GUARESCHI, P.A. A categoria ‘excluído’, In: Psicologia, Ciência e Profissão – Ano 12, nº 03, Abril de 1992, Conselho Federal da Medicina, pp.

O autor inicia nos convidando a fazer um exercício crítico com referência às palavras-conceitos: Categoria e Excluído. Costuma-se dizer que o excluído constitui uma categoria, contudo o que implica falar em “”categoria””? A metodologia tradicional define o conceito de categoria através de duas características essenciais: a) devem ser abrangentes, e b) mutuamente exclusivas. “”Dizendo o mesmo com outras palavras, afirma-se que uma boa categorização é aquela que consegue colocar todos os fenômenos dentro das categorias propostas (abrangência), e aquela que ao mesmo tempo não permite que nenhum fenômeno possa ser colocado em mais de uma categoria (mútua exclusão)””(p. 4). O autor chama atenção para o fato de que toda teorização, ou seja, toda prática assim chamada de científica, implica inevitavelmente em uma determinada visão valorativa. Este fato aponta para a impossibilidade de uma ciência neutra. Deste modo, quando se adota esta concepção do conceito de “”categoria””, isto implica assumir “”uma teoria metodológica, uma determinada visão de mundo e de realidade, que pressupõe a possibilidade de fenômenos absolutos, sem relação nenhuma entre eles””(p.6). Nos pergunta o autor: quais as conseqüências disso? “”Eu começo a pensar num mundo onde existem fenômenos separados, à parte, independentes uns dos outros. (…) Num mundo de ‘categorias’ eu falo de pobres e ricos; num mundo de relações, eu falo de enriquecidos e empobrecidos””(p.6). Isto porque, não existe um enriquecido sem alguém que o enriqueceu. Assim sendo, o autor nos questiona se na vida em sociedade é possível separar uma coisa da outra. Neste sentido, nos convida a responder, em que medida a teoria tem a ver com a prática? A seguir, se afirma que o excluído não existe por si mesmo. “”Ele é uma realidade sempre ligada a outra. Se digo que alguém é excluído, devo logo perguntar: Excluído de onde? Ou: excluído por quem?””(p.7). O autor considera que nós necessitamos dos excluídos, “”precisamos deles para nos afirmar”” (p.7). O artigo analisa o perfil dos diversos tipos de excluídos: a) o excluído da normalidade (o doente mental): neste momento, o autor chama atenção para o fato de que não existe o louco, sem o sadio. “”E mais: muitas vezes quem passa a definir os critérios de ‘louco’ ou ‘sadio’ são os que detém o poder”” (p.7). Assim sendo, quando perdemos a relação das coisas, quando pensamos no excluído da normalidade sem a relação com o incluído, e quando definimos o que é normalidade de uma maneira absoluta, estamos praticando uma ciência autoritária, ditatorial. b) o excluído econômico (o preguiçoso): aqui se afirma a tese de que “”o excluído economicamente, o favelado, o mendigo, o empobrecido, é condição necessária da existência do incluído”” (p.8). Um necessita do outro. Para ilustrar esta afirmativa o autor cita alguns versos de Vinícius de Moraes, no poema “”O Operário em Construção””: o operário notou que sua marmita era o prato do patrão; que sua cerveja preta, era o whisky do patrão; que seu macacão de zuarte, era o terno do patrão; que o casebre onde morava, era a mansão do patrão; que seus dois pés andarilhos, eram a roda do patrão; que a dureza do seu dia, era a noite do patrão; que sua imensa fadiga, era a amiga do patrão. E o operário disse não! Segundo Guareschi, “”é exatamente no momento em que o operário se dá conta da relação, intrínseca e imprescindível, entre ele e seu patrão, que a alienação tem fim””(p.8). Aponta-se para um vinculação causal entre exclusão econômica e as exclusões política, religiosa, cultural e social. Isto porque, “”à medida em que as pessoas são privadas das necessidades básicas de sobrevivência, como alimentação, saúde, moradia, etc. nessa medida são também marginalizadas dos outros benefícios sociais”” (p.8). Essa mesma sociedade que possibilita a existência do “”excluído””, passa depois a negá-lo. “”O rico necessita do trabalhador para, através do fruto de seu trabalho, enriquecer-se; mas no momento em que chega a uma situação desejada, nega a relação, fecha-se sobre si mesmo e trai quem possibilitou sua própria existência”” (p.9). c) o excluído religioso (o pecador): aqui mostra-se como o absolutismo totalitário não se contenta em dominar apenas as dimensões econômica, social, intelectual e mental das pessoas; precisa dar conta também da dimensão transcendente do ser humano. Encontramos junto aos absolutismos religiosos, a contrapartida dos sacrificados. “”Através de suas vidas, denunciavam a dominação absolutizadora e lhes mostravam a ‘relatividade’ do poder e a existência do ‘Outro’””(p.9) Em toda a história da humanidade era sempre o dominado, o oprimido, que era o pecador. d) o excluído intelectual (o ignorante): a partir de uma afirmação de Paulo Freire – não há saber mais ou saber menos: há saberes diferentes- o autor critica a quantificação do saber que caracteriza a nossa sociedade; uma sociedade na qual tudo é materializado e mensurado. Na perspectiva do autor “”todo saber é fundamentalmente uma experiência, e a experiência é pessoal e irrepetível”” (p.9). Ao se indagar, então, qual a necessidade de quantificar os saberes, afirma que a diferença nos ‘saberes’ originou a divisão social do trabalho que, por sua vez, dá origem à divisão de classes. Assim, pretende-se apontar para a íntima relação de poder que deriva do pressuposto das diferenças no saber. O autor nos questiona: “”com que direito, ou baseado em que critério, quem senta numa cadeira e faz um trabalho burocrático passa a receber dez ou cem vezes mais do que o que faz um trabalho manual?”” (p.9) A seguir afirma: “”o que aconteceu historicamente foi que um determinado grupo humano conseguiu impor sobre os outros a crença de que seu ‘saber’ valia mais, era mais importante”” (p.9). Deste modo, entende-se a “necessidade” da criação do ignorante: “”ele é analfabeto, não sabe ler e escrever, por isso vale menos, pode receber um salário abaixo da sobrevivência”” (p.10). Conclui-se dizendo que “”paradoxalmente, não fosse o ‘ignorante’, não existiria o ‘intelectual’; eles se ‘necessitam’ dialeticamente, mas o intelectual o nega na prática cotidiana e nas relações vitais”” (p.10). e) o excluído cultural (o bárbaro): o autor aponta para o preconceito que ainda subsiste, de que existe, como no caso do saber, uma cultura melhor ou pior. O problema surge no momento em que duas culturas começam a se relacionar. “”Em vez de se reconhecer a riqueza e a validade intransferível e inalienável de cada cultura, começa-se por ‘julgar’ e rotular a outra cultura como ‘inferior’, ‘bárbara’, ‘primitiva’””(p.10). A seguir, critica-se a corrente da antropologia etnográfica que contenta-se em estudar os povos e culturas apenas descrevendo-as cuidadosamente nos mínimos detalhes, esquecendo-se de que a visão de mundo, as teorias e o que pensam os pesquisadores influencia decisivamente na maneira de ver e de saber como as coisas são. “”Nos últimos anos, os estudos sobre cultura deram-se conta da importância decisiva de se poder ‘entender’ e ‘compreender’ os significados, os sentidos, que as pessoas dão aos gestos, ritos e às coisas”” (p.10). Conclui-se afirmado que “”é somente através de relações de poder que se pode dizer que uma cultura é melhor. Decorre daqui a importância fundamental de uma teoria crítica, pois essa teoria começa por ser crítica de si mesma, não aceita a divisão entre aquele que pesquisa e o objeto estudado”” (p.10). f) o excluído político (o divergente): para o poder dominante e absoluto, “”todo o que pensa de outra maneira, todo o que aspira a uma ‘nova ordem, todo o que pensa uma possível mudança, não passa de um subversivo, de um divergente. Ele atenta contra a suprema lei do equilíbrio universal de todas as coisas. Ele é por isso mesmo um ‘marginal’, um ‘periférico’, alguém que ainda não foi assimilado à corrente central, mas que, cedo ou tarde, se ‘encaixará’”” (p.10). Segundo o autor o divergente político é o mais perseguido dos excluídos pois ele se coloca na área do poder e da mudança. Para finalizar, o autor apresenta três questões centrais que marcam a intenção deste artigo: a) acenar para o fato de que, no mundo dos homens e do social, não há uma categoria da qual se possa dizer que abranja todo um determinado grupo de fenômenos, pois todo fenômeno é relativo, e nesse sentido está aberto e ligado à totalidade; nem que existam categorias mutuamente exclusivas, pois elas necessariamente se incluem, pelo simples fato de se relacionarem. b) ter presente que definir a realidade através da análise das relações ali existentes, é tarefa muito mais completa e abrangente do que simplesmente tirar uma fotografia dessa mesma realidade. c) considerar que no momento em que desejamos transformar uma realidade, quem mais nos poderá ajudar é exatamente aquele a quem chamamos de excluído. Isto porque, “”o ‘excluído’, em seu vazio, com seu sinal de interrogação a nos questionar continuamente, ao mostrar-nos as contradições dessa realidade que se quer pronta e absoluta, nos insinua que é na margem que está a possibilidade de compreender o centro, que é nas periferias do mundo que se gestam as grandes transformações, que são as diferenças que dão completude e compreensão global ao mundo e às coisas”” (p.11).