto com o dia a dia da universidade pública. Coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Educação Superior, da Faculdade de Educação da UFRJ, a docente entende que, se por um lado a expansão de vagas e a diversificação por meio das ações afirmativas já tiveram avanço, a grande questão que ainda está por ser enfrentada é a da democratização plena do ensino superior.

Com os impactos da pandemia, o destino final parece estar mais distante. O efeito das desigualdades sistêmicas encontradas pelos jovens no Brasil é percebido quantitativamente. Adicionadas as dificuldades trazidas pelo ensino remoto, a situação se agrava. “Tudo se exacerba com o efeito da pandemia”, afirma Rosana. “A realidade das aulas online foi muito desigual entre os alunos.”

O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), considerado instrumento de democratização no acesso à universidade, encontrou taxas altíssimas de abstenção em sua edição de 2020. Esses resultados traçam a realidade de milhões de jovens brasileiros em situação de vulnerabilidade potencializada pela pandemia. “Eu diria que a gente viveu um ano trágico do ponto de vista do acesso à educação superior no Brasil”, complementa.

Qual o papel do Enem na democratização do ensino superior no Brasil?
O Enem foi criado no final dos anos 1990 com a intenção de ser uma prova de avaliação do Ensino Médio, do mesmo jeito que a gente tem a Prova Brasil para o Ensino Fundamental. Mas, na verdade, ele acabou se convertendo no principal mecanismo de seleção do ensino superior. Primeiramente do ensino público e depois, com o Prouni e Fies, o principal mecanismo de seleção para as universidades privadas. É interessante esse processo, porque a gente poderia pensá-lo como resultado não previsto de uma política. Quer dizer, não foi pensado com esse fim e depois ele se tornou esse mecanismo de seleção.

Eu acredito que ele contribuiu principalmente por dois fatores. Primeiro porque ele tornou o acesso nacional e, então, facilitou para que pessoas que estivessem fora dos grandes centros pudessem fazer a seleção de qualquer lugar. O Enem facilitou também por se tornar, para a grande maioria das instituições de ensino superior, uma única seleção na qual você pode se candidatar para várias universidades. Esses dois mecanismos, portanto, ao que me parece, são os fatores que dão o caráter democratizante do Enem.

Agora o lado ‘B’ disso, o lado que não o faz muito mais democrático que os antigos vestibulares, é o fato de que as desigualdades que existiam antes continuam existindo, elas não terminam por causa do Enem. As dificuldades de acesso a uma escola de Ensino Médio de qualidade, as desigualdades sociais, raciais estão todas aí, e elas se refletem nos resultados do Enem.

Você acredita que, devido aos efeitos da pandemia, o Enem 2020 tenha sido o mais desigual de todos? O que mudou com a pandemia?
Eu concordo, porque, de fato, as condições, que já eram desiguais, se tornaram ainda mais desiguais. O que a pandemia está fazendo, acredito que no mundo inteiro, mas no Brasil a gente vê isso bem de perto, é ressaltar, enfatizar as desigualdades que já existiam, do ponto de vista de mercado de trabalho, de saúde, de renda e educação também. Tudo se exacerba como efeito da pandemia. Então eu acho que com o Enem não foi diferente, a realidade das aulas online foi muito desigual entre os alunos.

Houve escolas particulares que conseguiram suprir um pouco mais a qualidade do ensino remoto e houve escolas públicas que mal tiveram aula. Muitos alunos de menor renda e de escola pública também não tiveram condições de ficar estudando em razão de outras dificuldades familiares. Então, foi uma tragédia. Eu diria que a gente viveu um ano trágico do ponto de vista do acesso à educação superior no Brasil.

A taxa de abstenção foi absurda, e na segunda etapa foi ainda maior que na primeira: mais de 50%. E agora a gente vai ficar com esse rescaldo das reaplicações e teremos, pela primeira vez, as aplicações online. Eu não estou acompanhando os detalhes de como está sendo implementado, mas acredito que vá ser algum teste se for minimamente bem organizado. Embora a logística do atual governo não seja forte, eu acho que a questão da aplicação online possa ser, futuramente, uma forma de ampliar a democratização.

Quais serão os efeitos da tragédia na educação a longo prazo para o ensino superior?
Ontem mesmo me mandaram uma matéria sobre isso, justamente falando sobre o número de desistências de estudantes. Quem me mandou foi uma colega que coordena o Observatório da Vida Estudantil na Universidade Federal da Bahia, e a gente está sempre conversando sobre isso. Na verdade, alguns números já estão mostrando as taxas de trancamento e evasão dos alunos ingressantes em 2020/1. Esse é o primeiro efeito no ensino superior.

O outro é esse ingresso não presencial. A gente sabe o quanto o início da vida acadêmica, para o aluno, é cercado de expectativa, de sonho quanto à nova experiência. Mas como você conhece a sua turma se você não tem interação com ela no presencial? É muito difícil. E é um tema que a gente tem trabalhado bastante no nosso grupo de pesquisa: a dimensão simbólica e subjetiva do estar no Ensino Superior, do estar na universidade. Você fica muito limitado nessa experiência. Acho que isso é uma perda muito grande que tem repercussão na permanência. A gente sabe, por vários estudos que existem no Brasil e fora, que permanecer na universidade é algo que tem muitas dimensões, não é só ingressar e cursar as disciplinas. Você tem vários outros fatores que contribuem para isso.

Esses alunos que estão entrando agora são alunos que estão sendo limitados na sua possibilidade de vivenciar plenamente essa experiência do ensino superior. Pode ser que eles recuperem isso em um ano, mas quantos vão ficar pelo caminho? Quantos vão desistir?

Rosana Heringer

E para o ensino médio?
A gente hoje ainda tem um número muito grande de jovens que concluem o ensino médio e não vão pra universidade; é a maioria, na verdade. A proporção de jovens de 18 a 24 anos (que seria a idade de estar na universidade) que concluíram o ensino médio mas não estão estudando está no entorno de 30% nos dados mais recentes. A proporção dos que não estão estudando nem trabalhando é menor, mas também expressiva. Então, no quadro da situação educacional brasileira, a gente já tem um gap no grande número de pessoas que não vão fazer essa transição. E eu acho que a pandemia vai fazer com que esse número aumente. Imagino também que já deve estar provocando uma evasão no ensino médio, porque, com uma aula online que não atende, a probabilidade de você ir fazer outra coisa da vida é grande.

Quais suas hipóteses acerca dessa parcela já existente da população que não acessa o ensino superior?
Tem muitas razões. A gente pode ir desde as razões mais individuais e pessoais até razões agregadas, ligadas ao contexto em que os jovens vivem. Também tem muito estudo sobre isso. Mas o principal que a gente observa é o grande número de estudantes de ensino médio de escolas públicas que não têm o ensino superior como horizonte. O horizonte é muito mais imediato: “Bom, eu vou terminar aqui, vou ter esse certificado e vou tentar, de alguma maneira, me inserir no mercado de trabalho”. O principal é esse: não ter um horizonte de possibilidades.

A escola pública de ensino médio contribui pra isso. Temos pesquisa com professores mostrando que a escola já tem uma espécie de profecia autocumprida com seus alunos: de que não são [feitos] para ingressar no ensino superior. Então a escola não faz preparação de Enem, não abre pros estudantes a informação sobre opções de carreira, sobre opções de instituições públicas ou privadas.

Eu tenho uma aluna recém-doutora que pesquisou exatamente isso. Ela faz uma pesquisa no interior da Bahia e na favela da Maré, aqui no Rio, e observa isso nos dois casos. No caso do estudo dela, [os alunos] até gostariam, mas não sabem nada. Eles não conhecem o nome das universidades, não sabem o que é Prouni ou que tem que fazer o Enem para concorrer. Então eu acho que as principais razões são: a escola pressupor que os estudantes não querem, não conseguem ou não têm interesse em ingressar; os estudantes terem a necessidade e a demanda de ingressarem no mercado de trabalho logo; e a gente entra pro lado da universidade também. O que a Universidade está fazendo? A universidade está buscando esses alunos?

A gente tem que ver que a universidade também tem uma responsabilidade, inclusive as públicas, do ponto de vista social; elas têm o dever de abrir seu espaço, suas vagas para um número de estudantes os mais diversos.

Rosana Heringer

Qual universidade existia antes das ações afirmativas e qual surgiu após?
A gente pode falar de expansão, diversificação e democratização do ensino superior, das universidades públicas e particulares. Então, cada uma dessas coisas é algo diferente, por isso é importante a gente pensar: “O que houve com o Reuni?”. Houve uma expansão, efetivamente, de universidades, mais vagas, mais cursos noturnos, mais câmpus. Mas a questão é que não foi só o Reuni, do ponto de vista de agregar mais alunos. “Que alunos passaram a entrar?” Aí a gente entra em uma questão de políticas de inclusão, das políticas de ação afirmativa, que várias universidades já adotavam e que, com a Lei de Cotas de 2012, se tornou política nacional para as federais – e aí o impacto foi muito mais imediato, uma vez que antes ficava um pouco a critério de cada instituição. Aí você uniformiza isso e traz a perspectiva de uma ação muito mais imediata – a Lei de Cotas teve um efeito muito rápido.

Essa experiência das ações afirmativas, tanto das que já existiam quanto as cotas, produziu essa diversificação de público, que é um efeito diferente de expansão pura e simplesmente. E aí a pergunta que fica é: “Democratizou?”. Essa é a palavra-chave, porque depende do que você define como democratização. Se você achar que o fato de ter mais aluno negro, indígena, pobre, de escola pública, principalmente nos cursos mais elitizados, é democratização, você pode dizer que democratizou. Se, porém, você for para uma análise mais profunda, pensando em quem permaneceu, quem se formou e em que cursos esses alunos se formaram, aí a gente entra em outros termos. Aí a gente tem trabalhado com o conceito de sucesso acadêmico. Que sucesso acadêmico esses alunos tiveram?  Eles conseguiram se formar no tempo previsto para o curso? Aí você vai olhando esses outros aspectos. E, se a gente for mais além, tem a pesquisa com os egressos. O que aconteceu com esses que se formaram? Eles se inseriram no mercado de trabalho da sua área?

Se os primeiros cotistas raciais ingressaram em 2012 por Lei de Cotas, nós já temos, pelo menos, há seis anos, alunos cotistas formados. Onde estão esses médicos, esses advogados, esses engenheiros negros?

Qual universidade você entenderia como necessária para o período que a gente vive hoje? 
Eu tenho pensado muito sobre o efeito da presença desses estudantes na universidade, então acho que primeiro a universidade tem que ter humildade, tem que ser receptiva a essa diversidade que ela está trazendo pra dentro dela. Isso a gente tem visto nas demandas dos coletivos de estudantes negros, de mulheres, de LGBTs: “A gente quer ler mais autores negros, mais autoras mulheres, a gente questiona a questão do saber colonial”.

Eu acho que a presença desses alunos pode trazer mais questionamentos à própria instituição, às práticas docentes, no sentido de desrotular, tirar estereótipos, desconstruir preconceitos, enfrentar questões como o racismo estrutural, a discriminação que existem nas nossas instituições – afinal nós não somos alheios ao que há na sociedade. E abrir a possibilidade de você pensar política nesse sentido. Pensar políticas de permanência que não fiquem só naquela ‘caixinha’ do auxílio financeiro; que a gente possa, de fato, olhar para essa ideia da permanência e do sucesso acadêmico do aluno de uma forma integrada

Rosana Heringer

A gente vê depoimentos de alunos falando: “A bolsa é fundamental, mas não só a bolsa”. Tem outras questões que fazem a diferença pro aluno permanecer na universidade. E muitas vezes são questões que não envolvem dinheiro. É o se sentir engajado, se sentir parte, participante.

Um desafio futuro talvez seja pensar a questão de como vai ficar o ensino remoto, se ele irá se manter, ser incorporado definitivamente a nossas vidas, se a gente vai avançar para um modelo híbrido… Talvez uma questão de flexibilização dos modelos de ensino.

Fonte: https://www.ufrgs.br/jornal/a-universidade-tem-que-ter-humildade-tem-que-ser-receptiva-a-essa-diversidade-que-esta-trazendo-pra-dentro-dela-pontua-a-sociologa-rosana-heringer/?fbclid=IwAR3FQBjc_ejDBf5myI64t8OhizmBpTOGqs0MJzIvesS9LaaiRrfOkSpNORw