As vidas despedaçadas que irritam Trump. Duas famílias hondurenhas contam desde a partida e durante a caravana que segue em direção aos EUA os motivos da fuga e da crise imigratória que afeta a América Central e o México

JACOBO GARCÍA e ELÍAS CAMHAJI

San Pedro Sula (Honduras) / Arriaga (México) – 2 NOV 2018

A última vez que viu o marido estava tão triste que nem trocaram um beijo de despedida. Depois de 13 anos e três filhos, o momento se reduziu a um leve tapinha no ombro e uma bênção no ar antes de ele sair pela rua arrastando os pés pela terra. Apenas algumas horas antes, Jose Hernández, 31 anos, vira na televisão que uma estranha caravana de imigrantes passaria perto de sua casa. Eles iriam juntos e em segurança para os Estados Unidos, a 2.500 metros de sua casa em San Pedro Sula. Em questão de minutos, decidiu juntar-se a ela.

King Kong, como é chamado por sua corpulência, pegou duas camisetas, uma calça e um short marrom. A melhor coisa de morar em um país onde até o solo arde com o calor é que toda a bagagem cabe em uma mochila escolar na qual no dia anterior estavam os lápis de cor e os livros do primário de um de seus filhos. Antes de sair, teve seu último rompante de vaidade e guardou um frasco de colônia Armani, de imitação.

Maribel Cantarero, 30 anos, voltou a vê-lo quatro dias depois no programa noticioso mais bem cotado do país. Quando a câmera da UNO TV cruzou a massa de pessoas esfarrapadas e parou na frente de seu marido, ele apenas disse: “Uma saudação para a minha família e para o povo da minha região”. A inocente mensagem de alguém que não carrega um telefone, leva dias a pé e deixou o país com 500 lempiras (75 reais) no bolso, foi o único alívio que veio desde então a esta casa de chão de cimento e telhado de chapas na periferia de San Pedro Sula.

Manuel Beras, 36, chegou do trabalho e se deitou para descansar e ouvir o rádio em sua casa em El Negrito, no Departamento de Yoro, a duas horas de carro de San Pedro Sula. Depois comeu o que tinha em casa: arroz e feijão. E tomou uma xícara de café. No noticiário das sete da noite, ouviu que no dia seguinte um grupo de emigrantes se concentraria na rodoviária de San Pedro Sula para pegar a estrada. Então, se levantou da rede e disse: “Estou indo embora”.

Em seguida foi para o local onde estava trabalhando como pedreiro e pediu o que lhe deviam. De volta para casa, dormiu algumas horas e às 3h30 da manhã se despediu dos filhos, da mulher, fez o sinal da cruz perto da testa e deixou o local. Com 1.500 lempiras, cerca de 225 reais no bolso.

Quando chegou ao terminal de ônibus em San Pedro Sula, alguns policiais lhe disseram que a caravana já havia partido, que estavam a cerca de três quilômetros de distância. Ainda poderia alcançá-los. Pegou um táxi que saiu à toda. Quando ia pagar, o motorista disse: “Deixe, deixe, eu também fui emigrante, poupe seu dinheiro.”

“Nunca imaginei estar aqui”, confessa dias depois, caminhando para Mapastepec (México), a cerca de 130 quilômetros da fronteira com a Guatemala. Veste calças pretas, uma camisa jeans dada a ele no caminho e um boné preto, e traz uma toalha rosa amarrada ao pescoço para enxugar o suor. As rugas acentuam as feições do rosto e ele fala quase aos sussurros, com muito sigilo.

– Tem sido uma aventura…

– Tem sido uma loucura, sim.

Beras e Hernández se conheceram em Tecún Umán, ainda em território guatemalteco. Formaram um grupo de sete homens. Alguns são de Yoro, outros de Santa Bárbara e de San Pedro Sula. Todo mundo viaja sozinho, todos deixaram filhos e mulheres em Honduras. “Somos amigos de estrada, vamos ajudando um ao outro, nos protegemos”, explica Beras. “Todo mundo pede dinheiro na rua e no final juntamos o que conseguimos; se um come, o outro come”, resume seu colega, que usa uma simples camisa preta e shorts.

O destino os encontrou às portas do México. E aquelas portas estavam fechadas. Milhares de hondurenhos se posicionaram diante de um cerco policial que não podia controlá-los. Depois veio a porta fechada na aduana guatemalteca. A euforia. O “sim, podem!” O momento em que os policiais mexicanos lançaram spray de pimenta para reprimir um mar de gente. Passar a noite na ponte fronteiriça Rodolfo Robles e montar um acampamento de refugiados à margem do rio Suchiate, entre Tecún Umán e Ciudad Hidalgo, entre a Guatemala e o México. Era sexta-feira, 19 de outubro, e já havia acabado o pisto (o dinheiro).

“É muito difícil, vamos voltar, compa”, disse Beras a um amigo do mesmo bairro que havia encontrado na caravana. “Quando chegamos aos ônibus que estavam voltando para Honduras, meu amigo subiu, mas eu não pude porque o meu nome não estava na lista, então me animei a continuar, acho que foi obra de Deus”, explica, como se fosse uma recordação de algo distante. Mas se passaram apenas quatro dias. A essa altura Donald Trump já havia enviado seu enésimo tuíte chamando imigrantes como José e Manuel de criminosos e membros de gangues.

“Mulheres e crianças nas câmaras [barcos infláveis]! Homens pelo cordão! Homens que não sabem nadar esperem outra balsa!”, gritavam os homens que organizaram a travessia pelo Suchiate. “Nunca vou esquecer o que aconteceu naquela ponte, todos nós nos dispersamos, apenas alguns de nós se encontraram novamente depois, graças a Deus pudemos cruzar nas balsas”, lembra Hernández, meditativo. “O mais difícil? As crianças, muitas sofreram”. Ao cair daquela noite de sábado, os dois dormiram em Ciudad Hidalgo, do lado mexicano.

Tudo estava escuro. Estavam todos juntos. Eram quase seis da manhã de domingo e mais de 7.000 imigrantes andavam em direção a Tapachula, cerca de 30 quilômetros mais para dentro do território mexicano. “Tenho febre há dois dias e todo o meu corpo dói, mas não quero desistir.” Beras, pálido, arrasta os pés e as palavras para acompanhar o passo da caravana. Três horas transcorreram desde o início da nova caminhada, mas o sol já está indo embora. Alguns metros mais atrás, Hernández caminha com o cenho franzido, sem tirar os olhos da meta. Há muito poucos que trazem água e menos gente ainda que carrega comida.

“Olha, ele fugiu porque estava farto de não ter trabalho, não ter nada para oferecer aos meninos e de ser extorquido pelas gangues”, resume Maribel Cantarero, a mulher de Hernández, em uma cadeira em que aparecem a espuma e as molas. Abre o “refri” para provar: há apenas três garrafas de água, um limão seco, um xarope e um saco plástico com algo parecido com tortilhas de milho secas.

“Ele fugiu.” Quase sem perceber, a mulher incorporou na frase o verbo mais comum entre os imigrantes que compõem a caravana. Como seu marido, milhares de hondurenhos não estão mais partindo, fogem: “Se voltam, são mortos. Eles já sabem quem saiu e tudo o que pedem é que paguem”.

A história deste casal com três filhos é a de Honduras nos últimos anos. Até 2016, este era o único país do mundo com duas cidades, San Pedro Sula e Tegucigalpa, no ranking das cinco mais perigosas do mundo, com 112 e 85 mortes violentas para cada 100.000 habitantes, respectivamente. A Espanha tem menos de uma.

Até quatro anos atrás o casal morava em Chamalecón, um miserável e movimentado bairro de San Pedro Sula, onde tinha um modesto negócio de compra e venda de gás. Tão modesto que cabe em uma motocicleta. A velha HJ, de fabricação chinesa, de até quatro cilindros e com a qual ambos percorriam o poeirento bairro, levando gás para os vizinhos.

Então, a 18, a gangue que controla a área, exigiu 500 lempiras para lhes dar proteção. Proteção de quê? “De nós”, responderam eles. O negócio não dava para grandes luxos, mas estavam indo bem e compraram uma televisão e um aparelho de ar-condicionado. Ao perceber isso, a gangue elevou o pagamento do “imposto de guerra”, como a extorsão é conhecida, para 700 lempiras; depois, para 800 e, finalmente, para 1.000. Cansados de pagar, um dia puseram todas as suas coisas num táxi e saíram do bairro para o extremo oposto de San Pedro Sula, onde recomeçaram. Mas há um ano a história se repete. Desta vez, no entanto, a extorsão os levou à pobreza, ao medo e daí ao exílio.

As vendas de gás de Maribel lhe rendem cerca de 2.500 lempiras por mês. Gasta 100 com a água, 200 com a luz e cerca de 300 com gás por mês. E também paga 1.000 lempiras para as gangues e outras 1.000 pelo aluguel da casa. “Eles (a gangue) vão ficar irritados porque já sabem que ele foi embora e que certamente não vou poder pagar a quota”, explica, resignada. O dinheiro não dá para comer, então vive de fiado e pagando “aos pouquinhos”, reconhece.

Na caminhada, após 10 dias de travessia, Hernández se lembra da extorsão que o forçou a mudar seus negócios. Da mudança forçada da família. Para Beras vêm à lembrança seu irmão Chabelo. “Ele foi morto há quatro anos, tinha um negócio em Santa Bárbara e ia muito a San Pedro comprar mercadorias. Tiraram a vida dele em um restaurante onde jantava.” Isabel Beras tinha uma arma, mas não conseguiu se defender. Um longo silêncio.

Calor lancinante durante o dia. Chuvas, às vezes torrenciais, à noite. “Você nunca se acostuma”, diz Hernández, deitado no chão, exausto pelo cansaço. Eles se abrigam em um canto da praça principal de Huixtla, a cidade onde passam a noite sob lonas plásticas amarradas a árvores e postes de luz. A água jorra e o acampamento começa a ficar inundado. É preciso se mexer. É uma noite de tempestade e luto pelo companheiro que morreu naquela segunda-feira, depois de cair de um caminhão que transportava os imigrantes para tornar a viagem menos severa. “Acendemos velas e um pastor nos animou a noite toda, foi muito bonito”, diz Beras. Ele é católico, Hernández, evangélico. Neste momento, essas diferenças não importam. Ambos fazem parte de um rebanho em busca de uma terra prometida que não faz distinção de culto.

“Eu vos abençoo, em nome de Jesus, nós vos amamos muito, irmãos”, sussurra o pregador, com o microfone na mão esquerda enquanto aperta a mão direita dos imigrantes que se aproximam do templo. São quatro da manhã. Milhares de pessoas se espalham pelas ruas do centro de Huixtla. O grupo se arruma sem pressa. Há muitas lições aprendidas. Uma das mais importantes é que é melhor dormir à tarde, para ganhar terreno ao sol.

“Estes países são emprestados, não são os nossos, viemos de passagem, claro”, explica Beras no caminho, enquanto enxuga o suor com a toalha. Ele se aproxima de um caminhão que entrega garrafas de água, enquanto dezenas de mãos se erguem desesperadas. É preciso aguentar empurrões, ser paciente e não desperdiçar muita energia.

Pouco mais adiante, as luzes das sirenes dos carros de polícia estacionados deslumbram Hernández, o tempo está mais fresco, como se as nuvens começassem a raspar na montanha, entre os campos de milho. King Kong se adianta, esteve um pouco gripado, mas já melhorou. Beras sofre em silêncio com as bolhas, seus pés estão estraçalhados. Atrás estão grupos de menores que viajam sozinhos e brincam no caminho, adultos mais velhos andando calmamente e carrinhos de bebê de famílias que singram as estradas acidentadas de Chiapas. Há enormes buracos e valetas.

Entre histórias contadas e conversas, Beras também se lembra de John, um amigo que trabalhava com ele na construção e ganha a vida como pedreiro há dois anos em Michigan, na fronteira entre os Estados Unidos e Canadá. “Manuel, quando você vai ter colhões e vir para cá? Em Honduras não dá para progredir”, insistiu o amigo há oito meses. Juan, no entanto, teve que pagar um preço alto. “O grupo criminoso que o ajudou a atravessar a fronteira com os Estados Unidos lhe colocou uma mochila no ombro cheia de drogas, que fazia parte do pagamento da travessia”, diz Beras. Se a mercadoria não chegasse, ele, também não.

“Os coiotes pedem até 8.000 dólares [30.000 reais] para te fazer passar, então só minha esposa foi e quero encontrá-la, ela está em Washington“, diz Manuel España, um agricultor albino de 68 anos. Muitos, de fato, se juntaram à caravana para não ter que pagar tanto aos traficantes e ficar protegidos. “É mais seguro assim, especialmente como mulher e viajando com crianças pequenas”, resumiu Elsa Morales, uma mãe solteira guatemalteca que se juntou à caravana com seus três filhos.

Enquanto percorrem o México a um bom ritmo, a caravana causa inquietação a cinco governos, especialmente o de Donald Trump, que usou os imigrantes para alimentar a campanha das eleições de meio mandato nos Estados Unidos. O inquilino da Casa Branca anunciou que vai deslocar mais de 5.000 soldados para a fronteira para impedir a sua passagem.

Além disso, existem dois mitos paralelos em torno da caravana e dos imigrantes que a integram: “que nos invadem” e que o presidente da Venezuela, Nicolas Maduro, por intermédio de sua sucursal em Honduras — o presidente deposto Manuel Zelaya —, é a mão que move os fios da pobreza. Sobre o primeiro, os dados mostram que o México somente entregou documentos aos refugiados na proporção de seu tamanho. No Líbano, o primeiro país do mundo em número de refugiados, há 170 para cada 1.000 habitantes; na Jordânia, 91, e na Turquia, 44 refugiados para 1.000 habitantes. No México, embora os pedidos tenham disparado no ano passado, os números ainda são insignificantes: há 0,0071 refugiados por 1.000 habitantes e o país ocupa a 127ª posição em todo o mundo, de acordo com a ACNUR, a agência da ONU para refugiados. O segundo mito é respondido com um sorriso. Aquele que Maribel Cantarero esboça quando ouve falar de Maduro: “Você acha que se recebesse um peso de Maduro, andaria assim comendo feijão com arroz todos os dias?”

“É um país de merda, eu também quero ir, andar, me deixar levar e não olhar para trás”, amaldiçoa Edis Hernández, a mulher de Manuel Beras, no fogão a lenha. Enquanto fala, dois bebês, a filha de 19 anos e outra de 15 anos zanzam pela casa em busca de algo para fazer. A moradia do casal é o melhor resumo da poderosa fertilidade de Honduras: a biológica e a florestal. Na casa, com um terreno de 200 metros quadrados, convivem um filho — Isaac, dois anos de idade — da mesma idade que o neto. E na pequena horta atrás é impossível andar sem pisar nos restos de frutas porque crescem espontaneamente laranjeiras, cana-de-açúcar, abacateiros e cacaueiros. Uma terra tão avassaladora que traga simultaneamente as lágrimas de Edis e os frutos das árvores, sem que ninguém os recolha.

Longe dali, Beras corre depressa ao ver que alguns veículos param uns 50 metros à frente da caravana. Ele sobe na carroceria e se agarra à armação de madeira de um caminhão de entregas. Horas depois, explica que conseguiu pegar carona duas vezes e chegou ao parque central de Mapastepec. Todos os membros do grupo viajaram em ritmos diferentes, mas voltaram a se encontrar. Aproximam-se para receber sopa e um pouco de arroz e feijão dos voluntários. Voltaram a colocar as lonas plásticas. Aguardam outra vez a chegada da chuva. Dormem novamente sobre o calçamento. O êxodo da América Central volta a ganhar força.

Cai a noite e todos se voltam para Pijijiapan, a próxima parada, a quase 50 quilômetros de Chiapas, pela costa. Um dia depois, Hernandez está exausto. Uma atadura branca cobre o pé porque ele escorregou e torceu o dedão enquanto se lavava no rio Coapa. “Dói um pouco quando o apoio, mas acho que vou conseguir continuar”, diz, resignado, usando as mesmas roupas há dois dias, enganando a fome com um pacote de biscoitos. Faltam seis horas para a próxima caminhada, que parte às três da manhã. A próxima parada é Arriaga, uma cidade crucial para subir na Bestia, como é apelidada uma rede de ferrovias de carga até a fronteira. A maioria, no entanto, opta por seguir a pé e de carona até o Estado de Oaxaca. A caravana percorreu mil quilômetros desde 13 de outubro, de San Pedro Sula a Juchitán, no Estado de Oaxaca. Se for confirmado que seguirá para Tijuana, ainda restam 3.000 até os Estados Unidos.

Estima-se que 9.300 refugiados centro-americanos cruzaram a fronteira entre a Guatemala e o México entre 19 de outubro e 22 de outubro, segundo as Nações Unidas. A maior parte das estimativas, com base nos números registrados pelas autoridades municipais quando atravessam o território mexicano, falam de pelo menos 7.000 imigrantes. Não há um censo formal. Um em cada quatro membros da caravana são meninas, meninos e adolescentes, segundo a Save the Children. Cerca de 2.300 crianças que viajam precisam de proteção específica e acesso a serviços essenciais, alerta a Unicef.

Desde que José Hernández atravessou a enferrujada porta de sua casa em San Pedro Sula e se juntou à caravana, Maribel é a mulher mais bem informada do mundo. Não desgruda da televisão e nunca consumiu tantos programas de notícias. Nunca pensou que a decisão do marido acabaria sendo notícia mundial. A esperança de ambos é que o frasco de colônia de imitação deixe de ser um peso inútil, quase surreal, na mochila e o ajude a encontrar trabalho quando se perfumar para a primeira entrevista de emprego.

“Quando você vai vir?”, pergunta a Hernandez um de seus filhos em uma mensagem de voz do WhatsApp. “Não volto, vou pra frente, se Deus quiser vou passar e ajudar vocês, dar-lhes estudos”, responde o pai, apressando as palavras como se saíssem em disparada de sua boca, em uma oração, e então deixa escapar um suspiro. Como se estivesse tentando convencê-lo e, de passagem, convencer a si mesmo. Quer ficar cinco ou seis anos nos Estados Unidos. Beras espera permanecer somente três anos, até ganhar o suficiente para construir uma casa própria. “Não quero ficar mais tempo porque não quero que meus filhos se percam, lá o crime começa a manipulá-los desde pequenininhos”, diz ele, e então olha para o vazio. “É um sonho em que você se arrisca e deixa tudo para buscar uma vida melhor, mas acho que valerá a pena.”

Redação: Jacobo García, de San Pedro Sula; Elías Camhaji, da caravana

Coordenação e edição: Javier Lafuente

Fonte: El Pais – Brasil